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O irmão alemão

Alguns autores a gente deve comprar e ler logo, digo isso em função da quantidade de bons livros que tenho em minha estante parados à espera “daquele dia” para serem lidos. Por diversas razões, vamos protelando suas leituras, dizendo para nós mesmos: de amanhã não passa. E o pior, o tempo passa e vamos repetindo a mesma ladainha. Tenho vários exemplos de livros que, quando vejo em minha estante, fazem o velho complexo de culpa aparecer. “Leite Derramado” é um desses exemplos indesculpáveis. Mas depois de acabar “O Irmão Alemão”, me deu vontade de emendar direto no “Leite Derramado”. O problema é que vivo de prazos (mais uma desculpa). Mas prometo a vocês que esse livro lerei ainda esse ano. Promessa é dívida. “O Irmão Alemão”, quando ganhei, fiz um movimento ao contrário. Ganhei e li na primeira ocasião, não pestanejei e foi ótimo, simplesmente adorei. Livraço!


Chico Buarque e sua biografia dispensam qualquer apresentação. Todos conhecem esse cantor, compositor e também escritor. Tenho por ele uma imensa dívida de gratidão por uma música do disco “Vida” (Polygram, Philips) que definiu minha vida em 1980: “Deixa a Menina”, um samba que traz na veia do nosso grande compositor a influência de Noel Rosa, com sua ironia fina. Essa música mudou a minha forma de pensar sobre as mulheres e relacionamentos e aquele velho mau hálito do amor chamado ciúmes, como diz um trecho da música: ”Deixe a menina sambar em paz”.

Chico Buarque não pode ser visto apenas pelas suas belas canções. No Teatro, Chico nos brindou com “Calabar”, peça de teatro musicada, escrita em 1973 em parceria com Ruy Guerra, que alcançou um imenso sucesso. “Gota d’água” é uma peça teatral de autoria de Chico Buarque e Paulo Pontes que comprei em vinil, acreditem. “Ópera do Malandro” é uma peça escrita por Chico Buarque de Holanda que virou um filme fantástico. “O Grande Circo Místico”, de autoria de Chico Buarque e Edu Lobo, que estreou em março de 1983, é simplesmente uma delícia de ouvir. Em síntese, um artista multitalentoso, de muito sucesso e com uma sensibilidade única.

Poderia ficar escrevendo laudas e mais laudas sobre esse artista que sempre admirei. Mas o papo agora é outro, vamos falar sobre seu novo livro.
Logo de cara, antes de começar a leitura, admito, houve certa estranheza, pois não sabia ao certo do que se tratava. Irmão Alemão? Qual o rumo dessa prosa? Ouvi muito zum-zum-zum. Para falar sobre a família de Chico Buarque, podemos começar com a sua música “Paratodos”, que diz: “O meu pai era paulista. Meu avô pernambucano. O meu bisavô mineiro. Meu tataravô baiano...”. O livro introduz mais um elemento nessa grande família, um irmão mais velho alemão, desconhecido de Chico Buarque.

 “O Irmão Alemão” é o primeiro livro que leio de Chico Buarque. Confesso surpreendido muito positivamente com o livro. Aliás, não poderia esperar outra coisa, vindo desse grande artista. A história é genial e a prosa é picotada, em que passado e presente se interpenetram não apenas para imaginar a trajetória de seu irmão, mas também para o autor se conectar com seu próprio passado e com a semelhança existente entre ele e o irmão que nunca conheceu. A realidade e a ficção se misturam, dando sustentação à história. “O Irmão Alemão” é uma autoficção. A mãe real, Ana Amélia, se transforma em Assunta; Sérgio de Holanda se transforma em Sergio de Hollander, e por aí vamos seguindo a história.
O livro é escrito na primeira pessoa. O protagonista, Ciccio, narra a história do pai, Sergio de Hollander, um intelectual obcecado por livros, cuja imensa biblioteca, onde passava os dias, invadia todos os espaços da casa Sergio de Hollander, que tem certa semelhança com Peter Kien, protagonista do romance “Auto de Fé” de Elias Canetti, tinha um mundo em sua cabeça formado por livros e mais livros. Atrás de toda sua sabedoria existia um muro que o separava das pessoas à sua volta.Não teria certa semelhança com o personagem de Cervantes, Don Quixote? Afinal, ele também tinha um mundo em sua cabeça e vivia exclusivamente para ele.

