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O muro

Se existe uma introdução ao mundo da leitura, esse início, pelo menos comigo, se deu via quadrinhos.

Os HQs sempre ofereceram uma infinidade de histórias. Eu fui iniciado com Superman, Fantasma, Mandrake, Tarzan, entre outros super-heróis da Marvel. Existe uma herança nos HQs que é bem mais antiga do que imaginamos. Leia-se animais humanizados que contam uma história, como Mickey, Tio Patinhas, Snoopy, Calvin, etc. Na verdade todos eles são netos e bisnetos de La Fontaine, dos Irmãos Grimm e de Esopo e suas fábulas, que séculos atrás faziam com muita eficiência uma crítica dessa nossa humanidade tão imperfeita, com seus erros e muito poucos acertos.

Hoje traremos um quadrinho, que, vou logo avisando, está fazendo um grande sucesso entre os aficionados. O nome dessa história? “O Muro”, do argelino Pierre Bailly e da belga Céline Fraipont. A melancolia dá o tom desse relato, e o desenho casa-se perfeitamente com a história. Os escuros, silêncios e vazios revelam as expressões dos personagens e todo o clima que permeia a narrativa e os sentimentos envolvidos. A história passa longe dos super-heróis da minha infância e adolescência. É uma história underground.

Rosie, a protagonista dessa história, tem treze anos. Sua mãe foge com um amante e seu pai tenta afogar suas mágoas no trabalho. Está permanentemente em trânsito, provavelmente sente pena de si mesmo e o seu refúgio emocional está no seu emprego, que o afasta de sua filha. Apenas deixa o dinheiro para que ela se vire e tudo está de muito bom tamanho. Seus encontros com ela resumem-se a cobranças feitas em tom acusatório quando chega de seus afazeres e de suas viagens.

Deixada à sua própria sorte, Rosie mergulha no vazio de um subúrbio belga, onde se deixa arrastar pelo tédio, pelo fumo e pela reserva de whisky o seu pai. Interage entre os limites da tentação e o sentimento de solidão. Tudo se passa nos anos 80, mas seus sentimentos podem ser capturados nos dias de hoje com toda a tranquilidade, é atemporal. Centenas de Rosies vivem em situações semelhantes em diversos países do mundo no século XXI.

Pierre Bailly e Céline Fraipont nos fornecem uma fenda para olharmos esse vazio, as tonturas de Rosie, os afetos, as memórias, a nossa própria adolescência. Você que está lendo esta resenha, já sentiu algo assim? Lembra como foi a sua adolescência? Já pensou em como seus filhos se sentem? Isso não é uma regra geral. Muitos (maioria?) não passaram por problemas desse tipo. Mas muitos já passaram por algo semelhante.

Uma coisa é certa: é preciso virtuosismo para abordar um tema como esse e cativar os aficionados por histórias em quadrinhos. O livro é um sucesso. É preciso muito talento e um olho afiado capaz de capturar gestos, imagens e algumas quinquilharias icônicas dos anos 80 que davam um sentido à vida, algo que fica entre o vazio e a purificação.

A única amiga de Rosie arruma um namorado e não vê mais a necessidade de sua amizade. A amizade se esvai. Rosie vive uma guerra particular, narrada com muita sutileza. Gosta da solidão, mas não se sente em boa companhia com ela. É insegura. Até que conhece Jô. E eu paro por aqui.

“O Muro” revela uma adolescência que sofre de inanição emocional. Pierre Bailly e Céline Fraipont nos mostram essa fase difícil da vida cheia de hesitações, fraturas e incertezas, que ressoam como uma música familiar e melancólica para muitos leitores de hoje, o que dá a essa história um selo de realidade. Por isso, merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Quadrinhos


< Sono A festa da insignificância >
O muro
autor: Fraipont Bailly
editora: Editora Nemo

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