Seis Personagens à Procura de um Autor
“Seis Personagens à Procura de um Autor” é uma peça de Luigi Pirandello que fala deliberadamente a importantes tendências na história do teatro italiano. Sua referência mais proeminente é a tradição influente e de longa data da commedia dell” arte, na qual atores mascarados interpretam personagens arquetípicos e improvisam cenas com base em esboços, máscaras referenciando suas emoções dominantes.
Reza a lenda que a primeira apresentação de “Seis Personagens à Procura de um Autor”, em Roma, não acabou muito bem. Pirandello escapou do teatro para evitar o pior, ou seja, a revolta da plateia com insultos e protestos. Pirandello, depois da fracassada estreia, revisou o texto e escreveu um longo e famoso Prefácio, que vocês poderão ver escrito no livro de 1925. Em sua versão revisada, ele sugeriu que os seis personagens usassem máscaras representando as suas emoções essenciais.
A peça desafia as convenções do teatro. No Prefácio. Pirandello diz o seguinte:
“Acaso será que existe um autor capaz de indicar “como” e “por que” uma personagem lhe nasceu na fantasia? O mistério da criação artística é idêntico ao do nascimento natural. Uma mulher que ama poderá desejar muito ser mãe, porém, o desejo apenas, embora profundo e intenso não é suficiente. Entretanto, um dia ela se tornará mãe, sem, contudo, ter-se apercebido do momento em que isso se deu. O mesmo acontece com o artista: vivendo, ele reúne em si um sem número de germes de vida e nunca poderá afirmar “como” e “por que”, num determinado momento, um desses germes vitais penetrou na sua fantasia para tornar-se, também ele, uma criatura viva, no plano da vida superior, acima da volúvel existência de todos os dias..
Posso apenas dizer que, sem nunca ter procurado esses seis personagens que agora se veem no palco, encontrei-os diante de mim, tão reais que os podia tocar, tão vivo que lhes ouvia a respiração. Estavam ali presentes, cada qual com o seu tormento secreto, unidos pelo elo do nascimento e do entrelaçamento de suas respectivas vicissitudes, e esperavam que os fizesse entrar no mundo da arte, compondo com suas pessoas, com suas paixões e fraquezas, um drama, um romance ou, no mínimo, uma novela.
Nascidos vivos, queriam viver.” (pg 6, pag 7)
“... Assim fiz. Naturalmente aconteceu o que deveria ter acontecido^: uma mistura de trágico e de cômico, de fantasia e de realidade, numa situação humorística completamente nova e bastante complexa; uma verdadeira tragédia devido às personagens que a vivem e a sofrem já ao respirarem ao falarem aio se mexerem. Tragédia que impõe, de toda maneira, sua representação e, finalmente, a comédia que sempre surge na tentativa vã de uma representação cênica feita de improviso” (pág. 9, pg10)
A peça é uma sala de espelhos que testa o conceito de realidade. Rompe os limites entre a fantasia e a realidade, arte e a vida, e o outro e o eu. Seus personagens sabem que são personagens e perguntam o que isso significa para eles – mesmo que isso exija a violação das regras fundamentais para o universo ficcional da peça.
