Entre Quatro Paredes
Jean Paul Sartre nasceu em Paris, onde viveu a maior parte de sua vida. Ele estudou na École Normale Supérieure até 1929, mesmo ano em que conheceu a filósofa existencialista e feminista Simone de Beauvoir, sua parceira de toda a vida. Sartre passou parte de sua vida em Le Havre, no norte da França, voltou a Paris em 1937 e foi convocado para o exército francês com a eclosão da Segunda Guerra Mundial em 1939. Ele serviu como o meteorologista na fronteira da região da Alsácia (onde sua mãe tinha raízes), mas foi capturado e mantido prisioneiro de guerra até 1941. Quando voltou, viu Paris ocupada pelos alemães e escreveu muito. Participou de uma forma bem discreta da resistência francesa à ocupação e escreveu muitas de suas obras conhecidas, como “Idade da razão” (obra resenhada aqui no site) e a peça de que iremos falar hoje: “ Entre Quatro Paredes”. E a sua obra filosófica: “O Ser e o Nada”.
Durante grande parte da década de 1930, ensinou filosofia e estudou obras dos filósofos alemães Edmund Husserl e Martin Heidegger, que, junto com Friedrich Nietzsche e Soren Kierkegaard, antecipou alguns conceitos-chaves do existencialismo.
“Entre Quatro Paredes” é uma pequena parte notável do que ele nomeou de existencialismo francês. Movimento esse que ele encabeçou e incorporou em forma de ensaios filosóficos. E transformou muito de seu pensamento filosófico em obras literárias. De suas peças, “Entre Quatro Paredes” é de importância fundamental tanto como texto teatral como preceito filosófico que dominou a era do pós-guerra. Um novo tipo de drama que influenciou significativamente o teatro na segunda metade do século XX. Existem críticos e estudiosos que sugerem que “Entre Quatro Paredes” influenciou autores como Samuel Beckett e, por extensão, o teatro do absurdo, que em última análise derivam dela. Podemos dizer sem pestanejar que “Entre Quatro Paredes” transformou, através de seus métodos, novas possibilidades para o drama.
“Entre Quatro Paredes” começa com um jornalista carioca chamado Garcin, que se apresenta assim: “Eu sou Joseph Garcin, publicista e homem de letras”. Ele é conduzido por um criado até uma sala de estar sem janelas e bem iluminada, na qual há três sofás, uma pesada estátua de bronze e uma lareira. Garcin vai percebendo que, apesar de uma mobília respeitável e da polidez do criado, ele está no inferno, para onde foi enviado para aeternidade. Logo em seguida aparece Inês, uma lésbica, e Estelle, uma burguesa socialite da moda. Cada um se senta em um dos sofás e relata a causa de sua morte:
Inês
A senhora é muito bonita. Eu queria ter flores para lhe desejar as boas-vindas.
Estelle
Flores? É mesmo. Gostava muito de flores. Aqui elas murchariam: faz tanto calor. O principal, não acha? É conservar o bom humor. A senhora está...
Inês
Sim, a semana passada. E a senhora?
Estelle
Eu? Ontem. A cerimônia ainda não acabou. (fala com naturalidade, mas como se estivesse vendo o que descreve.) O vento desmanchava o véu da minha irmã. Ela faz o que pode para chorar. Vamos, vamos! Mais um esforço! Aí está. Duas lágrimas, duas lágrimas pequenas brilhando sob o crepe. Olga Jardet está muito feia esta manhã. Sustém minha irmã pelo braço. Não chora, por causa do rímel. E devo confessar que eu, no seu lugar... Era a minha melhor amiga.
Inês
Sofreu muito senhora?
Estelle
Não. Estava embrutecida.
Inês
O que foi que...
Estelle
Uma pneumonia. (mesma atitude.) Pronto. Acabou-se. Vão se embora todos. Bom dia! Bom dia! Quantos apertos de mão! Meu marido ficou em casa: está doente de pesar. (A Inês) E a senhora?
Inês
O gás
Estelle
E o senhor aí?
Garcin
Doze balas no peito. (Gesto de Estelle) Desculpe-me sou um morto de boa sociedade.
