A Queda
Este é o terceiro livro resenhado do escritor Prêmio Nobel Albert Camus. “A Queda” foi escrito quatorze anos após “O Estrangeiro”. Existe uma diferença entre os dois livros. Enquanto em “O Estrangeiro” o autor ressalta a inocência do ser, em “A Queda” o narrador atesta a culpabilidade do ser. A edição do livro que li é portuguesa (de Portugal) de forma que as citações estarão todas dentro do padrão linguístico desse país.
O personagem principal de “A Queda” é um juiz penitente, que é culpado pelo crime de omissão, por ser moralmente incapaz de agir. Camus afunda o leitor na escuridão da condição humana, sem oferecer saídas. Somos deixados a tirar as nossas próprias conclusões sobre não pré-julgar os outros e lidar com o mal dentro de todos nós sem recorrer a qualquer divindade externa.
É uma narrativa de seis capítulos onde paralelos bíblicos e religiosos são espalhados abundantemente, como a história do Pecado Original, a queda de Satanás e os sofrimentos humanos de Cristo. O personagem Jean Baptiste Clamence (uma alusão ao personagem bíblico João Batista) conduz sua confissão informando ao leitor sua profissão de advogado. A ação se passa em Amsterdã, escolhida por Camus por seus canais circulares representarem o inferno circular em que habita o personagem principal, em um bar chamado México City. Um bar frequentado por exilados e deserdados do mundo moderno.
“Já reparou que os canais de Amsterdão fazem lembrar os círculos do inferno? O inferno burguês naturalmente, povoado de maus sonhos. Quando se chega de fora, à medida que vamos passando estes círculos, a vida, e portanto os seus crimes, torna-se mais compacta, mas obscura. Estamos, aqui no último círculo. O círculo dos... Ah! Sabe disso? Diabo, o senhor torna-se mais difícil de classificar” (pg 29)
Ele, embora com muitas digressões, revela verdades incômodas sobre nossa própria vida. Jean Baptiste Clamence se apresenta como um ex-advogado. Teve uma ampla prática em sua vida, mudou-se para um lugar onde ninguém o conhecia e está tentando fugir de suas pesadas memórias.
“Há alguns anos, eu era advogado em Paris e, a palavra, um advogado bastante conhecido. Bem entendido, eu não lhe disse o meu verdadeiro nome. Tinha uma especialidade: as causas nobres. (pg 35, pg36)
Ele rememora a sua vida. Conta que sempre foi um advogado especialista em causas que ele julgava nobres. Era famoso por sua profissão e por sua aparente generosidade.
“Minha profissão satisfazia felizmente esta vocação das alturas em relação ao próximo, que eu sempre obsequiava, sem nunca lhe dever nada. Colocava-me acima do juiz, que, por minha vez, eu julgava acima do réu que eu forçava ao reconhecimento. Pondere bem isto, meu caro senhor: eu vivia impunemente. Nenhum julgamento me dizia respeito, não me encontrava no palco do tribunal, mas em qualquer outra parte, nos urdimentos, como esses deuses que, de tempos em tempos, são descidos por meio de um maquinismo, para transfigurar a acção e dar-lhe o seu sentido. No fim de contas, viver por cima é ainda a única maneira de ser visto e saudado pela maioria.” (pg 47)
É um homem muito sociável e usa o bar Mexico City como um templo, onde encontra gente contando sobre suas vidas, seus pecados. É claro que ele se utiliza dessa interlocução. E para quem está dirigida essa confissão? Para um personagem: “você”, que o acompanha sem nunca falar, durante todo o romance.
“O senhor tem mais ou menos a minha idade, o olho sabido dos quadragenários que encararam todas os aspectos, veste mais ou menos bem, quer dizer, como é uso entre nós, e tem as mãos delicadas. Logo, um burguês apurado!” (pg 21)
Descrever essas confissões de Jean Baptiste Clamence como um delírio de um louco é uma abordagem a meu ver problemática. Clamence nos coloca exatamente a imagem do homem moderno, e nós agimos exatamente como o homem moderno arquetípico. Aqueles que renegarem a imagem escura do narrador se enganam. Ele não nos deixa outra opção senão lutar contra suas muitas acusações: que não nos importamos com nada além de nós mesmos, que só gostamos de nossos amigos por causa do que eles podem fazer por nós, que nos importamos com as aparências muito mais do que a realidade, que o nosso amor está atrelado a uma dominação e, acima de tudo, que instamos na nossa própria inocência para que possamos julgar o mundo inteiro.
Durante uma excursão à ilha de Marken, podemos fazer uma excursão a Zuiderzé, onde ele descreve os estágios de nossa “Queda”. No início, ele começou a sentir intensa agitação e dores de nojo da vida. Ele começou então a voltar-se para o “álcool e mulheres” em busca do conforto – mas só encontrou conforto temporário.
