Assim é ( se lhe parece)
“Assim é (se lhe Parece)”, de Luigi Pirandello, da editora Tordesilhas, traz o posfácio excelente de um dos maiores críticos literários do país: Alcir Pécora. O posfácio, cujo título é “As tiranias da verdade”, nos ajuda a entender a curva dramática da peça a partir da chegada de três personagens e a reação da vizinhança com esses recém-chegados. Um texto muito elegante, que nos ajuda a entender a obra e o teatro de Pirandello. Alcir Pécora, é o posfaciador, do livro.
Porém, antes de entrarmos nos pormenores dessa peça, cabe aqui falarmos um pouco sobre o autor. Luigi Pirandello nasceu em Girgenti, na Sicília. Estudou filologia em Palermo, Roma e em Bonn, na Alemanha. Do primeiro casamento, com Antonieta Portulano, teve três filhos. Um deles, Stefano Landi, seguiu a dramaturgia. Antonieta Portulano não tinha uma relação com a arte nem tinha vocação artística. Era uma mulher que havia sido educada por freiras. Foi educada para cuidar de filhos e cozinhar, uma mulher muito tímida.
Mas uma pequena tragédia financeira abalou sua mulher. Don Stefano Pirandello, o pai de Luigi, administrava uma grande mina de enxofre a poucos quilômetros de Girgenti. O negócio estava indo bem, até que Don Stefano Pirandello, que havia investido um dinheiro substancial, perdeu tudo por causa de uma inundação na mina. Antonieta acusou o golpe e se sentiu destruída com a falência. Ficou mentalmente perturbada. A doença de sua mulher levou Pirandello, mais tarde, a se aprofundar na psicanálise de Freud.
Pirandello vivia num ambiente onde a própria mulher o tratava como se ele fosse um outro, em suas crises de alucinação, em que afloravam os mais assustadores fantasmas de uma Sicília profunda.
Os anos ficam agitados com mais preocupações e desgostos de ordem familiar. Em 1915, morre a sua mãe. O filho Stefano está na frente de Guerra e será depois enviado para um campo de concentração. As condições de saúde mental da mulher são cada vez mais graves. Quando Stefano regressa, em 1919, a família decide interná-la numa instituição para doentes mentais, seguindo as indicações há muito dadas pelos médicos.
Seus romances mais conhecidos são “O Falecido Mattia Pascal”, “Um Nenhum e Cem mil”, “Os Velhos e os Moços” e “A Excluída”. Os dois primeiros estão resenhados aqui no Bons Livros para Ler.
Em 1924, Luigi Pirandello adere ao fascismo, mas sua obra nunca seguiu os cânones dessa ideologia. Foi diretor-chefe por nomeação do Teatro d’Arte di Roma, onde conheceu Marta Abba, que se torna sua companheira. Em 1929, é admitido na Academia Italiana. E venceu o Prêmio Nobel, em 1934. Faleceu dois anos depois, em 1936, aos 66 anos.
Vamos falar sobre “Assim é (se lhe parece)”?
Os diálogos dessa peça ocorrem em três atos, em duas salas de estar. No centro da narrativa, está uma investigação epistemológica sobre aquilo que Alcir Pécora chama (no posfácio) de “tiranias da verdade”. Como ela (a verdade) é obtida? O universo habitado pelo elenco de personagens está firmemente enraizado na rejeição das ideias antiquadas de verdades universais sobre as quais a sociedade cristã foi construída por quase 2000 anos antes de Pirandello escrever sua peça. O dramaturgo nos dá a entender que, mesmo que se chegue à verdade, ela sempre manterá um elemento de relatividade baseado na consciência subjetiva.
O termo “pirandelliano” se tornou sinônimo das complexidades que resultam de qualquer tentativa de definir a linha fluída entre o que é ilusório e o que é real. Em sua investigação sobre a natureza da verdade, Pirandello vai construindo camadas de ilusão. Em seu fascínio por seu próprio poder como artista-criador, ele dramatiza a fluidez da verdade.
Para Pirandello, a criação do personagem envolve uma interação menos sutil, mas infinitamente inteligente entre o psicológico, o social e o teatral, que reitera a preocupação do dramaturgo com as múltiplas facetas entre a realidade e a ilusão.
