De Gados e Homens
Tudo começou quando um cliente chegou para mim e disse: - você conhece esse livro aqui? O nome do livro era “De Gados e Homens” da escritora Ana Paula Maia. Eu disse que não a conhecia. Foi então que num gesto da mais pura sinceridade esse cliente me disse: “leia, e prepare-se para se impressionar com a narrativa dessa história.” Não deu outra. Peguei o livro e devorei como carne na brasa. Agradeci ao amigo cliente que me indicou o livro e cá estou para falar dele. Um livro simplesmente diferente de todos que li ultimamente dos autores nacionais. Um livro que deixa você meio zonzo e perplexo.
A história desenrola-se em um Matadouro chamado “Touro do Milo”, um lugar onde o sangue se mistura ao solo, onde a relação entre o homem e os animais confunde-se a ponto de nos fazerem questionar quem é o animal e quem é o homem nessa relação, ou será que somos tão animais quanto?
A história da humanidade, tanto na sua pré-história quanto na sua história, em nada foi diferente de outros animais entre os quais viviam. Caçadores viam suas caças como iguais, se não superiores, e animais eram cultuados como divindades em outras culturas tradicionais.
John Gray em seu livro "Cachorro de Palha" diz que muito embora o conhecimento humano tenha crescido durante todo esse tempo, e podemos colocar algo em torno de 12 mil anos, e continuará a crescer por mais alguns séculos, e com ele o poder humano, podemos dizer que permanecemos os mesmos. Uma espécie altamente inventiva que também é uma das mais destrutivas. Darwin mostrou que os humanos são como outros animais.
A destruição do mundo natural não é resultado do capitalismo global, da industrialização, da “civilização ocidental” ou de quaisquer falhas em instituições humanas. É a consequência de um primata altamente predador. Ao longo de toda história e pré-história, o avanço humano coincidiu com a devastação ecológica. Mais do que isso. Assassinatos em massa entre humanos ao longo de toda história nos fazem seres rapinantes. E vou mais longe, somos iguais a qualquer vírus. Talvez sejamos o vírus. A vinda da espécie humana alcançando seu poder atual implicou a ruína para outras incontáveis formas de vida.
O progresso técnico revelou um problema para a nossa espécie: a fraqueza moral da natureza humana. Esse problema é insolúvel. Convivemos com os nossos corpos naturais juntamente com a nossa tecnologia artificial, e isso nos confere uma questão importante sobre as nossas origens. Se formos substituídos por máquinas, isso constituirá em uma mudança evolutiva em nada diferente daquela bactéria que se combinou para criar nossos primeiros ancestrais.
Vamos ao livro? Nosso herói chama-se Edgard Wilson, um homem que faz o trabalho mais pesado no matadouro, ou seja, é o homem que executa os animais. Após sobreviver a uma implosão em uma mina em que trabalhava se vê agora às voltas com a morte de gados. Ocupando o cargo de atordoador, ele martela a cabeça dos animais, que logo em seguida são desmembrados e, ao fim de um ciclo, viram bife de hambúrguer.
Um trabalho sinistro desse só poderia ter um nome que lembra um dos contos de Edgard Allan Poe, “William Wilson,” Edgard Wilson. No entanto, ele é um atordoador, faz o gado dormir antes da degola. “A linha do tempo é como a linha da morte não pode ser interrompida”.
Não é um trabalho que ele adora. Mas tem consciência que ele é o único que pode fazê-lo, pois tem piedade dos animais. A carne é enviada para alguns frigoríficos e depois enviada para fábrica de hamburgers. O preço do hambúrguer equivale a dez vacas abatidas pelo nosso herói. Herói? Sim. Ele tem a consciência do seu trabalho e muito cuidado para quando forem conversar com ele sobre a profissão:
“- A senhora já comeu hambúrguer?
A mulher responde sim com a cabeça
- E como a senhora acha que ele foi parar lá?...
- A Senhora pode descobrir se quiser. Desde o início. Conhecer todo processo, não foi pra isso que vocês vieram? Se quiser fazer o seu próprio hambúrguer começa por aqui.
A mulher larga a marreta no chão e começa chorar.” (pg. 72)
O dono do frigorífico, Seu Nilo, é um católico fervoroso que frequenta a missa com a família todo domingo após passar suas horas agradáveis com prostitutas e grandes momentos etílicos. Ele acredita que é um homem bom, um homem de Deus que come a carne de Jesus em forma de hóstia.
Conheceremos outros personagens como Branco Gil, Zeca dentre outros que pensam diferente cuja relação com o trabalho difere no método. Mas não foi Shakespeare que certa vez não disse que na loucura de Hamlet havia um método? Esse é o enigma dessa história.
Edgard Wilson conhece o gado como ninguém, mas algo estranho está acontecendo, os olhos de todos os animais estão apontando para uma direção errada. Uma agitação está no ar. Estão olhando para o oeste, e não para o norte como sempre olham. Qual o significado disso? O que estará acontecendo? Esse é o Vale dos Ruminantes onde as águas limpas encheram-se de sangue. Estamos no “Matadouro do Nilo”. Onde essa história vai desembocar? No Rio das Moscas? No atordoamento do leitor?
O romance não é nenhuma crítica aos que gostam de carne. É muito mais do que isso. Numa citação de Dostoievski em seu livro “Notas do Subterrâneo” poderíamos entender a intenção da escritora:
“Se a civilização não tornou o homem mais sanguinário, de certo o fez mais perversamente, mais covardemente sanguinário que antes... hoje, embora considerando o derramamento de sangue uma coisa abominável, entregamo-nos a essa abominação, ainda mais frequente do que antes”.
“De Gados e Homens”, da escritora Ana Paula Maia, é um livro duro, perverso e sanguinário, mas excelente. Mas podemos ainda ver que nesse universo há chances de vermos alguma luz. E essa luz só poderá ser vista em novo ângulo de visão do leitor. Um livro que merece um lugar na sua estante.