Fim
“Fim”. E não preciso dizer que achei o livro simplesmente muito, muito bom. Sim, Fernanda Torres escreveu uma boa história e se mostrou tão competente e à vontade entre as palavras quanto no palco e à frente das lentes da TV e do cinema. O livro me fez bem, pois me fez repensar sobre uma série de outras questões, para ser mais especifico, me remeteu a Freud. Sim, a ele. Claro que a interpretação da obra de Freud feita por Octávio Paz faz com que tudo ganhe brilho. Mas antes de entrar em minhas conjecturas freudianas, vamos à obra.
A história se passa entre amigos, um grupo de amigos “de longa data”, onde todos os fatos marcantes de suas vidas são contados com um humor elegante mas trágico. E muito bem escrito. Fernanda Torres soube utilizar com maestria sua bagagem como atriz e nos presentear com personagens absolutamente factíveis e próximos.
Eles rememoram as passagens marcantes de suas vidas: festas, casamentos, separações, manias, arrependimentos. Álvaro, solitário e triste sua grande máxima era: “O casamento é o estado civil mais indicado para homens que, como eu, não gostam de conviver com os outros.” Detalhe: ele ainda não morreu, morrerá no dia 30 de abril 2014.
Sílvio, amargurado e viciado em sexo e cocaína um transgressor sexual, um típico adepto da filosofia do Marquês de Sade, muito embora nem conheça a filosofia do mais famoso libertino da era moderna, seu conhecimento é prático.
Ribeiro, um rato de praia atlético que ganhou sobrevida sexual com o Viagra; Neto, o careta da turma, marido fiel até os últimos dias; Ciro, o don Juan invejado por todos – mas o primeiro a morrer, abatido por um câncer mas nunca se entregará. Mesmo no “Fim” tentará incluir Maria Clara (sua enfermeira) no seu extenso portfólio sexual.
Mas a extensa lista de personagens não fica apenas nos personagens masculinos: Irene, Suzana, Alda, Ruth, Célia, Maria Clara dentre outras. E acreditem: tem o Padre Graça. Não falarei mais nada a respeito, deixo com vocês a incumbência de conhecê-los.
São figuras muito diferentes, mas que partilham não apenas o fato de estar no extremo da vida, como também a limitação de horizontes. Fernanda mostra uma sucessão de acasos e frustrações, regadas a neuroses, crises e desentendimentos.
O romance “Fim” fala sobre temas que são recorrentes a quase todos os romances modernos. Homens, mulheres, épocas, jovens e velhos, solteiros e casados e os seus desdobramentos assim como as dores e as decepções, alegrias, euforias, perversidades e libertinagens, acertos e erros, doenças e a velhice. O livro é surpreendente e revela que tudo que a vida nos dá ela um dia nos tira, e é nisso que reside o “Fim”.
O cenário é o Rio de Janeiro dos anos 60 que teve seu momento apoteótico nos anos 70 e que por sua vez foram consumidos pelas overdoses dos anos 80 e com a AIDS - a nos tirar o sono e a levar amigos e outros nomes queridos. Casamentos, separações, manias arrependimentos, podemos ter um pequeno registro desses anos de transgressão sexual nessa obra que retrata muito bem esses tempos de ousadias, intensidades e conflitos.
O conflito humano não advém da situação social do homem em nossa época, mas de sua própria natureza. Toda sociedade seja ela qual for cria os seus próprios conflitos, porque o homem é conflito. Junto com os seus fantasmas, alimenta-os com seu sangue porque ele próprio é um fantasma. Seu ser é o campo de batalha onde a criação e destruição, duelam. A civilização é o reflexo desses conflitos. Podemos mudar a sociedade, mas criaremos apenas outros conflitos.
Na impossibilidade de curar definitivamente o homem (e aí entra Freud, como havia comentado lá em cima), Freud se contenta em ajudá-lo. Em primeiro lugar não o alimentando com ilusões, em segundo lugar, não aconselhando a resignação como solução do inevitável. Para Freud a única “esperança” é acordar o homem para que seja dono de si e de seus instintos. A única forma de alcançar o mínimo de saúde é dominar as forças inconciliáveis que disputam o nosso ser.
E o que esse romance me fez pensar em Freud e Octavio Paz? Tudo!
Certa vez, Octavio Paz relatou uma conversa que teve com George Bataille durante um passeio em Paris onde conversavam sobre a “liberação sexual” e em determinado momento George Bataille lhe mandou o seguinte texto:
“O erotismo é inseparável da violência e da transgressão; melhor dizendo o erotismo é uma infração e se desaparecessem as proibições ele também desapareceria.”