A premissa surpreendente da peça – a interrupção de um ensaio de uma peça por seis personagens conjurados e depois abandonados pelo autor – foi inovador na época. Realidade e fantasia trocando carícias. Foi o que fez o crítico Robert Brunstein ao dizer o seguinte sobre Pirandello:
“A influência de Pirandello na dramaturgia do século XX é incomensurável. Em sua angústia sobre a natureza da existência, antecipa-se a Sartre e Camus; em sua percepções sobre a desintegração da personalidade e isolamento do homem, antecipa-se a Samuel Beckett; em sua implacável guerra com a linguagem, teoria, conceitos e espírito coletivo, antecipa-se a Eugênio Ionesco; na maneira como aborda o conflito entre a verdade e a ilusão, antecipa-se a Eugene O ‘Neil ( e posteriormente, a Harold Pinter e Edward Albee); em suas experiências com o teatro, antecipa-se a uma multidão de dramaturgos experimentais, incluindo Thorthon Wilder e Jack Gelber; em seu emprego da interação de atores e personagens, antecipa-se a Jean Anoilh; em sua visão de tensão entre máscara pública e a face particular, antecipa-se a Jean Giraudoux; e em seu conceito do homem como animal que interpreta um papel, antecipa-se a Jean Genet (XVII, XVIII)
Vamos ao que interessa, vamos para o palco? Logo no início uma nota, que diz que:
“A comédia não tem atos nem cenas. A representação só será interrompida, uma primeira vez, sem que desça o pano, quando o Diretor e a Personagem principal se retirarem para combinar o roteiro das peças e os Atores deixarem o palco; uma segunda vez, quando o Maquinista, por engano, fizer o pano descer (pg 28)
A peça começa com um grupo de atores ensaiando uma peça. Enquanto estão ensaiando, aparecem seis personagens usando máscaras representando uma emoção diferente, que permanece fixa ao longo da peça. Esses personagens são: o Pai, a Mãe, o Filho, o Menino, a Irmã e a Enteada. Eles dizem a todos presentes (atores, diretores e o ponto) que eles têm a sua própria história, tudo porque seu autor havia perdido o interesse na história deles. E eles agora procuram um novo autor que conte as suas histórias.
“Pai (afastando-se)
Sim desperdiçadas, isso mesmo! (ao Diretor, subitamente) No sentido que o autor que nos criou vivos não quis, depois, ou não pode, materialmente, meter-nos no mundo da arte. E foi um verdadeiro crime, senhor, porque quem tem a sorte de nascer personagem viva, pode rir até a morte. Não morre mais! Morrerá o homem, o escritor, instrumento de criação; a criatura não morre jamais! E para viver eternamente, nem mesmo precisa possuir dotes extraordinários ou realizar prodígios. Quem era Sancho Pança? Quem era Dom Abbondio? E, no entanto, vivem a eternidade, porque germes vivos tiveram a felicidade de encontrar a matriz fecunda, eternidade.” (pg 45, pg 46)
O Diretor e seus assistentes estão inicialmente convictos de que essas pessoas escaparam de um sanatório. Mas o Pai, falando pelos outros personagens, argumenta que eles são tão “reais” quanto as pessoas que se preparam para ensaiar sua peça. O Pai explica que ele e os outros personagens querem alcançar sua vida plena completando a história que só existe em fragmentos no cérebro do autor.
Diretor: Onde está o texto?
O Pai: Está em nós, senhor. (os Atores riem) O drama está em nós, somos nós! E é grande a nossa impaciência, o nosso desejo de representa-lo, impelidos que somos pela paixão que ferve dentro de nós e não nos dá trégua! . (pg 47)
O Pai é o principal porta-voz dos seis personagens. Ele é pai biológico do filho de 22 anos que teve com a Mãe, e é padrasto dos três filhos que a Mãe teve durante seu relacionamento com a secretária do Pai.
A Mãe, que foi morar com outro homem, com quem teve mais três filhos: a Enteada, o Menino e a Irmã. Cada personagem tem uma emoção fixa, que é incorporada pela máscara. A emoção do Pai é o remorso, o arrependimento por ter mandado embora sua esposa, a Mãe. O Menino está vestido de preto de luto, como sua Mãe e as duas irmãs, em memória de seu pai biológico.
O Pai é um intelectual que se casou com uma camponesa (a Mãe). As coisas corriam bem até que ela se apaixona por seu secretário, encorajado pelo Pai, que não a aguentava mais. A Mãe se afasta dele, deixando para trás o Filho mais velho que fica amargurado por ter sido deixado para trás pela Mãe.
O Pai começa a sentir falta dela e procura ativamente os outros filhos para vê-los crescer. A Enteada lembra que ele a esperava depois da escola para lhe dar presentes. O outro homem acaba se afastando da cidade com a família, e o Pai os perde de vista.
A versão do Pai desses eventos é contestada de várias maneiras tanto pela Mãe quanto pela Enteada. O Pai afirma que ele rejeitou a sua esposa por excesso de preocupação com a esposa. No entanto, a Mãe afirma que o Pai a forçou nos braços do outro homem (pai da Enteada, Menino e a Irmã) porque ele estava simplesmente entediado com ela, e a Enteada afirma que o pai a perseguia sexualmente enquanto ela crescia. Todos concordam que o Pai perdeu o rastro de seus enteados porque o amante da esposa teve diferentes empregos e mudou-se repetidamente.