Estelle
Oh! Meu caro senhor! Se quisesse deixar de empregar palavras cruas assim!... É... é “chocante”. Afinal de contas, o que significa isso? Quem sabe se nunca estivesse tão vivo como agora? Quando for preciso referir-se a este... estado de coisas, proponho que nos chamemos “ausentes”, será mais correto. O senhor está há quanto tempo ausente?
Garcin
Há um mês, mais ou menos.
Estelle
De onde é o senhor?
Garcin
Do Rio.
Estelle
Eu de Paris. Tem ainda alguém por lá?
Garcin
Minha mulher. (Mesma atitude de Estelle) Ela veio ao quartel, como todos os dias; não a deixaram entrar. Olha entre barras d grade. Ainda não sabe que estou ausente, mas desconfia. Vai se embora, agora. Está toda de preto. Tanto melhor: não precisará mudar de vestido. Ela não chora: não chorava nunca. O sol está lindo, e ela está toda de preto na rua deserta, com aqueles seus grandes olhos de vítima. Ah! Ela me irrita. (pg 29, pg 30, pg 31)
Para passar o tempo, Garcin sugere que eles deveriam especular por que foram condenados. Estelle diz que, embora casada com um homem mais velho, teve um caso fora do casamento, e Garcin diz que se vendeu como um repórter de um jornal pacificista:
Garcin
Eu dirigia um jornal pacifista. Rebentou a guerra. Que fazer? Todos os olhos estavam grudados em mim. “Vamos ver se ele terá coragem!” Pois tive coragem. Cruzei os braços e eles me fuzilaram. Que crime há nisso? Que crime? (pg 39)
Inês acusa os dois (Garcin e Estella) de não falarem a verdade sobre as versões de suas histórias de vida:
Inês
Estou vendo. (Um tempo) Para quem está representando essa comédia, se estamos entre nós?
Estelle (com insolência)
Entre nós?
Inês
Entre assassinos. Estamos no inferno, minha filha; e aí não pode haver erros, e não se condena ninguém a toa.
Estelle
Cale-se!
Inês
No inferno! Condenados! Condenados!
Estella
Cale-se! Faça o favor de calar-se. Proíbo-a de empregar expressões grosseiras.
Inês
Condenada, a santinha. Condenado o herói sem mácula. Tivemos o nosso momento de prazer, não é verdade? Houve pessoas que sofreram por nós até a morte, e isso nos divertia bastante. Agora temos que pagar.
Garcin (erguendo a mão)
Vai calar-se ou não?
Inês (encarando-o sem medo com enorme surpresa)
Ah! (Um tempo) Esperem aí! Agora compreendi, agora sei por que nos puseram juntos!
Garcin
Tome cuidado com que vai dizer.
Inês
Vão ver como é tolo. Tolo como tudo. Não existe tortura física, não é mesmo? E, no entanto, estamos no inferno. Ninguém mais chegará. Ninguém. Temos que ficar juntos, sozinhos, até o fim. Não é isso? Quer dizer que há alguém que faz falta aqui: o carrasco. (pg 40, pg41)
Perceptivelmente, Inez sugere que eles serão o tormento um do outro. Para contrariar esta possibilidade, Garcin propõe que “cada um de nós tem muito que se incomodar consigo mesmo. Acho que eu seria capaz de passar dez mil anos sem falar”.
No entanto, cada um tem a consciência da dependência mútua. É nessa relação triangular que reside o sofrimento de todos ali presentes. Inês se sente atraída por Estelle, que há muito tempo depende dos homens para validar a autoestima. Percebendo a futilidade de sua situação e aproveitando a oportunidade para autocompreensão, Garcin propõe que eles confessem sinceramente por que foram condenados.
