Vozes de Tchernóbil – A História Oral Do desastre Nuclear
Vozes de Tchernóbil, a história oral do desastre nuclear, rendeu à jornalista Svetlana Aleksievitch o Prêmio Nobel de literatura em 2015. O livro consiste de três partes, cada uma das quais feita na forma de monólogos. Esses monólogos são originados da transcrição de entrevistas entre a autora e as testemunhas, cujas vidas foram, muitas delas, devastadas pelo desastre de Tchernóbil. Esses monólogos são na verdade os depoimentos oculares das pessoas que vivenciaram o evento.
O que chama muito a atenção é como Svetlana Aleksiévitch optou por destacar o papel das vítimas da tragédia, apenas interferindo como narrador em suas histórias. Quando nos envolvemos com o livro, temos a sensação de que as vítimas estão conversando com alguém, mas o papel da autora é insignificante, quase despercebido. No final, ela compartilha suas experiências na condução das suas experiências.
O livro tem como objetivo contar uma história através das lembranças gravadas nas memórias daqueles que testemunharam o desastre no fatídico 26 de abril de 1986, quando o reator de uma usina nuclear explodiu e pegou fogo na região no norte da Ucrânia, desencadeando o pior acidente da história.
Muitas vozes são ouvidas, bombeiros, soldados, camponeses aldeões, burocratas do governo, cientistas, engenheiros. Mães lamentando seus filhos, filhos lamentando a morte de seus pais, pais sem palavras lamentando a dor pela perda de seus filhos. Cada uma das vítimas tem a sua própria voz, seu próprio relato pessoal dos eventos que se desenrolaram, os relatos de sobrevivência sombria diante de um desastre nuclear. Cada um revela uma perspectiva diferente, mas ecoando o mesmo coro das mais diferentes emoções: medo, raiva, incerteza. Tristeza e resiliência diante de perdas incompreensíveis.
O acidente envolto em um mistério foi um divisor de águas tanto na guerra fria quanto na história da energia nuclear. O desastre ocorreu perto da cidade de Tchernóbil, que fica na fronteira entre a Ucrânia e a Bielorrússia. Instrumentos registraram altos níveis de radiação na Polônia, Alemanha, Áustria e Romênia. Em 30 de abril, na Suíça e no Norte da Itália. No dia 1º e 2 de maio, na França, Bélgica, Holanda, Grã-Bretanha e norte da Grécia. No dia 3 de maio, em Israel, Kuwait e Turquia. Partículas gasosas transportadas pelo ar viajaram o mundo; em 2 de maio foram registradas no Japão, em 5 de maio na Índia, em 5 e 6 de maio nos EUA e no Canadá.
Para piorar a situação, a URSS era uma ditadura. A divulgação de um acidente nuclear era considerada de alto risco político, mas, a essa altura, era tarde demais: a fusão do núcleo do reator já tinha espalhado radiação em todas as regiões do mundo. Depois de negar ter havido um acidente, os soviéticos finalmente fizeram um breve anúncio no dia 28 de abril.
O mundo começou a perceber que estava diante de um evento histórico. Toneladas de urânio foram emitidas na atmosfera, e a URSS acabou evacuando 335 mil pessoas, definindo uma zona de exclusão com um raio de aproximadamente de 30 km do reator. O número de mortos, inicialmente foi de 28 pessoas em decorrência do acidente e mais de 100 pessoas ficaram feridas. O Comitê Científico das Nações Unidas informou que mais de 6 mil crianças e adolescentes desenvolveram câncer de tireoide após a exposição à radiação do acidente.
“A mortalidade nos últimos dez anos cresceu em 23,5%. De cada catorze pessoas, em geral ainda aptas a trabalhar, entre 46 e cinquenta anos, apenas uma morte de velhice. Nas regiões mais contaminadas, as inspeções médicas indicaram que de cada dez pessoas, sete estão doentes. Ao visitar a zona rural você se assusta com o espaço ocupado pelos cemitérios.
Até hoje muitas cifras são desconhecidas. São mantidas em segredos de tão monstruosas que são! A União Soviética enviou para o local da catástrofe 800 mil soldados em serviço de urgência e convocou “liquidadores”. A média de idade destes últimos era de 33 anos. Os mais jovens saíram da escola diretamente para o serviço.