Só que o homem que havia assumido a Mãe morre, a <ãe e seus filhos voltam para a cidade. Ela consegue um emprego na loja de roupas da Senhora Pace, sem saber que essa senhora estava interessada por sua enteada para torná-la uma prostituta. Um dia o Pai chega, necessitando de uma companhia feminina, e se encontra com a Enteada sem saber que ela era a sua enteada. Ele começa a seduzi-la, mas eles são interrompidos quando a mãe o vê e grita. Envergonhado, ele permite que a Enteada e toda a família morem com ele, fazendo com que seu filho mais velho se recomponha depois da separação.
Mas nada consegue devolver a paz. Todos brigam com o filho, que se recusa a mostrar seus sentimentos e insiste que ele é um personagem não realizado dramaticamente falando. Ele tenta sair do teatro, mas não pode ir até que sua cena termine. O diretor concorda que os personagens tenham material para um drama e se oferece a entrar em contato com um autor. O diretor concorda.
O Diretor concorda em se tornar o autor deles e faz com que eles comecem a representar a cena em que o Pai está na loja de roupas conhecendo a Enteada pela primeira vez. O diretor interrompe o enredo, e seus Atores tentam imitá-lo, mas tanto o Pai quanto a Enteada protestam e dizem que a encenação não é nada realista. O Diretor interrompe os atores e permitem que o Pai e a Enteada terminem a cena. O Diretor muda o cenário para o segundo Ato e obriga que os personagens realizem a cena.
Logo se descobre que Madame Pace não está disponível para cena. Ao começar a cena do bordel, o Diretor não fica satisfeito, mas a Mãe interrompe cena.
A Mãe: (insurgindo-se e meio ao espanto e a consternação de todos os Atores que não cuidavam nela e agora saltarão ao seu grito, para segurá-la, rindo, pois ela, nesse meio tempo, arrancou a peruca de Madame Pace e jogou-a no chão)
Bruxa! Bruxa! Assassina! A Minha Filha! (pg 97)
O Diretor fica feliz com o que vê e pede que os atores atuem para o Pai e a Enteada. Ela ri de a interpretação dos Atores representarem sua cena de maneira bem diferente da maneira como ela vê. Quando o Pai e Enteada retomam a atuação, o diretor censura a cena, não permitindo que a Enteada tire a roupa. Ele explica que tal ato criaria um problema para a plateia. A Enteada acusa o Diretor de ser cúmplice com o Pai, pois a forma sugerida por ele de atuação não condiz com a verdade da história, ou seja, omite o que o Pai havia feito. Para que a cena pareça real, a Mãe sofredora deve ser desculpada. Mas, enquanto a Mãe está explicando seu tormento, o confronto final da cena realmente se desenrola, com a Mãe entrando no bordel para descobrir a Enteada nos braços do Pai.
O Diretor está impaciente com as sugestões dadas pelos personagens sobre como interpretar a cena, enquanto os personagens não gostam de referências como “ilusão” cênica, acreditando que suas vidas são reais. O Pai aponta para o Diretor e pergunta o que ele entende por sua própria identidade pessoal. Segundo o Pai, o Diretor é também uma ilusão, que os elementos-chave de sua personalidade mudam constantemente enquanto os dos personagens permanecem constantes.
O Pai: Oh! Nada senhor. Fazê-lo ver, se nós (indica-se e às outras Personagens), a não ser a ilusão, não temos outra realidade, é conveniente que o senhor também desconfie da sua realidade, desta que o senhor hoje respira e toca em si, porque – com a de ontem – está destinada a que amanhã descubra que não passa de ilusão
O Diretor: (resolvendo a levar em troça)
Ah, muito bem! E diga, ainda mais que, com esta peça que vem representar aqui, diante de mim, o senhor é mais real e verdadeiro do que eu!...(pg125)
.... O Pai (com um grito):
Mas a nossa não! Está vendo? A diferença é esta! Não muda, não pode mudar, nem ser outra, jamais, porque já está fixada – assim – “esta” – para sempre – (é terrível, senhor!) realidade imutável, que devia dar-lhes um arrepio ao aproximarem-se de nós! (pg 126)
O Diretor decide que, independentemente do que os personagens venham a propor, a próxima ação será encenada com todos no jardim. Após muita discussão sobre as próximas cenas.
