Longa Jornada Noite Adentro
“Longa jornada noite adentro”, de Eugene O’Neill, é considerada a melhor peça do teatro americano. Parte da história de O’Neill eu já contei na resenha do livro “Desejo”, desse autor. O’Neill teve uma juventude inquieta: abandonou os estudos e procurou estabelecer-se em várias profissões, como vendedor marinheiro em Honduras. Na Argentina, onde morou por um tempo, trabalhou no departamento de desenho técnico da companhia elétrica Westinghouse, trabalhou como repórter. Mas foi em 1914 que se encontrou profissionalmente, quando começou a estudar Arte Dramática em Harvard e entrou para um grupo de teatro experimental. Foi logo impondo o seu gênio e ocupando um espaço importante na dramaturgia americana. Nesse primeiro período, foi exibida sua primeira peça, “Além do Horizonte”. A este sucesso seguiram-se outros. Recebeu quatro vezes o Prêmio Pulitzer (em 1920, 1922, 1928 e 1940) e o Prêmio Nobel de Literatura em 1936.
Eugene O’Neill sempre foi um homem atormentado. Suas heranças familiares deixaram marcas profundas em sua vida. Em um primeiro momento, sempre se recusou a fazer teatro, talvez por causa das vezes em que tinha que viajar juntamente com sua mãe nas turnês de seu pai. Ao escrever “Longa jornada noite adentro”, ele tocou em pontos dolorosos da sua vida familiar. Uma peça com evidentes tons confessionais. Quando ele terminou de escrevê-la, deixou claro que a peça só poderia ser exibida vinte e cinco anos após a sua morte. Perguntado sobre o motivo dessa decisão, ele disse que havia pessoas que ainda estavam vivas. Mas não era verdade. A única pessoa de sua família que havia sobrado era ele mesmo. Seu pai, James O’Neill, morreu em 1920; sua mãe, Ellen Quinlan, em 1922; e o seu único irmão, Jamie (dez anos mais velho do que ele), morreria em 1923. Em outras palavras, no espaço de três anos, sua família se desfez. Eugene O’Neill morreu em 1953 de tuberculose. Mas sua esposa, Carlota Monterey, lhe desobedeceu e, em 1956, ou seja, três anos após a sua morte, ela permitiria a montagem desse texto fabuloso. O que acabou rendendo ao autor uma homenagem post-mortem em 1957, que foi o quarto Pullitzer de Eugene O’Neill.
Vamos à história?
A peça aparentemente simples tem quatro personagens principais. O desdobramento progressivo de sua riqueza psicológica; a franqueza e a total ausência de sentimentalismo a qualidade natural e expressiva dos diálogos,; que mostram os insights de culpa da vulnerabilidade e a necessidade de conexão familiar − tudo isso revela algumas das qualidades que deram e essa peça o status de clássico mundial.
É considerada a maior peça americana sobre a tragédia da família americana. “Longa jornada noite adentro” é uma espécie de reintegração de posse de sua própria vida familiar como um resumo de sua longa jornada em direção à autocompreensão e à autoexpressão.
Toda a peça se passa na sala da família da casa de verão dos Tyrones. Em uma manhã em agosto de 1912, Mary (a mãe) e James Tyrone (o pai) estão juntos depois do café da manhã. Sabemos que o pai é um ator envelhecido e ganha seu sustento de uma peça baseada numa história de Alexandre Dumas. Sabemos que Mary voltou recentemente de um sanatório por causa de seu vício em morfina. James a incentiva a continuar o tratamento.
Mary (mãe)
... Por sorte, a neblina está se dissipando. (volta-se). Esta manhã sinto-me mal-humorada. Perturbou-me o sono essa horrível sirene que esteve apitando a noite inteira) (pg 16)
Vemos o filho mais velho de James Tyrone e Mary, Jamie, entrar. Ele tem 33 anos e é bonito. “Herdou o físico do pai: largo de ombros e o tórax forte, mede uma polegada a mais de estatura e pesa menos, porém parece mais baixo e atarracado porque lhe faltam o porte e o garbo de Tyrone (pai). Não tem a vitalidade do pai. Nota-se nele sintomas prematuros de envelhecimento” (pg 19).
