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O Sonho do Celta

O escritor Mario Vargas Llosa é um dos principais responsáveis pelo “boom” da literatura latino-americana nos anos 60 e 70. Não foi por nenhuma coincidência que ele ganhou o Prêmio Nobel em 2010. Foi mais que merecido, embora com um certo atraso. Nascido em 1936 na cidade peruana de Arequipa, Vargas Llosa foi enviado para uma escola militar antes de ir estudar Direito e Literatura em Lima e Madri. Mais tarde, ele trabalhou como jornalista em Paris para a Agence France-Presse.

A política definiu a vida de Vargas Llosa e sua produção literária. Ele apoiou a Revolução Cubana, mas na década de 1970 tornou-se um dos maiores críticos de Fidel Castro. Em 1990, em uma conversa com Octávio Paz ao vivo na televisão mexicana, ele cunhou a frase agora famosa, descrevendo “o regime semiautoritário do México sob o Partido Revolucionário Institucional como a ditadura perfeita".

Em 1990, no auge da guerrilha promovida pelo Sendero Luminoso, Vargas Llosa concorreu à Presidência do Peru como um "candidato de centro-direita reformista”. Propôs o corte de orçamento, políticas de livre mercado, propostas que apelou aos conservadores ricos, mas que alarmou os pobres. O autor perdeu a eleição para Alberto Fujimori, e desapontou muitos no Peru quando deixou o país para a Espanha.

Considero essa derrota eleitoral uma vitória em sua vida. Nunca consegui vê-lo como um político. Vargas Llosa sempre será um dos maiores romancistas do mundo com opiniões políticas. Isso para mim é o mais importante. Trocou farpas com Hugo Chavez; trocou tapas com Garcia Márquez por questões políticas, o que levou à ruptura da amizade entre eles, mas ambos reconheciam um no outro um imenso respeito literário.

“O Sonho do Celta” é um ajuste de contas frente “às fabricações idílicas da história”, que são meras fabulações sob a chancela de se passarem por ciência. E é nisso que resulta a grandeza dessa história. Neste livro, Mario Vargas Llosa descobre as realizações de um personagem real chamado Roger Casement (1864-1916), órfão de mãe aos nove anos, enviado pelo pai junto com todos os seus irmãos para Liverpool, onde acabou trabalhando como contador.
O livro começa com uma epígrafe do escritor uruguaio José Enrique Rodó:

 

“Cada um de nós é, sucessivamente, não um, mas muitos. E essas personalidades sucessivas, que emergem umas das outras, costumam oferecer os contrastes mais estranhos e assombrosos sobre si”


Foi quando tinha vinte anos que Roger Casement investiu seu tempo, seu idealismo e sua saúde no empreendimento colonial, convencido de todo coração que assim traria uma vida decente aos africanos. Mas não foi isso que ele viu. Descobriu a violência, o saque e as crueldades praticadas pelos colonizadores. Em “O Sonho do Celta”, o escritor Mario Vargas Llosa descobre as realizações deste homem conturbado por problemas de consciência, reafirmando suas credenciais como um dos grandes lutadores anticolonialistas e defensor dos direitos humanos e das culturas indígenas de seu tempo. Ele passou a maior parte da primeira década do século XX como cônsul britânico, investigando as condições de trabalho nas plantações de borracha no Congo e no Peru. Seus relatórios provocaram uma enorme indignação pública, o que lhe rendeu o título de cavaleiro em 1911.

O livro recapitula as observações de Roger Casement, e Vargas Llosa o faz de uma forma eficaz, relatando as crueldades indescritíveis nos dois continentes, na África e na cidade de Putumayo da Amazônia peruana, provocadas por homens impulsionados pela ganância, seguindo os instintos de um mundo fora da lei. Os nativos eram ridicularizados, mutilados e escravizados por funcionários predatórios de empresas de extração da borracha. Como Casement observou em seu relatório na Amazônia peruana: Todos esses crimes foram cometidos por uma empresa britânica cujo conselho de administração incluía pessoas altamente consideradas na burguesia inglesa.

Joseph Conrad escreveu seu romance “O Coração das Trevas” (livro que já está resenhado no blog) graças a Roger Casement e seus relatórios sobre as violações dos direitos humanos no Congo. Joseph Conrad chegou a dizer a Roger Casement que sem ele esse romance não aconteceria. No entanto, havia entre os dois um desacordo em suas visões sobre o colonialismo. Para Conrad, a África transformou os europeus em bárbaros; para Casement, foram as atrocidades cometidas pelos europeus em nome do Rei Leopoldo II da Bélgica que trouxeram a pior barbárie para a África.
Mario Vargas Llosa traz o fantasma de Roger Casement ao centro dos debates. O ex-cônsul britânico, que morreu como um revolucionário irlandês, ressurge de maneira inquieta quase um século depois. Sim! Sua repugnância ao colonialismo o levou a ver a Inglaterra como um inimigo a ser vencido. E se transformou em fervoroso nacionalista irlandês.

Casement foi canonizado por radicais políticos e demonizado pelo governo britânico, que fez de tudo para colocar sua reputação no limbo, publicando seus diários pessoais, que continham desejos homossexuais e atividades envolvendo jovens. Esses diários continuam controversos sob a suspeita de terem sido fabricados pelos agentes secretos britânicos. Mas Mario Vargas Llosa tem uma versão bem particular: acredita que as fantasias contidas em seus diários são fantasias masturbatórias de um homem incapaz de aprovar seus desejos sexuais.

O fantasma está de volta graças ao vencedor do Prêmio Nobel Mario Vargas Llosa. Uma biografia. Um herói controverso. E que vale a pena ser lido com urgência urgentíssima por todos aqueles que apreciam uma grande literatura. Um Nobel que merece um lugar na sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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O Sonho do Celta
autor: Mario Vargas Llosa
editora: Alfaguara

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