Entrando no jardim, ele vê a Filha mais nova se afogando na fonte e corre para tirá-la de lá. No processo, ele vê o enteado com um revólver. O Filho atira em si mesmo, fazendo com que a mãe grite por ele. O diretor, assistindo a toda essa cena, não consegue dizer se ainda está atuando ou se é realidade. Cansado de tudo, ele pede o fim do ensaio.
“A Mãe se aproxima do Filho e tenta a falar com ele, mas ele se recusa e a deixa. Entrando no jardim aparece a filha mais nova afogada.
Filho: (lentamente olhado para diante de si)
Acudi, precipitei-me para tirá-la de lá..., Mas, de repente, parei, porque atrás daquelas árvores vi uma coisa que me gelou: o Rapazinho, o Rapazinho que estava quieto com olhos de louco, a olhar na fonte, a irmãzinha afogada.
(A Enteada, que permaneceu curvada junto da fonte para ocultar a Menina, responde com um eco no fundo, soluçando perdidamente.)
(Pausa)
(Atrás das árvores, onde o Rapazinho estava escondido, reboa um tiro de revólver.)
A Mãe (com um grito lancinante, correndo com o Filho e todos os Atores, em meio a um tumulto geral)
Filho! Meu Filho! (Depois entre a confusão e os gritos desconexos dos outros) Socorro!... Socorro!...
Diretor (em meio aos gritos, procurando abrir caminho, enquanto o Rapazinho é levantado pelos pés e pela cabeça e levado para fora, por trás do telão branco)
Diretor: Feriu-se, de verdade?...
(Todos, exceto o Diretor e o Pai, que permanece arrasado perto da escadinha, saíram por trás do telão descido, que faz de céu, e ficam lá um momento, murmurando augustiosamente. Depois, por um e por outro lado do telão, voltam à cena os Atores.)
Primeira Atriz: (entrando pela direita, penalizada)
Morreu! Pobre menino! Morreu! Oh! Que coisa meu Deus!...
Primeiro Ator: (entrando pela esquerda)
Morto o quê! Ficção, ficção! Não acredite!
Outros Atores (Pela direita)
Ficção? Realidade! Está morto!
Outros Atores: (pela esquerda)
Não! Ficção! Ficção!...
O Pai (levantando-se e gritando entre eles)
Mas que ficção! Realidade, realidade, senhores! Realidade! ... (E sair [á também desesperadamente, por trás do telão.
O Diretor (Não podendo conter-se)
Ficção, realidade! Vão todos para o diabo que os carregue! Luz! Luz! Luz!
(De repente, todo o palco e toda a sala do teatro resplandecem, inundados por vivíssima luz. O Diretor respira, como libertado do pesadelo, e todos se olham nos olhos. Atônitos e confusos. (pág. 140, pág. 141)
Através do confronto dos Personagens com os Atores e da própria forma da peça, Pirandello mostra o que acontece quando fantasia e realidade colidem e sugere que não são tão diferentes para começar. As noções de que o mundo que as pessoas habitam é realmente real e que as pessoas têm suas identidades fixas, sugere Pirandello, são simplesmente interpretações subjetivas e psicologicamente coloridas de uma realidade muito mais complexa e totalmente incognoscível. O conflito central entre os Atores e os Personagens é sobre qual deles é “real”. A própria formulação desse conflito inverte a relação usual entre realidade e fantasia: ambos os lados estão tentando (atores e personagens) provar a sua realidade para ganhar o direito de encenar uma fantasia.
Pirandello também usa o próprio teatro para desafiar a divisão entre fantasia e realidade. Os Atores e o Diretor sabem intuitivamente que vivem no mundo real, e os Personagens, no fictício. Mas o Pai argumenta que o próprio propósito do teatro é dar vida à fantasia, desafiar os conceitos de realidade das pessoas.
Fico por aqui. E Indico o livro “Seis Personagens à Procura de um Autor”, de Luigi Pirandello, que merece um lugar de “HONRA” na sua estante.