Seu irmão mais novo também entra. Ele é dez anos mais novo, mais magro. “Leva-lhe a vantagem umas duas polegadas de estatura. É fraco é nervoso. Enquanto Jamie saiu ao pai e pouco se parece com a mãe, Edmund lembra a ambos, aproximando-se mais do tipo de Mary. Os grandes olhos escuros são traço dominante de seu rosto alongado e enxuto. A boca denota a mesma hipersensibilidade de Mary.” (pg 19)
Assim que os dois irmãos se estabelecem, a briga começa. Edmundo tenta contar uma história engraçada sobre um dos seus inquilinos, mas James Tyrone (o pai) não gosta da interpretação dos fatos. Eles discutem:
Tyrone
Para o inferno com a sua lembrança. (Franze a testa) Não envolva nos meus assuntos suas nefastas ideias socialistas e anarquistas. (pg 26)
Edmundo sai exausto pela maneira como o seu pai repreende ele e Jamie.
Mary
Você não deve aborrecer-se com Edmund, James. Lembre-se de que ele está doente (ouve-se Edmund, que tosse enquanto sobe para o primeiro andar. Mary nervosa acrescenta. Esses resfriados de verão põem qualquer um irritadiço.
Jamie (sinceramente preocupado)
Não é um simples resfriado. Ed está doente de verdade.
(O pai o fita com uma advertência no olhar, porém Jamie nem o nota.)
Por que diz isso? Não passa de um resfriado. Isso se pode ver logo. Sempre está imaginando coisas! (pg 27)
Quando Mary sai, James repreende Jamie por falar sobre a saúde de Edmund na frente dela, dizendo que este é o único assunto que ele deve evitar na presença dela.
Tyrone
Seu estúpido! Não tem nenhum critério? Acima de tudo, o que é precioso evitar é dizer-lhe algo que possa afligi-la ainda mais a respeito de Edmund!
Jamie (dando de ombros)
Se você prefere assim... Acho que seria melhor que mamãe não continuasse enganando-se a si própria. Será muito mais duro para ela, quando tiver que enfrentar a verdade. Você vê que deliberadamente ela se atordoa, falando num resfriado de verão. E, no entanto, sabe a verdade. (pg 30)
Os dois (pai e filho mais velho) admitem que Edmund tem tuberculose, ponto em que Jamie sugere que seu irmão mais novo nunca teria ficado doente se James o tivesse enviado a um médico de verdade.
Jamie (comovido, sentindo aflorar-lhe ao peito o afeto pelo irmão)
Pobre rapaz! Que pouca sorte! (volta-se para o pai com ar acusador) Isso não teria acontecido se você o tivesse levado a um médico de verdade, quando ele apareceu doente. (pg 31)
Seu pai diz que seu filho não sabe o valor de um dólar, satirizando-o por levar uma vida de aspirante a ator na Broadway, onde Jamie passa seu tempo bebendo e visitando prostitutas. Ele também acusa Jamie de ensinar a Edmund seus caminhos perversos, dizendo que o pobre menino não tem “constituição” para levar o tipo de vida que Jamie lhe ensinou.
Tyrone
É a pura verdade! Exerceu sobre Edmund uma influência nefasta. Ao crescer ele o admirava como a um herói! Que belo exemplo lhe oferecia! Que eu o saiba nunca lhe deu um exemplo que não fosse péssimo. Fê-lo envelhecer prematuramente, entulhando-o do que crê ser a “sabedoria humana”; e isto quando Edmund ainda era jovem demais para compreender o que era o seu próprio fracasso que lhe envenenava a alma que para todo homem não passa de um canalha à venda e toda mulher de uma cretina ou uma prostituta (pg 35, 36)
Mas veremos que, no decorrer de toda peça, o conflito entre o pai Tyrone, que acusa o filho de estar sem direção, e seu filho Jamie, que acusa Tyrone de ser avarento. Ele acusa o pai de dar à sua mãe, Mary (uma viciada em morfina), um tratamento de má qualidade, por questões de economia doméstica. Quando a mãe retorna, a discussão cessa.
