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Fun Home – uma tragicomédia em família

“Fun Home – uma tragicomédia em família”, de Alison Bechdel, acaba definitivamente com qualquer possibilidade de avaliar HQs (Histórias em Quadrinhos) como um gênero menor ou para adolescentes. Este livro, ou melhor, esta “Grafic novel”, é para adultos. Fala sobre um tema debatido e controverso, e, neste caso, exposto dentro de uma família e a interferir nos universos pessoais de cada um: a homossexualidade ou a opção sexual. Ou ainda mais longe: a opção por assumi-la ou não. A autora, com seu traço seco e firme, mas sem perder a afetividade oferecida através dos detalhes a cada quadro, nos fala sobre a sua vida. “Fun Home” é um HQ autobiográfico, e Alison Bechdel expõe sua história de vida e sua homossexualidade de forma transparente, corajosa, tranquila e delicada. Alison nos aparece como uma menina extremamente observadora, capaz de ler o subtexto existente em sua família e sem receios de assumir suas verdades, arrastar correntes de sofrimento ou se perder entre apologias.  A autora se restringe positivamente a nos apresentar a “sua” experiência de vida, o seu universo e as referências sociais, culturais e afetivas que recebeu (ou captou) com a naturalidade e simplicidade que deveriam fazer parte da vida de todos nós ao refletirmos sobre nossas famílias, opções, afetos e desafetos recebidos e doados. Em “Fun Home – uma tragicomédia em família”, encontramos uma história livre de subterfúgios e julgamentos sobre a própria vida e as origens de uma família: sem farsas, negações, exageros e sem medo de enxergar e amar o diferente, incomum e próximo.

Alison é a própria protagonista de “Fun Home”, HQ lançado em 2006. Sua família não teria sido melhor descrita senão através de um formato em quadrinhos. Seu lar aparece e nos é apresentado como um palco perfeito para que, diante de diferenças e indiferenças, cada membro do clã possa explorar e vivenciar suas individualidades e complexidades entre a solidão e os desajustes oriundos de uma família disfuncional: o pai de Alison era um professor de literatura, um homem com sua homossexualidade enrustida, cujo negócio era uma agência funerária que funcionava dentro da própria casa. Ele restaurava e maquiava os defuntos e organizava os funerais. Um perfil requintado e refém de sua própria busca pela perfeição de obras, objetos exóticos. Exigia de todos que a casa e todos os “detalhes” que a compunham estivessem sempre extremamente limpos e conservados. Ele próprio comprava cada objeto de arte ou raridade encontrada.  A casa era repleta de história, passado e arte. Além do trabalho a que se dedicava, dividia seu tempo entre as aventuras que vivia com “os garotos” que o atraíam. Um duelo, sem dúvida. A mãe era uma atriz que encontrava na música e na literatura dois fiéis amores; porém, sua sofisticação intelectual não a livrou de um casamento distante e solitário e da dificuldade em relacionar-se com Alison devido às diferenças e opções assumidas pela filha.

Mas tudo isso é revisitado pela autora, que nos faz olhar e perceber o mundo de forma mais ampla e melhor. Ao quebrar os tradicionais papéis familiares, eles se abrem a novas possibilidades de interpretações e sentidos, em que tudo será reconduzido em busca de  relacionamentos que incluam as diferenças, sem ter de excluir o amor, a admiração e o prazer de fazer parte daquele grupo de pessoas e perfis excêntricos, que, de certa forma, também a fizeram ser o adulto que ela se tornou.

O que encontramos neste livro não é uma confissão gay nem uma apologia à inclusão ou um discurso de direito e deveres da família e da sociedade. Ao ler atentamente cada quadrinho, encontramos em “Fun Home” um relato afetivo, o caminho de alguém que decidiu fazer suas escolhas sem deixar de amar sua família, sem abdicar de ser filha e pertencer a um núcleo tão diferenciado por suas características  próprias. Uma mulher que, ao assumir suas opções, soube continuar a amar e a reconhecer o amor que sempre recebera, principalmente de seu pai – uma figura que, apesar de todas as idiossincrasias, sempre esteve lá para abraçá-la.

“Fun Home” não é um HQ engraçado nem dramático. É uma visão ampla sobre a vida e os laços familiares, que sempre devem ser investigados e abraçados sem revanches, sem julgamentos, apenas reconhecidos por quem sabe que há coisas na vida que são fáceis, outras mais difíceis, mas que tudo isso faz parte do jogo e nos tornam mais fortes em aceitá-las como são e conviver com generosidade com as nossas limitações e a dos outros. Este HQ merece um lugar na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Quadrinhos


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Fun Home – uma tragicomédia em família
autor: Alison Bechdel
editora: Editora Nemo
ilustrador: Alison Bechdel

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