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Liquidação

“Liquidação” do escritor húngaro Imre Kertész, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura O romance em 2002, é um desses romances intelectuais, mas emocionante e agradável de ler.

Antes de falar da obra desse grande escritor, falaremos um pouco da sua vida.

Nascido em Budapeste, em 1929, numa família de ascendência judaica plenamente integrada na sociedade húngara, Imre Kertész tinha 15 anos quando foi deportado para Auschwitz, na Polônia, em 1944. Sobreviveu ao campo de extermínio e foi transferido para pouco de sua Buchenwald, no leste da Alemanha, onde aina se encontrava quando foi libertado em abril de 1945.

A partir de 1956, já como cidadão adulto, viveu sob o totalitarismo de Stalin e nas condições existenciais da Guerra Fria, o que só terminou de vez com a caída do Muro de Berlim em 1989.

Por fim, Kertész se suicidou em 2016, doze anos depois de ter ganhado o Prêmio Nobel de Literatura em 2002, por razões próximas às razões do seu alter ego no romance “Liquidação” chamado B. Auschwitz, Buchenwald e a ditadura stalinista, duas formas de totalitarismo, são certamente experiências de desamparo para quem as vivenciou em primeira pessoa.

As respostas que o livro “Liquidação” dá sobre tudo que foi vivido pelo personagem B. são essencialmente negativas: frente ao mal radical que se espalhou no século XX pelas práticas totalitárias, ou seja, a solução do autossacrifício, o suicídio. O nome B. na verdade tem origem em uma tatuagem em que está escrito “B.” acrescido de quatro dígitos (porque os braços dos bebês são muito curtos e a tatuagem nas pernas era o local mais “apropriado”).

O romance começa depois da queda do comunismo com o primeiro personagem ao qual seremos apresentados com nome bem estranho: Amargo. Ele está procurando desesperadamente um arquivo deixado por B., que se matou há 10 anos, em 1990.

Na primeira cena, três amigos vêm para o escritório de Amargo para discutir assuntos relativos a um texto deixado por B. Sua editora, que é estatal, está prestes a ser liquidada. Enquanto Amargo lê o roteiro, um sentimento nostálgico invade B. a cada página. Afinal, ele cometeu suicídio e a lembrança sobre o amigo aparece nitidamente em sua memória. “Liquidação” é uma história clássica de detetive.

Amargo, nome de um amigo de B., ronda os arquivos dele à procura de uma obra–prima perdida escrita pelo próprio. Às vezes brincalhão, às vezes angustiante, o romance tece múltiplas vozes e texturas em uma meditação sobre a leitura e a escrita, atividades aqui inseparáveis da própria vida.

 

Seja como for, a literatura é a armadilha que nos aprisiona.  Mais exatamente, a leitura. A leitura como narcótico que apaga agradavelmente os cruéis contornos da vida que nos governam.” (Pg 36)

 

O leitor é jogado em um ponto em que a realidade e a imaginação misturam-se.

A coisa fica mais densa quando Amargo está certo que B. havia deixado um romance. Ele vai procurá-lo. A situação complica-se pelo fato de que B. estava tendo um caso com Sarah, amiga de Amargo, enquanto o próprio Amargo estava tendo um caso com a esposa de B., Judit. Judit queria filhos, B. não via a menor possibilidade de viver essa realidade.

A turbulência interna desses personagens não é nada comparada com os destroços históricos que os rodeia. Os conflitos internos de B. na verdade são a ação de um veneno de ação lenta que devora a alma proveniente de sua história de vida. Para Kertész, as atrocidades cometidas sob os regimes totalitários, em particular aquelas cometidas pelo regime nazista, são literalmente não simbolizáveis, são incompreensíveis. Embora não seja o primeiro a dizer isso em referência a Auschwitz (temos uma longa tradição poética e filosófica, que inclui Primo Levi, Paul Celan e muitos outros), Kertész faz um de seus personagens dizer sobre Auschwitz:

 

“E os que estiveram também escrevera não conhecem Auschwitz. Auschwitz é outro planeta, e nós, os homens, os moradores da Terra, não temos a chave para decifrar o enigma de compreendido pela palavra Auschwitz.” (Pg 91)

Essa falta de compreensão mencionada por Kertész parte de uma premissa que Auschwitz não existe como evento no domínio do representável para alguém que não teve uma experiência pelo menos similar. Mas diz algo mais, ou seja, com o fechamento dos campos de concentração, ficou inviabilizada para os  sobreviventes a promessa de testemunhar para que algo semelhante nunca mais viesse a ocorrer. Muitos sobreviventes dos campos de concentração não souberam lidar com esses fantasmas (tomando como exemplos o poeta Paul Celam, Bruno Betleheim, Primo Levi e o próprio Imre Kertész , autor do livro) e acabaram se suicidando. No caso de B., ele era viciado em morfina. E a morfina é a droga para anestesiar a dor.

 

ÁDÁM: Ninguém pode anular Auschwitz, Judit. Ninguém com base em nenhum direito. Auschwitz não pode ser anulada. JUDIT (mais desesperada): Eu estive lá. Eu vi. Auschwitz não existe.” ( pg100)

 

Muitas das vítimas de campos de concentração não conseguem falar sobre suas experiências, por ser insuportável, inclusive em situação analítica. Para B. (alter ego de Kertész no livro) na carta de despedida:

 

“Tenho que desaparecer daqui, com tudo o que - como dizê-lo – carrego comigo como uma peste. Trago em mim forças exterminadoras de um poder inacreditável, o mundo todo poderia ser destruído pelo meu ressentimento, para ser delicado e não dizer coisas nauseantes. Há tempos anseio somente pela minha extinção. Mas ela não acontece por si. Tenho que ajudá-la a promovê-la(...) Anseio de peito aberto pela minha extinção” (pg 64, pg 65).

 

É esta a catástrofe, ao mesmo tempo interna e externa, representada pela experiência do autor-personagem de “Liquidação”.

 

“O homem do tempo das catástrofes não tem destino, não tem qualidades, não tem caráter. O meio social vertiginosos até que ele desista da resistência e nele exploda o caos como gêiser fervente – o seduz com a força de atração dos redemoinhos vertiginosos até que ele desista da resistência e nele exploda o caos como um gêiser fervente – e a partir de então o caos se torna a sua morada. (pg 48) Com efeito, se a vida é o que vivemos e é vista como o que somos – “Amargo se colocava a pergunta de Hamlet, que para ele não soava mais como ser ou não ser, mas como sou ou não sou” (KERTÉSZ, 2005, p. 103).

 

Liquidação é um romance que levanta questões filosóficas, como, por exemplo, o suicídio, mas com uma narrativa acessível e instigante, baseado em fatos reais. É um romance policial, é um romance em que os sentimentos não caem na vala comum do sentimentalismo. Longe disso!

O que poderia ter levado B. à sua autodestruição?

 

Foi uma loucura repentina?

 

O debate está aberto. Mas uma coisa é certa: o sofrimento daqueles que se matam, segundo Kertész, é sempre particular e inacessível. Não há explicações banais. Esse é o mistério do livro: o mistério do suicídio, o que faz de “Liquidação” um livro inquietante.

 

Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Drama


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Liquidação
autor: Imre Kertesz
editora: Companhia das Letras
tradutor: Paulo Schiller

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