Mary
Sobre que assunto vocês dois discutiam?
Jamie
Os mesmos assuntos de sempre.
Mary
Ouvi que falava de um médico, e seu pai o acusava de ser maldoso.
Jamie (apressadamente)
Ah, isso?! Eu estava dizendo que, para mim, o Dr Hardy não era o melhor do mundo! (pg 42)
É a doença de Edmund, que sua mãe insiste em dizer ser apenas um resfriado de verão, mas seu médico diagnostica como tuberculose, que serve como um catalisador para a série de revelações e reconhecimentos da peça. James, Jamie e Edmund alternadamente aceitam e rejeitam sua suspeita de que Mary recaiu com seu vício em morfina, enquanto cada um é forçado a enfrentar sua culpa e responsabilidade pelo passado que assombra a família.
Mary (a mãe) abandonou seus sonhos de ser freira ou pianista para se casar com o belo ator James Tyrone. Ela culpa seu marido e seus filhos por seu vício:
Mary
É, ele me conhece (senta-se na poltrona à direita da mesa. Acrescenta numa voz serena, distanciada). Tenho que tomar esse remédio porque é a única coisa que consegue acalmar-me a dor. Toda a dor... quero dizer, de minhas mãos. (Ergue as mãos e as contempla, com pena e melancolia) Agora já não tremem. Pobres mãos! Parece incrível! Antigamente eram o que em mim mais a atenção chamava – assim como os meus olhos e cabelos. Além disso, era muito bem feita de corpo. (Sua voz torna-se cada vez mais distante, perdida no seu sonho.) Eram mãos de musicista! Gostava tanto de tocar piano. No convento, estudava música com afinco, horas por dia... Se é que se pode chamar estudo o que se faz com prazer! Madre Elizabeth e a minha professora diziam que eu tinha mais talento do que qualquer outra das alunas que tinham passado por suas mãos. Meu pai pagava-me aulas particulares. Queria mandar-me estudar na Europa assim que eu terminasse o curso no colégio de freiras. Eu teria ido à Europa se não tivesse me apaixonado pelo Sr Tyrone. Ou teria entrado para o convento. Eu só tinha dois sonhos: ou ser freira – e dos dois era o mais lindo – ou ser pianista e dar concertos. (faz uma pausa e fita fixamente as próprias mãos. Cathleen pisca os olhos para afugentar o sono e a embriaguez) Há tantos anos que não toco piano! Nem que eu quisesse, não poderia fazê-lo com esses dedos deformados! Quando me casei, durante algum tempo ainda tratei de não abandonar a música. Mas foi impossível... Os hotéis de passagem, as pensões baratas, os trens imundos, tendo filhos, vivendo como ave de arribação sem ter uma casa... (contempla as mãos com fascinada repulsa.) Veja, Cathleen, como estão feias! Tortas e mutiladas! Parecem ter sofrido algum terrível acidente! (Ri – um risinho estranho e inesperado. E na realidade foi isso mesmo! (bruscamente esconde suas mãos atrás das costas) Não quero mais olhar para elas. Ainda me fazem o maior mal do que a sirene recordando-me de... (a seguir, com desafiadora segurança) Mas nem elas mesmo podem me atingir agora. (Põe as mãos diante de si e as fita, fixa e intencionalmente. Logo a seguir diz em tom sereno) Estão tão distantes. Eu as vejo, mas a dor se foi.
Cathleen (cada vez mais perplexa na sua estupidez)
A senhora tomou o remédio! É certo que está agindo sobre a senhora de uma maneira esquisita. Se eu não soubesse, julgaria que até tivesse tomado um tragozinho!