Será? Sexualidade e erotismo pertencem a reinos independentes. Sexualidade é mais simples: o instinto põe em movimento o animal cujo destino é a perpetuação da espécie. O indivíduo é o guardião da espécie e pelo caminho da sexualidade a humanidade se mantém e se reproduz. No entanto, a sociedade humana é cheia de proibições, regras, tabus. O Erotismo e o amor pertencem ao domínio do imaginário como a festa, o rito, é variação incessante; o sexo é sempre o mesmo. Portanto, não haverá ausência de proibições que impeçam o erotismo de se reinventar.
“A castidade do monge e da freia é continuamente ameaçada pelas imagens lúbricas que aparecem nos sonhos e pelas poluções noturnas; o libertino por sua vez, passa por períodos de saciedade e saturação, além de estar sujeito aos insidiosos ataques de impotência” (Octavio Paz)
A castidade e a libertinagem podem ser coletivas e individuais. A libertinagem não deixa de ser uma tentativa pessoal de romper os laços sociais e se apresenta como uma libertação da condição humana. Nesse sentido é moderna. O libertino é crítico da religião, das leis e dos costumes. A filosofia libertina transformou-se em ideologia e opinião. Sade foi o seu grande teórico.
Silvio um homem divorciado e que descobre os prazeres com o andar da carruagem do tempo e adepto inconsciente de uma boa libertinagem.
Silvio, um dos personagens que para mim se destacou, nos oferece um paradoxo interessante, gozar na insensibilidade e em nome da destruição. Semelhante raiva só pode ser atribuída ao espírito de vingança, essa terrível palavra.
Toda sociedade traz dentro de si os germes de sua própria neurose. Essa reflexão estende-se a toda civilização. Em outras palavras, os males do neurótico são os males da civilização. E por civilização podemos entender as associações humanas, suas instituições, o progresso técnico e intelectual. É o fruto da convivência humana, imperfeita e instável, o resultado de nossos instintos reprimidos com dosagens de repressão e sublimação. Dessa forma podemos chegar a seguinte conclusão: “a doença é o estado normal da nossa civilização”. Claro que quando falamos de males da civilização a pergunta que não sai da cabeça: Quais? Freud responde a essa pergunta que pode parecer para muitos, um pouco estranha. A principal são as doenças imaginárias perpetradas por uma vasta e complicada arquitetura também imaginária. Octavio Paz pergunta:
“Nossas substâncias erguem-se de torres de fumaça. Damos a ela, que nos alimenta com quimeras. Se o homem não pode voltar ao mundo paradisíaco da satisfação natural de seus desejos sem deixar de ser homem, será possível uma civilização que não se realize à custa de seu criador?” (Octávio Paz – “Um mais além Erótico” pg43).
A religião e a moral são as grandes forças que reprimem nossos instintos e, ao mesmo tempo, multiplicam-se as nossas explosões psíquicas. A civilização é o espaço para a convivência de todos estes instintos. Podemos criar alguma utopia no qual o erotismo deixe de ser autodestrutivo?
Eric Fromm acreditava que sim. Para ele a sociedade contemporânea está doente e as neuroses dela derivadas estão diretamente linkadas com o capitalismo, a propriedade privada, trabalho assalariado, regimes totalitários, guerras, desempregos e outras inúmeras doenças sociais, somados a fome e a miséria etc. Para Eric Fromm os valores sociais não são eternos, mas apenas momentos históricos. Pode ser que sim. No romance “FIM” os tempos eram bicudos, ou seja, tempos de repressão política e me lembro de muitos amigos meus comunistas (eu também fui) repetindo essa mesma frase.
Freud acreditava que não; valores são ilusões, preceitos irracionais, é um labirinto, no qual os castigos são reais e os prêmios imaginários. A crítica aos valores, nesse caso, passa longe do niilismo. A crítica dos valores do homem feita por Freud vai além e afirma que a condição do homem é trágica. Freud rebate a afirmação de Eric Fromm afirmando que os conflitos habitam os homens em seu interior. O homem está condenado a viver entre essas ilusões – seja religião, a moral ou ideias filosóficas e políticas fantasmas que engendram seu desejo.
Por isso “Fim” é um bom livro para ler. Por oferecer uma leitura agradável e, sem pretensões, nos fazer pensar sobre a loucura nossa de todos os dias.
Boa leitura!