“Assim é (se lhe parece)” é uma investigação inteligente de um melodrama sobre a natureza da verdade. A questão dramática que impulsiona a ação da peça envolve a identidade da Senhora Ponza, a mulher do senhor Ponza e depois da senhora Frola, que afirma a todos na história que a senhora Ponza é a sua filha. Ela é ou não é?
Todos os diálogos movem as fofocas dos vizinhos. O tema se concentra em um grupo coeso de vizinhos esperando uma coisa e vendo outra completamente diferente. A família Agazzi e os habitantes da cidade reclamam que o escrivão chamado Ponza, cruelmente, não permite que a sua esposa e sua sogra, a senhora Frola, se vejam. A família Aagazzi abre a casa para os moradores intrometidos interrogarem separadamente o funcionário senhor Ponza e sua sogra, a senhora Frola.
Os rumores dos fofoqueiros estão fixados nas relações ambíguas que existem entre o Sr. Ponza, sua sogra – Sra. Frola – e sua esposa, que aparece como "deus ex machina" apenas no final para "resolver" o enigma. O Sr. Ponza, embora muito atencioso com a sogra, não permite que ela veja sua filha, que parece manter segregada em casa. Desse precedente, a dúvida atroz, que não encontra solução definitiva devido aos discursos conflitantes do marido e da sogra quando são interrogados separadamente sobre o assunto: o senhor Ponza afirma com convicção que a filha da senhora Frola morreu e que a suposta sogra está louca por causa dor da perda, e que ela projeta na sua atual esposa a própria filha, daí a dor enlouquecedora que sente e a necessidade de afirmar que a filha está viva quando na verdade não está.
A sogra, por outro lado, declara que o Sr. Ponza é louco e que, quando sua esposa voltou de uma casa de repouso onde havia sido internada justamente por seu amor excessivo, acreditando que ela estava morta, ele se apaixonou, como se ela fosse outra mulher, obrigando-a a voltar a casar-se com ele num segundo casamento, e é por isso que agora ela – mãe e sogra –, para não perturbar o seu frágil e recém-renascido amor, mantém-se prudentemente à distância.
Estas são as duas versões: é difícil estabelecer com certeza em quem acreditar, visto que todos os documentos foram destruídos no terremoto e os poucos restantes são adequados para provar a veracidade de uma e de outra hipótese. Para dificultar ainda mais na busca da verdade, os próprios protagonistas da polêmica intervêm, trocando – ora para um, ora para outro, ora abertamente – acusações de loucura e arrependimento pela triste situação do outro.
O enredo cuidadosamente construído se desdobra gradualmente à medida que cada nova informação é revelada. Em vez de se somar ao já estabelecido, cada nova informação invalida o que se acreditava anteriormente, deixando os mexericos da cidade, assim como o público, desconfiados. Para piorar, os registros de residência dos novos moradores (Sr e Sra Ponza e a Sra Frola) foram destruídos por um terremoto na sua antiga cidade, soterrando as evidências documentais.
O debate continua sem solução. Aqui chama a atenção para Laudisi, cunhado do comendador Agazzi, que desempenha o duplo papel: primeiro de advogado do diabo tentando confiar nos fatos. E se diverte com a insistência alheia em uma verdade, quando se sabe que podem haver várias. Os moradores da cidade enfrentam no final a própria senhora Ponza, que revela ser a segunda esposa do senhor Ponza e filha da senhora Frola. E essa resposta só satisfaz Laudisi, que sabe que não adianta tentar entender as regras desse jogo. É como a senhora Ponza entende, a única solução que a compaixão permite.
A verdade não está em fato externo e objetivo, mas uma realidade psicológica interna. Pirandello demonstra dramaticamente que a senhora Ponza é ambas as mulheres, dependendo do que o seu observador escolhe que ela é. “Assim é (se lhe parece)”.
Prefeito
Ah, não senhora. Para si própria, a senhora deve ser ou uma ou outra
Senhora Ponza
Não, senhores. Para mim, sou aquela que se crê que eu seja. (olha todos através do véu e se retira) (pg 174)
Numa época como essa que estamos vivendo, em que as chamadas verdades estão ao alcance de todos a qualquer momento (como na internet, por exemplo), a obra de Pirandello nos adverte que a verdade é apenas um reflexo de nós mesmos, o que queremos ver. Mas o que mais importa é que, afinal, não é tão fundamental para nós. Assim é (se você quiser), precisamente.
Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.