Mary (sempre distante e sonhadora)
Isso suprime a dor. Faz com que retroceda no tempo até que ela não nosalcance mais. Somente o passado é real... (pg 114, pg 115)
Cada um dos filhos e o marido enfrentam suas cumplicidades na autodestruição da família, enquanto cada um recebe sua dose de compreensão sobre o papel que tiveram na desintegração da família. James, por sua mesquinhez, que o levou a contratar um médico de segunda categoria que começou a tratar a mãe com morfina. Os outros, por sua vez, enfrentam a sua cumplicidade vivida nessa situação.
Quando todos chegam, Mary começa uma discussão que termina dando um aviso a Edmund, que seu irmão quer transformá-lo em um fracasso. Ela pensa na infância dos filhos e se preocupa com o fato de que os hábitos de bebida de Tyrone os tenham levado ao alcoolismo.
Tyrone (ferido)
Então sou eu que tenho culpa de que um homenzarrão vadio se tenha transformado num bêbado vagabundo!... hem? Foi para ouvir isso que eu voltei para casa?! Devia tê-lo imaginado! Quando você está com todo esse fel na alma procura lançar a culpa sobre todo mundo, menos sobre si mesma.
Edmund
Papai! Você mesmo me disse que não prestasse a atenção! (ressentido) De qualquer forma, é verdade! Você fez o mesmo comigo. Lembro-me dessa tal colherada de uísque de cada vez que eu acordava de um pesadelo! (pg 122, pg 123)
No meio de tantas acusações mútuas, o patriarca Tyrone faz uma revelação sobre sua carreira de ator, na qual trocou uma promessa artística aparentemente ilimitada por segurança financeira, alimentada por seu empobrecimento inicial da classe baixa irlandesa. Ele confessa:
Tyrone
Não sei... Acho que sou eu! Não, é você. (Edmund tira uma carta; seu pai a compra. Mas, quando, por sua vez se dispõe a jogar, torna a esquecer a partida). Sim, creio que a vida me deu uma lição demasiado severa, e ensinou-me a superestimar o valor de um dólar. E veio a hora em que esse erro arruinou uma magnífica carreira de ator!... (Tristemente) Nunca confessei isso a ninguém, rapaz; porém, na noite de hoje, sinto-me tão deprimido, que é como se tudo tivesse acabado para mim... E de que, então, me serviriam as vaidades, as jactâncias ou um falso orgulho?! Aquela maldita comédia que comprei por ninharia, e na qual tive tanto sucesso – um grande sucesso comercial! – estragou-me a vida com a sua promessa fácil de fortuna. Eu não queria fazer mais nada! E, quando dei pela coisa, já era tarde demais. O público já me havia identificado com aquele papel e não compreendia ver-me noutro. E tinha razão! Eu havia perdido o meu talento em anos de fácil repetição, sem aprender um só papel novo, sem nunca mais trabalhar de verdade! Fazia trinta a quarenta mil dólares líquidos de lucro por temporada, sem despender o menor esforço! A tentação era demasiado forte! E, no entanto, antes de comprar essa nefasta peça, era eu considerado um dos três ou quatros jovens de futuro nos Estados Unidos! Trabalhava com o máximo empenho, abrindo mão de um bom emprego de mecânico para ser substituído no elenco de uma companhia, só pelo amor que eu tinha pelo teatro! Vivia como louco de ambição! Lia todas as obras dramáticas existentes. Estudava Shakespeare como se estuda a Bíblia. Educava-me a mim mesmo. Com esforço consegui me libertar do sotaque irlandês que era bastante forte. Que entusiasmo que tinha por Shakespeare! Teria, de bom grado, representado qualquer de suas obras, sem receber um centavo, só pela satisfação de viver na atmosfera de sua sublime poesia! E posso dizer que a interpretava a contento! Sentia-me inspirado por ela. Se eu tivesse insistido poderia ter chegado a ser um grande interprete shakespeariano. E tinha consciência disto! Em 1874, quando Edwin Booth veio trabalhar no teatro de Chicago, onde eu já era a primeira figura, representei certa noite, o papel de Cassius. Também interpretei Otelo e ele Yago, e assim por várias outras vezes. Ao ver-me em Otelo, Booth comentou com o seu empresário: “Este jovem está fazendo seu papel melhor do que eu próprio!” (com orgulho) E isto quem disse foi Booth, o maior talvez de todas as épocas. E era a expressão da verdade! Eu tinha vinte e sete anos. Quando me lembro compreendo que aquela noite foi o ponto culminante de