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Desonra

“Desonra”, além de ser um romance distópico sobre a vida do Professor David Lurie, é uma viagem através da África do Sul contemporânea onde temas como raça, gênero, propriedade, violência e cumplicidade moral e política são abordados de forma tão poderosa e provocante que deixa o leitor atônito. Não é um livro para ser lido na praia ou em uma viagem de lazer, muito menos à espera de um avião. No entanto, é uma obrigação lê-lo. Não importa o gênero literário que você goste. É uma obrigação para aqueles que são estudantes ou tem interesse nas áreas de história, filosofia e estudos culturais. Como também é obrigatória para aqueles que têm como hábito ler Sidney Sheldon, John Grishham, Harlan Coben, etc e tal. Todos aqueles que procuram uma leitura de qualidade não podem ficar sem ler “Desonra”. Então vamos ao livro.

Lurie é um homem de meia idade, solitário, erudito e acomodado, com dois casamentos fracassados e uma filha. Na universidade, leciona nas cadeiras de letras clássicas e modernas, e alimenta seu universo intelectual com as aulas de Poesia Romântica que é sua especialidade. Em seus delírios, cogita escrever uma ópera sobre Lorde Byron, mas não consegue levar seu projeto adiante. Não se incomoda pela falta de interesse dos alunos por suas aulas de poesia. Ao longo do livro, o leitor irá perceber que a única fonte de esperança para o protagonista se resume a seu projeto operístico sobre Byron.

Em sua vida particular, satisfaz suas necessidades afetivas com dia, hora e local com uma prostituta chamada Soraya que o dispensa, e ele passa a ter um caso com uma de suas alunas, o que para ambos não tinha significação afetiva alguma. Acusado de assédio sexual, assume-se culpado e rejeita a fazer a própria defesa. Não está disposto a retratar-se publicamente.

“Estamos vivendo tempos puritanos. A vida privada é assunto público. Eles querem espetáculo: bater no peito, mostrar remorso, lágrimas se possível. Um show de televisão na verdade.”

Nos primeiros movimentos do livro já é possível observar os sinais de apego de Lurie aos velhos tempos e as velhas normas, uma tentativa de manter a posição de poder e a tranquilidade do colonizador que havia usufruído no passado. Ele se considera velho demais para mudar seus paradigmas fixos e estabelecidos.

O tema do romance, o “knorr” do livro, é o predomínio da indiferença entre as relações existentes. Ninguém compreende ninguém e muito menos há um esforço nesse sentido. Lucy, filha de Lurie, tem pelo pai um profundo estranhamento, a ponto de nunca chamá-lo de pai, mas pelo primeiro nome. Os brancos não compreendem os negros; os negros não compreendem os brancos. Negros e brancos andam em bandos, como animais que se evitam, ou admitem a convivência pelo domínio do mais forte. Ninguém compreende a realidade do outro, uma profunda indiferença reina em todos os momentos do romance. A ausência de comunicação ao longo da história pouco a pouco vai sendo reduzida apenas aos monossílabos que ainda podem ser evocados, e mesmo assim nem todos eles.

O pano de fundo de toda essa indiferença reside sobre o sistema social no pós-apartheid na África do Sul e como essa contingência histórica vai afetar a vida das pessoas que sofrem por essas alterações. "Desonra" fala sobre a catarse das pessoas que foram submetidas a séculos de vida opressiva e como elas reagem às mudanças que colocam o poder em suas mãos. Representa as equações de mudança social, como o outrora poderoso se torna impotente, e ele também fala sobre as mudanças psicológicas e mentais ao nível das massas. O livro investiga as relações entre as classes, os sexos e as raças, a respeito do acerto de contas no período pós-apartheid.

As tragédias se sucedem, os acontecimentos se precipitam de forma contundente, rápida e espetacular; a máquina de “produção de tragédias” de Coetzee não dá trégua em nenhum momento. Os personagens centrais do romance vivem em situações limítrofes, causadas por essa “senhora” chamada “indiferença”.

A classe do autor é a marca deste livro, sua honestidade e poderosa oratória são alta e clara nos diálogos entre os personagens centrais, utilizando cada palavra de maneira sublime e sem desperdícios, Coetzee constrói uma narrativa mergulhada numa sociedade dilacerada pela criminalidade e pela crise dos valores e de conduta social. Ele retrata as cenas sem qualquer dose de emoção, vai ao osso. Sem trocadilhos, a narrativa é preto no branco, branco no preto, o que em outras palavras quer dizer: direta.

"Desonra” é um grande livro e nos apresenta uma sociedade a um passo do Apocalipse.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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Desonra
autor: J. M. Coetzee
editora: Cia. das Letras
tradutor: Jose Rubens Siqueira

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