Sono
Não preciso falar sobre Haruki Murakami aqui neste espaço. Há uma legião de murakamistas no mundo inteiro, e no Brasil esse autor está conseguindo ganhar uma legião de fãs. Algo que, sinceramente, não esperava. Mas aí está o papel do livreiro em indicar um autor de qualidade indiscutível, além das excelentes resenhas publicadas em jornais por escritores e jornalistas nos cadernos de cultura de vários jornais.
Estou devendo a vocês a resenha de “1Q84”, que estou relendo tendo em vista o fato de o referido livro ter chegado para nós, aqui no Brasil, em dois momentos distintos, ou seja, os dois primeiros volumes, se não me falha a memória, chegaram em 2013 e o terceiro e último volume chegou em meados de 2014 (não tenho certeza). As consequências desse espaço de tempo entre os dois primeiros volumes e o terceiro me fizeram adiar a sua leitura. Outros livros vão surgindo e aí... você já perdeu o fio da meada da história dos dois volumes anteriores. E precisa reler tudo. Mas deixa estar, já estou terminando o segundo volume, o terceiro será rápido. E em breve o livro estará resenhado aqui neste espaço.
Outro livro do autor que fez o maior sucesso foi “Kafka à Beira-mar”, já resenhado aqui. Uma unanimidade entre os leitores aos quais o indiquei. Nem preciso falar o que eu achei sobre esse livro, né? Livraço!
Hoje traremos mais uma obra genial de Haruki Murakami e o nome do livro é “O Sono”. Bem, não preciso dizer se gostei ou não. Se não tivesse gostado eu não postaria. E gosto sempre de realçar que este espaço não é para fazer crítica literária. Adoro ler críticas literárias, mas a proposta aqui é outra, ou seja, indicar bons livros para ler.
Vamos à história? “O Sono” é uma história curta que você pode ler em uma tacada. O livro é de capa dura e suas ilustrações, feitas por Kat Menschik, são de muito bom gosto. Os personagens femininos de Murakami sempre são interessantes e fortes. Mesmo que às vezes esses personagens vivam percalços, naufrágios existenciais, seus personagens femininos estão sempre brigando e lutando para sobreviver. E em “O Sono” não é diferente. Uma coisa é certa: se você não viajar na obra, ou seja, ler literalmente o livro, corre o risco de você se decepcionar e achar a história enfadonha. E é aí que reside o mistério. Existem mais coisas em que o autor nos faz pensar.
Murakami escreve esta história a partir de uma perspectiva de uma dona de casa de 30 anos de idade que sofre de insônia durante dezessete dias. Pois bem, a história vai recuar para o início, quando tudo começou. A mulher vai evocando suas lembranças de quando ficou sem dormir durante um mês na época da faculdade, e relembra:
“A única coisa que de que me lembro vagamente é que fui cambaleando até o quarto e, com a roupa do corpo, entrei debaixo das cobertas e dormi. Dormi profundamente durante vinte e sete horas seguidas. Minha mãe, preocupada, não só me sacudiu várias vezes como também deu alguns tapinhas nas minhas bochechas. E mesmo assim não acordei. Permaneci vinte e sete horas dormindo sem acordar uma única vez. Quando finalmente acordei, eu era a mesma de sempre. A mesma de sempre. Acho.
Não sei dizer o porquê de eu ficar com insônia nem como fiquei curada de uma hora para outra. Aquilo foi como uma nuvem negra e densa trazida pelo vento de algum lugar distante. Uma nuvem que carregava consigo alguma coisa agourenta, que eu desconhecia. Ninguém saberia dizer de onde ela veio nem para onde ela foi. Mas, seja como for, ela veio, pairou sobre minha cabeça e se foi.
Desta vez, porém, o fato de eu não conseguir dormir não tem nada a ver com aquilo. Em todos os sentidos, é totalmente diferente. Desta vez, eu apenas e simplesmente não consigo dormir, minha saúde está perfeitamente normal. Eu não tenho sono e minha consciência está lúcida e em pleno estado de vigília. Arrisco a dizer que ela está mais lúcida do que o normal. Meu corpo também não apresenta nenhuma anomalia. Eu tenho apetite e não me sinto cansada. Do ponto de vista prático, não há nada de errado comigo, a não ser o fato de não dormir.” (pg11 e 12)
Notem que dessa vez a nossa personagem está absolutamente bem. Suas funções estão a pleno vapor mesmo com uma insônia de dezessete dias. O que estará acontecendo com essa mulher? Como é a sua rotina? O que desencadeou isso? Responderei sem medo de estar entregando o ouro para vocês. Para responder à primeira pergunta, vamos decifrar essa rotina. Ela sempre fazia as mesmas coisas, cuidava do filho, da casa, do marido. Ambos respondiam da mesma forma:
“Às oito e quinze da manhã, meu marido deixa o estacionamento do prédio dirigindo o seu Bluebird, com o nosso filho sentado no assento do lado do motorista. A escola primária que o nosso filho frequenta ficava no meio do caminho para o consultório. “Tome cuidado”, eu digo. “Não se preocupe”, ele responde. Repetimos sempre o mesmo diálogo, mas eu não consigo deixar de dizer ”tome cuidado”, nem ele de rerponder “não se preocupe”. (pg18)
Vamos responder à terceira pergunta: o que desencadeou esse processo de insônia? Foi um sonho repulsivo que ela teve numa noite. No sonho, ela estava acordada quando uma sombra negra surgiu perto de seus pés de maneira macabra. Era um homem de aparência medonha que apareceu e jogou água em seus pés, e ambos se olharam o tempo todo. Um susto acontece e tudo se esvai. Quando ela acordou, algo morreu dentro dela, algo derreteu deixando um imenso vazio. Algo que ela nunca queria perder morreu naquele momento. Mas o quê, exatamente? A primeira coisa que ela fez foi tomar um banho, em seguida encheu um copo de brandy (seu marido não gostava de bebidas) e mais tarde comeu chocolates, que o marido detestava, provavelmente por causa do açúcar, já que era dentista.
O fato é: ela fez o que queria fazer. Ela começou a ler Anna Karenina de novo, livro esse que já havia sido lido na faculdade. E Ana Karenina (já resenhado neste espaço) fala sobre morte. E o que morreu dentro dela? O que faz uma mulher insone se exercitar mais do que fazia quando dormia naturalmente? Ao perceber que seu corpo está mais bonito, se sente mais atraente. Uma mulher que vive uma vida dupla. De manhã é uma dona de casa robótica, que faz seus exercícios físicos regularmente, e à noite lê, bebe e come chocolates.
Uma pergunta que você, leitor, vai se fazer ao longo do livro, e isso será inevitável: estaria ela acordada? Estaria ela dormindo? Vigília e insônia, vida e morte. É essa a magia que Murakami faz com as nossas cabeças, o que faz dele um dos autores mais brilhantes de sua geração.
Paro por aqui, já lançando o desafio a todos que frequentam este espaço a decifrar o enigma deste livro. “O Sono”, de Haruki Murakami, é um livro genial e que vai dar o que falar. Merece um lugar de destaque na sua estante.