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Sob pressão: a rotina de guerra de um médico brasileiro

“Sob Pressão” é um desses livros que nos levam a indignação, repulsa, desprezo por tudo aquilo que nos é apresentado sobre o sistema público de saúde no Brasil em geral, e no Rio de Janeiro em particular, pelo doutor Marcio Maranhão. O livro tem a pegada de um thriller. Não é só a pegada. É um thriller mesmo, e essa tensão acontece pelo grau de dificuldades que envolvem os doentes, médicos contra todo o sistema de saúde nefasto.

Antes de abrir a caixa torácica do sistema público de saúde é preciso fazer alguns procedimentos básicos, lavar as mãos, lição de Florence Nightngale para não ser infectado pela política na saúde, em vez de uma política de saúde, para não ser infectado por uma política de governo em vez de uma política de Estado. E para isso não adianta erguer um hospital aqui, um posto de saúde acolá, ou essa solução estapafúrdia de importar médicos cubanos. Tudo isso são soluções eleitoreiras para problemas complexos.

“Não se pensa a saúde com a profundidade necessária, como um sistema integrado, preventivo, que tem que funcionar em todas as pontas, com uma lógica que precisa juntar as peças de um quebra cabeça. Daí o caos a terra de ninguém.” (pg 29,30)

Sempre soubemos que a saúde no Brasil tinha problemas. Mas contada por um cirurgião de tórax você consegue enxergar as entranhas, de onde o dinheiro é drenado, o salário de um profissional que luta honestamente em condições improvisadas. O fim de centros de excelência como o hospital de Tisiologia e Pneumologia (I.T.P.) especializado em tuberculose, onde profissionais com trabalhos publicados no exterior, que lutavam bravamente para se manter não podem operar porque o elevador da porta pantográfica não funciona e não há modos de descer o doente para o centro de cirurgia.

Para abrir uma caixa torácica é preciso ter peito. O doutor Marcio Maranhão abre para nós essa caixa formada por estruturas nobres e vitais desse organismo público, não para encontrar a alma, nem muito menos o espírito, como no filme Fausto do diretor russo Sokurov, baseada na obra de Goethe. Não há alma. Há uma caixa preta que precisa ser aberta. E as consequências que todos saberemos quando lermos esse livro.

O sofrimento é contagioso. A dor do outro, pega em você. E ao abrir a caixa torácica da saúde pública vamos aos poucos percebendo que todos os órgãos vitais estão contaminados pela corrupção, pelas péssimas condições de trabalho, pelo sucateamento, enfim, estamos assistindo a falência múltipla de todos órgãos vitais da saúde no Brasil.

E quando se vivencia tão perto o drama da vida humana, as histórias ficam tatuadas em você. Provavelmente, todas as histórias desse cirurgião passarão indiferentes para as autoridades públicas. Como já o são. Ou então muitos cínicos poderão perguntar: por que não exercer a medicina na Barra da Tijuca, abrir um consultório na Zona Sul? E parar de reclamar.

Mesmo para aqueles portadores de planos de saúde caros, apenas um lembrete: vão cair na rede pública, pois os planos não cobrem. E o que os planos de saúde fazem? Discutem, pechincham, questionam até que o doente vai parar no SUS. “As internações pelo SUS de beneficiário de planos de saúde privados aumentaram de 101.747, em 2001, para 222.944, em 2012”. Esses números dramáticos refletem a recusa das operadoras desses planos em prestar atendimento.

Nosso cirurgião torácico vai relembrando as improvisações que teve que se submeter quando uma menina esfaqueada pelo namorado chega até ele com um quadro grave de “quase” infecção generalizada. Em uma atitude quase “pavloviana” decide fazer uma intervenção na enfermaria, no meio de uma plateia não acostumada a isso. Felizmente, final feliz. Mas a pergunta que fica é: e se desse errado? Ganharia um processo por imprudência. E se ele não fizesse o procedimento? Ela iria morrer e colocaria no prontuário que não havia condições de operá-la. Simples assim.

Suas experiências no Serviço de Atendimento Móvel de Urgência (Samu) são de arrepiar. Entrar em favelas controladas pelo tráfico para pegar um paciente grave e ao mesmo tempo encontrar um lugar em um hospital a procura de vaga e todos superlotados. Tudo isso após 36 horas de plantão.

Em 2010, 776 pessoas morreram à espera de um leito de UTI no Rio de Janeiro. E quem virou o vilão de tudo isso? O médico. A Imprensa numa atitude fácil e não investigativa estampa nas manchetes: “Médicos se recusam a dar assistência”.

“Sob pressão”, é mais que um livro, é uma cirurgia torácica nos órgãos públicos de saúde. Uma realidade caracterizada pela insuficiência de leitos, superlotações das emergências, carência e má formação de profissionais da saúde, desigualdade na distribuição de médicos, falta de medicamentos, insumos hospitalares, equipamento. É uma cirurgia sem anestesia que dói não só no paciente, mas em todos médicos envolvidos na hercúlea tarefa de mudar o procedimento em órgãos contaminados pela metástase da indiferença.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Fatos reais


< Máscaras O Sonho do Celta >
Sob pressão: a rotina de guerra de um médico brasileiro
autor: Márcio Maranhão
editora: Foz

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