Só na lista dos liquidadores da Belarus contam-se 115.493 pessoas. Segundo dados do Ministério da Saúde, de 1990 a 2003 morreram 8553 liquidadores. Duas pessoas por dia. (pág. 12 e pág. 13)
O livro é dividido em três partes (Terra dos Mortos, A coroação da criação, Admiração pela Tristeza), com entrevistas que variam de um ou dois parágrafos curtos a vinte páginas. Todas as três seções incluem um “coro”, simultaneamente uma imitação dos retratos da propaganda socialista de pessoas atuando em coletivos, mas também o coro altamente coreografado de uma peça grega. Coro dos soldados, o coro do povo, o coro das crianças. Tradicionalmente, um coro como em uma peça antiga grega respondendo aos eventos para o público.
O primeiro depoimento é de uma solitária voz humana. Liudmila Ignátienko, esposa do bombeiro falecido Vassili Ignátienko, uma recém-casada que viu seu marido e sua equipe correrem em direção ao reator, ansiosos para extinguir as chamas sem saber dos perigos da explosão nuclear. Liudmila implorou, mentiu para passar os últimos quatorze dias de vida ao lado dele. Viu o corpo dele começar a se decompor antes mesmo que a alma deixasse o corpo.
“O meu marido começou a mudar: cada dia eu via nele uma pessoa diferente...As queimaduras saíam para fora... Na boca, na língua, nas maçãs do rosto; de início eram pequenas chagas, depois iam crescendo. As mucosas caíam em camadas, como películas brancas. A cor do rosto, a cor do corpo... Azulado... Avermelhada... Cinza-escuro... E, no entanto, tudo nele era tão meu, tão querido! É impossível contar! Impossível escrever! E mesmo sobreviver... O que salvava era tudo que acontecia de maneira instantânea, de forma que não dava tempo de pensar, não dava tempo de chorar” (pág. 23, pág. 24)
“Fui proibida de abraçar, de acariciar o meu marido..., Mas eu... Era eu que o apoiava e o sentava na cama. Era eu que trocava os lençóis, tirava a temperatura, levava e trazia a comadre... Eu que o limpava... Passava todas as noites ao lado dele. Vigiava cada um de seus movimentos, dos seus suspiros. Apesar de eu estar no corredor e não no quarto... Um dia senti a minha cabeça girar e me agarrei no peitoral da janela. Nesse momento um médico passou e me segurou pela mão. Perguntou-me de supetão:
- Você está grávida.” (pág. 25)
Uma viúva que pagou por esse amor com a vida de sua filha, que veio a falecer assim que nasceu, dois meses depois. Morreu com problemas no coração e no fígado devido à radiação, a criança viveu apenas quatro horas. Viveu para dar o adeus, junto com o pai.
“Pelo aspecto, parecia um bebê saudável. Bracinhos, perninhas..., Mas tinha cirrose. No fígado havia 28 roentgen, e uma lesão congênita no coração. Depois de quatro horas, me disseram que ela tinha morrido. E me falaram de novo: “Nós não vamos te dar o corpo?! Sou eu que não o darei a vocês! Vocês querem tomar a minha filha para a ciência, pois eu odeio a sua ciência! Odeio! A sua ciência já levou o meu marido e agora quer mais... Não darei! Eu mesma a enterrarei. Ao lado dele... (pág. 34)
Na segunda parte do livro, “A Terra dos mortos”, as entrevistas de Svetlana Aleksievitch tratam das duras consequências do evento. Não havia um plano B para o caso de um acidente nuclear. E quando o acidente aconteceu, todos pensavam que fosse algo rápido, ou seja, um tempo depois todos voltariam para suas próprias casas. As pessoas confiavam em seu governo para protegê-las, mas corrupção somada à incompetência generalizada se seguiram.
“Queria esquecer. Esquecer tudo... Esquecer... Eu pensava que o acontecimento mais terrível da minha vida já tinha passado. A guerra. Que já estava protegido, já estava a salvo, A salvo graças ao que sabia, ao que tinha vivido. Mas...
Fui a zona de Tchernóbil. Já estive muitas vezes. E lá eu entendi que era impotente. Que não compreendo. E esse sentimento de impotência está me destruindo. Porque não reconheço este mundo. Tudo nele mudou. Até o mal é outro. O passado já não me protege. Não me tranquiliza. Não dá respostas. Antes sempre dava, agora não mais. O futuro me arruína, não o passado” (pg 57)
A radiação não foi considerada ameaçadora por aqueles em contato direto; sem opções de fugir adquiriram doenças generalizadas provenientes da radiação. As autoridades não fizeram nada para ajudar a combater os problemas, temendo o pânico em massa e histeria. As pessoas que viviam na cidade de Pripiat e nas áreas próximas não estavam cientes dos perigos potenciais que poderiam enfrentar. Os cidadãos de Pripiat não entendiam por que tinham que deixar suas casas. Pessoas de aldeias próximas pediram aos soldados que os deixassem ficar em suas casas.