minha carreira!! Havia chegado onde queria chegar. E durante algum tempo ainda, continuei subindo, com uma ambição sempre crescente! Casei-me com sua mãe. Pergunte-lhe como eu era então. Seu amor foi incentivo a mais para as minhas aspirações. Mas... no fim de uns poucos anos, minha boa sorte – que acabou por ser má! – fez com que eu topasse com o grande “negócio” da minha vida! A princípio não julguei que fosse tal. Era um belo papel romântico que eu sabia que eu sabia poder desempenhar melhor do que ninguém. Essa peça desde o início, veio a ser um formidável sucesso de bilheteria! E então a vida me levou até onde eu queria chegar: a um lucro líquido de trinta e cinco a quarenta mil por temporada! Era uma verdadeira fortuna naquela época... ainda o é hoje! (com amargura) Não sei o que diabos queria então comprar que valesse a pena eu... Bem, de nada mais adianta rememorar isso agora! É tarde para arrependimentos! (olha distraidamente as cartas) Sou eu a jogar, não? (pg 168, pg 169, pg 170)
Edmund, compreendendo pela primeira vez o custo do sucesso de seu pai e as origens de sua avareza, retribui a honestidade de seu pai com a sua própria confissão em uma das passagens líricas mais comoventes, de um momento de transcendência suprema:
Edmund
“... Quer ouvi as minhas? Estão todas ligadas ao mar. Aí vai uma: foi quando eu viajava num veleiro rumo a Buenos Aires... a favor dos ventos alísios e com lua cheia. O velho barco fazia quatro nós por hora. Achava-me estendido no tombadilho, olhando em direção à popa – a água salpicava-me com sua espuma, e os mastros resplandeciam lá no alto, na brancura de suas velas despregadas ao luar. Tudo aquilo me embriagava com a sua beleza e o ritmo de seu canto; e, por uns momentos, esqueci-me de mim mesmo... na verdade, esqueci-me até da própria vida! Senti-me livre! Dissolvi-me no mar! Converti-me em velas brancas e espuma voadora! Transformei-me, também eu, em beleza e ritmo! Fundi-me ao luar, no barco, no firmamento vagamente estrelado! Integrei-me sem passado nem porvir, na paz e na unidade do universo e, numa selvagem alegria, em algo maior que a minha vida ou a vida de um homem: a própria vida em si!... Deus – se você assim o prefere! Lembro-me também na torre da guarda e cumpria o quarto do amanhecer. Dessa vez o mar estava sereno. Sentia-se apenas o preguiçoso trepidar da coberta e o suave e sonolento balanço do navio. Os passageiros dormiam, e nem um só tripulante a vista. Não se ouvia o menor ruído humano. Por trás de mim e à minha frente brotava a negra fumaça das chaminés. Eu sonhava, esquecido de minha missão de vigia. Sentia-me, só isolado ali no alto, e via arrastar-se a madrugada como um sonho pintado sobre o céu e o oceano que juntos dormiam. E aí que chegou o momento de estática liberdade. A paz... o fim de toda busca, o ponto final, a alegria da plena realização, além dos temores pequeninos e das mesquinhas ambições humanas – minha vida – quando a nado entrava pelo mar adentro, ou estava estendido na praia – experimentei a mesma sensação! Converti-me no sol, na areia quente, nas verdes algas ancoradas n rochas, balouçando-se ao vaivém da maré! Como a visão da beatitude de um santo! Como o véu que encobre o mistério ao ser descerrado por uma mão invisível! Por um segundo vislumbramos o segredo e – ao vislumbrá-lo – nele nos integramos... fugazmente alcançamos o seu sentido. Mas logo a seguir, a Mão invisível deixa recair o véu, e novamente ficamos sós perdidos na bruma, e continuamos a avançar aos tropeções, sem saber para onde, nem para quê! (com um sorriso que mais parece uma careta). Foi um grande erro ter nascido homem! Teria sido melhor ter nascido gaivota!! Assim, serei sempre um estranho, que nunca se sente em casa, que não quer realmente a ninguém – e a quem, em troca, ninguém quer! – que nunca está onde deveria estar, e que vive continuamente um tanto quanto enamorado da morte!...” (pg 172, pg 173, pg 173)
O momento mais emocionante de Edmund na peça é a profunda consciência trágica e existencial de si mesmo. Ter nascido homem foi um erro. Teria mais sucesso se tivesse nascido gaivota ou peixe. Como não nasceu, a sensação da estranheza de não pertencimento o leva sempre a flertar com a morte.