 Chico Buarque ficou sabendo sobre seu irmão já adulto, e quem lhe revelou esse segredo guardado a sete chaves foi o poeta Manuel Bandeira. Sérgio Buarque de Holanda teve um filho em Berlim em 1930, nascido logo após ele voltar da Alemanha. A mãe, Anne Ernst, chegou a escrever para o Brasil informando-o sobre o bebê, a quem batizara Sergio. Esse foi o primeiro filho do historiador, que nasceu antes de seu casamento, em 1936, com Maria Amélia, a mãe de Chico e de seus outros irmãos.

 

Berlin, 21 de dezembro de 1931
Querido Sergio
Pelo teu silêncio adivinho que estás como sempre nos teus Livros naufragado (imerso?). Desolada por roubar da tua Leitura meio Minuto, venho te informar que nosso filho Sergio um Ano de Idade repleto de Saúde hoje completa.
Uma Fotografia prometo enviar-te na Oportunidade primeira, e certo estou de que Mangokopf (cabeça de manga) do Menino hás de te reconhecer.
Se tu não te importes, ao Tema de minha última Carta sem Resposta até hoje volto. Desde aquela Data o Sr. Heinz Bogart, o pianista a quem então me referi, tem demonstrado algo mais que a Amizade em relação a Mim. Por Ti até hoje esperei, mas Tu sabes que proporcionar a meu filho um verdadeiro lar dentro de um razoável Prazo, penso que livre estarei para considerar a Hipótese de me ligar a Heinz, que ademais poderia eventualmente seu nome de Família + dar ao menino, que, caso tu tenhas esquecido, traz no Registro civil somente o Nome da Mãe – Ane Ernst, nunca é demais lembrar.
Amigavelmente
Anne


 Ciccio descobre sem querer que tinha um irmão na Alemanha, e um dos momentos engraçados do livro é quando o narrador lança o seguinte texto:

 “E uma noite em casa, no meio do jantar, sem mais nem menos lancei esta: eu não me envergonharia de ter um filho alemão. Meu pai ficou com o garfo suspenso diante da boca aberta, enquanto meu irmão continuava a folhear a Playboy à esquerda do prato. Só mamãe, depois de um momento atônita, se manifestou: mas quem tem vergonha de um filho tedesco, Ciccio? Sei lá, disse eu, só sei que Thomas Mann tinha vergonha da mãe brasileira.’Era uma afirmação controversa, pelo que havia lido a respeito, mas feita com o propósito de suscitar uma reação do meu pai. Ele poderia retrucar que o próprio Mann reconhecia traços de ascendência latina em seu estilo, ou que a mãe lhe inspirava belas personagens para seus romances, poderia dizer em suma que eu estava falando asneira. Mas, pronto, estaria estabelecida uma ponte entre nós, talvez daí em diante meu pai me ouvisse de vez em quando, me corrigisse, de algum modo me filiasse. Quem sabe até me admitisse na sala de visitas como um aluno ouvinte, nas noitadas em que recebia seus amigos escritores para beber um Old Parr e trocar novidades, anedotas, fofocas literárias.” (pg 51 e 52)

 Ane Ernst, por razões óbvias, ou seja, a guerra que se aproximava, foi perdendo o contato com Sergio Hollander. Ela acabou entregando a guarda do filho para a prefeitura de Berlim, que entrou em contato com o historiador em 1932 para informá-lo sobre a situação de seu filho Sergio. Sergio Hollander estaria disposto a cuidar do filho e mandar uma quantia mensal para o menino, mas por razões burocráticas, nada disso se configurou, não obteve resposta. A resposta final foi: Heill Hitler!
O que teria acontecido ao irmão alemão de Chico? Fico por aqui para não interromper a curiosidade dos nossos leitores. A única coisa que posso afirmar sem medo de errar é que o livro deve ser lido com atenção. É um livro brilhante, que merece um lugar de destaque em sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< A Balada de Adam Henry Os judeus e a vida econômica >
O irmão alemão
autor: De Chico Buarque
editora: Companhia das Letras

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