A explosão ocorreu perto do feriado de 1º de maio, o Dia Internacional dos Trabalhadores. Uma data de suma importância na narrativa da ideologia comunista. Geralmente, um evento comemorado com grandes desfiles nos centros das cidades soviéticas. Na Ucrânia esse desfile aconteceria em Kiev. As autoridades de Estado discutiram se o evento ainda deveria acontecer. E o evento, mesmo com a periculosidade devido à radiação, foi realizado com toda a pompa e circunstância que a data pedia. O preço era a omissão da tragédia.
As medidas de segurança foram abandonadas e a comida contaminada circulou pelo suprimento soviético. Os funcionários – leia-se os burocratas – faziam ouvidos moucos sobre o problema.
Após a explosão, o governo soviético tomou medidas para a disseminação de informações sobre a tragédia, seus níveis perigosos de elementos radioativos liberados e os possíveis resultados da catástrofe ecológica.
Na terceira parte, “A Admiração pela Tristeza”, Svetlana Aleksiévitch dá voz para aqueles que se sentem estigmatizados, o que incluem crianças na época da explosão que já cresceram, “liquidadores”, soldados, responsáveis por extinguir os incêndios nucleares, camponeses de aldeias, médicos, professores, jornalistas, cientistas, funcionários políticos e cidadãos normais.
“Nós partimos... Quero contar como a vovó se despediu de casa. Ela pediu ao papai para apanhar no celeiro um saco de painço e espalhou tudo pelo jardim: Para os passarinhos de Deus”. Recolheu os ovos num cesto e despejou no pátio: “Para o nosso gato e para o cachorro”. Cortou um toucinho para eles. Tirou todas as sementes dos saquinhos: de cenoura, abóbora, pepino, cebola, de várias plantas e flores ... E espalhou tudo pela horta: “Que vivam na terra”. Depois, se inclinou diante de cada uma delas.
E o vovô quando estávamos saindo, tirou o chapéu.
Eu era pequeno. Tinha seis anos... não, acho que oito anos” (pg342)
Os sobreviventes afastam os julgamentos divinos implícitos de os vivos e os mortos e orientam os leitores para o processo da memória – como nos lembramos de um evento. Não há acertos de contas bíblicos; o acerto persiste na memória. Não há fechamento.
“Daqui a dezenas, centenas de anos, estes serão tempos mitológicos. Os lugares serão povoados por contos e mitos. Lendas. Eu tenho medo da chuva. Eis o que Tchernóbil provocou. Tenho medo da neve. Do bosque. Das nuvens. O vento... De onde sopra? O que traz? Isso não é uma abstração, uma conclusão racional, mas um sentimento pessoal. Tchernóbil estás na minha casa. No ser que me é mais caro, no meu filho que nasceu na primavera de 1986. Está doente. Os animais e até as baratas sabem quantas vezes vão parir. Os homens não podem saber, o criador não lhe concedeu o dom do pressentimento.... (pág. 263 pág. 264)
“Tchernobil é uma catástrofe da mentalidade russa. Você nunca pensou nisso? Certamente estou de pleno acordo com os que escrevem que não foi o reator que explodiu, mas todo anterior sistema de valores. Mas essa explicação não me é suficiente.” (pág. 264)
Não há maneiras de expressar a dor que a tragédia de Tchernóbil causou e suas consequências no mundo. Por anos os arquivos do desastre foram simplesmente omitidos. No entanto, Svetlana Aleksiévitch, através do seu livro, conseguiu encontrar uma maneira de trazer a verdade de uma forma artística. Ela conseguiu dar voz a esse trauma acumulado. As histórias das vítimas ficarão para sempre nas páginas de seu livro. E serão deixadas para as gerações futuras, que podem então fazer suas escolhas no uso da energia nuclear informadas pelas vozes reais de Tchernóbil.
“Vozes de Tchernóbil. A história oral do desastre nuclear”, de Svetlana Aleksiévitch, merece um lugar de HONRA na sua estante.