“O álcool e as mulheres forneceram-me devo confessá-lo, o único alívio de que era digno. Confio-lhe este segredo caro amigo, não receie utilizá-lo. Verá então que o verdadeiro deboche é libertador porque não cria nenhuma obrigação. No deboche só possuímos a nós mesmos; ele fica sendo, pois, a ocupação preferida dos grandes apaixonados de sua própria pessoa. “(pg 158
Clamence abraça a devassidão, que considera libertadora porque não cria obrigações, nela você só possui a si mesmo. Ele adquire uma tuberculose e faz uma viagem de transatlântico. Ao avistar uma mancha negra no mar, traz de volta a realidade do grito da mulher que se afogou no Sena. Isso reforça o seu senso de culpa:
“Um dia, porém, no decurso de uma viagem que ofereci a uma amiguinha, sem lhe dizer que o fazia para festejar a minha cura, encontrava-me eu a bordo de um transatlântico, na coberta, naturalmente, quando, de súbito divisei ao largo um ponto negro no oceano cor de ferro. Desviei logo os olhos e o meu coração começou a bater, ansioso. Quando me forcei a olhar, o ponto negro havia desaparecido. Ia gritar, chamar estupidamente por socorro, quando voltei a ver. Tratava-se de uma daqueles detritos que os navios deixam atrás de si. No entanto, eu não tinha suportado a sua visão, havia pensado imediatamente num afogado. Compreendi então, sem revolta, como nos resignamos a uma ideia cuja verdade se conhece há muito tempo, que aquele grito que, anos antes havia retinido sobre o Sena, atrás de mim, não tinha cessado, levado pelo rio para as águas da Mancha, de caminhar pelo mundo, através da extensão ilimitada do oceano, e que o encontrara. Compreendi também que ele continuaria a esperar-me sobre os mares e os rios, por toda a parte enfim onde encontrasse a água amarga do meu batismo” (pg 164, pg 165)
Ele deve ser punido por um mal-estar. Em seguida, Camus se submete a reconhecer a sua culpabilidade. Ele cita uma cela de masmorra que na Idade Média se chamava “desconforto”:
“Esta cela distinguia-se das outras por engenhosas dimensões. Não era suficiente alta para se poder ficar de pé, nem suficiente larga para se poder estar deitado. Tinha-se de adoptar o gênero tolhido, viver em diagonal; o sono era uma queda a vigília um acocoramento.” (pg 166)
Clamence conclui ironicamente que, nesta invenção humana, eles não precisam de Deus para criar a culpabilidade nem para castigar. Para isso basta os nossos semelhantes ajudados por nós mesmos. O Juízo Final deve ser muito melhor do que o juízo dos homens.
Jean Baptiste Clamence expande sua filosofia de vida no capítulo final, que ocorre em seu próprio alojamento. Clamence relata suas experiências perturbadoras como prisioneiro de guerra na Segunda Guerra Mundial, lista suas objeções às noções comuns de lei e liberdade e revela a profundidade de seu envolvimento no submundo de Amsterdã.
“O grande problema no campo, era a distribuição de água. Tinham-se formado outros grupos, políticos confessionais, e cada um favorecia os seus camaradas. Fui, pois, levado a favorecer os meus, o que já era uma pequena concessão. Mesmo entre nós, não pude manter uma perfeita igualdade. Segundo o estado dos meus camaradas ou os trabalhos que tinham de fazer, eu favorecia um ou outro. Estas distinções levam a muito longe pode crer-me. Mas decididamente, estou cansado e já não sinto vontade de pensar nesse tempo” (pg 191)
Clamence, na última parte do romance, pede ao leitor que abra o armário que contém um painel do retábulo de Van Eyck chamado “O Cordeiro Místico”. Esse painel foi roubado em 1934 da Catedral de Saint-Bavon, em Gante (Bélgica), e ocupou as paredes do bar “México-City” e depois removido para o quarto de Clamence. Aqui um painel em sua sala retrata “Os Juízes íntegros”.
“A Queda”, como já foi dito, alude o tempo todo a imagens cristãs na obra de Camus. O título já é uma alusão ao episódio do Gênesis, onde Adão e Eva foram expulsos de seu paraíso terrestre e caem em desgraça por ceder à tentação de Satanás. Da mesma forma, Clamence caiu de quando era dominado pela luz do Éden em um estado de inocência em seus primeiros dias como advogado parisiense para ser expulso de lá quando ouve a mulher desconhecida cair da ponte que atravessa o rio Sena e mais tarde descobrir a sua própria duplicidade.
Clamence não se define como um homem religioso. No entanto, como já foi dito, as referências de Deus e cristianismo desempenham um papel importante. A culpa e o sofrimento humano o leva a concluir que a democracia só chegará no dia em que todos se declararem culpados.
“A Queda” é uma das obras mais emblemáticas e complexas que até agora eu li de Albert Camus. Claro que ainda falta ler “O Mito de Sísifo”, entre outras. Camus trata a nulidade moral de seu próprio tempo e o nosso com tamanha clareza, lucidez de percepção altamente incomum. Essa foi a grande experiência de ler “A Queda”, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.