Garcin
...Estou aqui torturei minha mulher. Apenas isso. Durante cinco anos. Naturalmente, ela está sofrendo. Lá está ela: assim que falo dela, começo a vê-la. É Gomez que me interessa, e é ela que eu vejo. Onde está Gomez? Durante cinco anos. Sabem? Eles lhe entregaram as minhas roupas; ela está sentada perto da janela, e pôs meu paletó histórico! E dizer que eu usei aquilo! Você vai chorar? Vai acabar por chorar? Eu entrava em casa bêbado como uma cabra, com cheiro de vinho e de mulher. Ela me havia esperado a noite toda; e não chorava. Nem uma palavra de censura, naturalmente. Apenas seus olhos. Seus grandes olhos. Não lastimo nada. Pagarei, mas não lastimo nada. Cai a neve lá fora. Mas você vai chorar, afinal? É uma mulher que tem vocação para mártir. (pg 54, pg 55)
Ele admite que abusou da esposa. Inez confessa ter traído seu primo para seduzir sua esposa e torturá-la com sua morte. Inês “confessa que precisa do sofrimento dos outros para existir”. Estelle admite que teve um filho com o seu amante. Sem querer que ninguém soubesse, ela e seu amante Roger foram juntos para a Suíça. Roger ficou em êxtase quando ela deu à luz, mas Estelle afogou a criança em um lago próximo. Quando voltaram para casa, Roger deu um tiro no rosto, e o marido de Estelle nunca suspeitou de nada. Todos contaram suas histórias e sabem que vivem no inferno. Restava uma saída: ajudarem uns aos outros, agindo com compaixão, mas Inês se recusa, dizendo que não há nada que eles possam fazer para evitar torturar uns aos outros. Mas Inês se recusa.
Com as verdades chocantes de cada um sendo reveladas, cada um anseia escapar e se livrar da censura dos outros sobre si mesmos; no entanto, quando a porta abre, ninguém consegue sair:
Inês
Então? O que você está esperando? Faça o que mandam! Garcin covarde, tem nos seus braços a Estella, a infanticida. Façam as apostas! Garcin, o covarde, conseguirá beijá-la? E eu estou vendo vocês, vendo vocês! Eu sozinha, sou toda uma multidão, a multidão, Garcin, a multidão compreende? (murmurando) Covarde! Covarde! Covarde! Covarde! É inútil fugir de mim, não deixarei você. Que é que está procurando nos lábios dela? O esquecimento? Mas eu, eu não esquecerei você. É a mim que você tem que convencer. A mim! Venha, venha! Espero por você. Veja, Estelle, ele já desaperta o seu abraço, é obediente como um cachorro... Você não há de tê-lo!
Garcin
Não ficará escuro, nunca?
Inês
Nunca.
Garcin
Você me verá sempre?
Inês
Sempre.
(Garcin deixa estelle e dá alguns passos pela cena. Aproxima-se do bronze)
Garcin
O bronze... (apalpa-o) Pois bem! É agora. O bronze aí está, eu o contemplo e compreendo que estou no inferno. Digo a vocês que tudo estava previsto. Eles previram que eu estava previsto. Eles previram que eu havia de parar diante desta lareira, tocando com minhas mãos esse bronze, com todos esses olhares que me comem. (Volta-se bruscamente) Ah! Vocês são duas? Pensei que eram muito mais numerosas (Ri) Então, isto é que é o inferno? Nunca imaginei... Não se lembram? O enxofre, a fogueira, a grelha... Que brincadeira! Nada de grelha. O inferno são os Outros. (Pg 97, pg 98)
Quando a validação e a identidade derivam dos outros, os outros se tornam o inferno, um estado onde a tortura não é infligida por demônios, mas autoinfligida e inevitável. E aqui estão os temas da peça. O que está embutido nas relações sociais e a relação com a liberdade. O inferno é uma prisão onde não há labaredas, nem chicotes, nem chifres ou um terrível demônio. Os verdadeiros demônios vivem nos acusando. Somos ou não somos inocentes? Uma pergunta sem resposta vivida nas quatro paredes de nossa solidão. O inferno são os outros é a verdade existencial que está em cada indivíduo. As versões que muitas vezes fazemos sobre nós mesmos têm suas consequências, quando encontramos com outras pessoas que tentam fornecer a medida para o julgamento moral de nossas atitudes.
Sartre nos apresenta em um palco uma peça onde o “eu” encontra-se encurralado na solidão, “Entre Quatro Paredes”. Engraçado que isso me faz lembrar o programa Big Brother, mas isso é uma outra história. “Entre Quatro Paredes”, de Jean Paul Sartre, merece um lugar de honra na sua estante.