A peça termina com a confissão de Jamie de seu ressentimento por seu irmão e seu prazer secreto na destruição de sua família, que lhe confere o papel de impotência:
Odeio a mim próprio. Tenho que me vingar. Vingar-me dos demais... e, sobretudo de você... É como na balada do Cárcere de Reading de Oscar Wilde. O homem estava morto e, por isso, tinha que matar a quem amava. Assim é que deveria de ser. O que há de morto em mim espera que não se cure nunca. Talvez até se alegre que mamãe tenha retornado a morfina! Requer companhia... Não quer ser o único cadáver dentro desta casa! (ri um riso cruel e torturado) (pg 187)
Na medida em que as revelações familiares vão num crescendo, vemos o clímax em que Mary (a mãe) carrega o vestido de noiva. Ela completa o monólogo individual.
Mary (olhando para o vácuo com um olhar sonhador; seu rosto parece extraordinariamente juvenil e inocente; nos seus lábios, nota-se um sorriso confiante e timidamente ansioso enquanto fala consigo mesma)
“... Mas a Madre Elizabeth achou que eu devia ter ainda maior certeza e provar que não fora simplesmente imaginação minha! Disse-me que, se estava tão segura assim, não me devia importar se me pusessem a prova, mandando-me para casa depois da minha formatura, para que eu levasse uma vida igual à das outras moças assistindo festas e bailes e me divertindo como elas fazem. E que, se ao cabo de dois anos eu me sentisse ainda tão certa de minha vocação, então, sim, poderia voltar para vê-la e tratarmos novamente do assunto. (sacode a cabeça indignada). Nunca imaginei que a santa madre me pudesse dar tal conselho! Fiquei mesmo muito chocada com isso. Respondi-lhe que, decerto, atenderia à sua sugestão, mas achava que era simplesmente perda de tempo. Depois que a deixei, senti-me muito desorientada. Fui então a capela e rezei à Virgem Santíssima e novamente encontrei paz porque sabia que ela ouvira a minha prece e que me amaria para sempre... e que nunca permitiria que o mal me atingisse, conquanto que eu não perdesse a minha fé... (faz uma pausa e uma expressão de crescente mal-estar se estende sobre o seu rosto. Passa a mão na testa como se tentasse se afastar de seu espírito conturbado teias de aranha. Em tom vago e distante) Isso se passou no inverno do meu último ano de estudos. Depois da primavera... aconteceu uma coisa comigo... Sim agora eu recordo... Apaixonei-me perdidamente por James Tyrone e durante algum tempo fui feliz... (pg 199)
Amor, perdas, esperanças da juventude misturados com a decepção completam toda a história. A peça chega a um ponto em que não existem possibilidades de consolo e regeneração. A busca da transcendência é uma busca inútil.
“Longa jornada noite adentro”, de Eugene O’Neill, é uma metáfora de uma jornada em direção ao reconhecimento sombrio da frustração, do desapontamento, uma longa jornada em direção às verdades nuas e cruas.
“Longa jornada noite adentro”, de Eugene O’Neill, merece um lugar de HONRA na estante