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Confissões

Confissões” de Jean Jacques Rousseau revela uma infinita sede de transparência, uma brutal e minuciosa sede de verdade expondo a subjetividade sem concessões. Um autorretrato que está“ em todos os sentidos fiel a natureza”, e que não esconde nada. Para isso, todo cantinho de memória será vasculhado, despindo a própria história de modo inigualável. Enquanto as memórias redigidas pelos grandes escritores em geral começavam tradicionalmente com a entrada no mundo, na vida social, as “Confissões” estão enraizadas nas lembranças mais distantes da primeira infância.

Rousseau conta com detalhes os seus momentos vergonhosos como, por exemplo, a maneira pela qual ele se desfaz de seus cinco filhos, que teve fora do casamento com Therèrèse Levasseur. Mas tem muitas confissões.


Rousseau abandona nesse livro a preocupação de pintar o homem geral. É o aspecto singular do seu projeto que ele colocou a frente, a originalidade do homem único, feito como nenhum outro. Ele se dirigiu a Deus, como no dia do julgamento. A sua solidão o levou a tomar o ser eterno como testemunha e como interlocutor. Sob o olhar não só de um Juiz supremo, mas também de seus contemporâneos, dos seus leitores do futuro, em uma escolha radical entre a verdade e a mentira, bondade e maldade. Podemos dizer que a revelação de suas torpezas se torna um elemento importante para se reivindicar a bondade.

Rousseau foi o teórico do sentimento interior como o único guia da vida. Em seus escritos reúne a veia mais importante do Iluminismo e lança as raízes do romantismo, expressando ímpetos conservadores, o desejo e, ao mesmo tempo, o temor de uma revolução radical e a nostalgia da vida primitiva.

Ele estava convencido de que sem os instintos e as paixões, a razão torna-se algo meramente acadêmico, ao passo que, sem a disciplina da razão, as paixões e os instintos levam ao caos individual e à anarquia social.

O conflito entre seu eu profundo e o mundo circundante aguçou-se, podemos destacar esse momento de explosão na condenação daquele mundo e daquela cultura em nome da natureza que lhe reservava alegrias mais belas e inesquecíveis.

No entanto, seria de bom tom antes de entrar nas questões abordadas por ele, destacar um ponto que para mim é essencial para compreender o seu pensamento: a leitura. É um tema que aparece em todos os momentos de seu pensamento. Ele discutiu a sua própria indução nas primeiras páginas de “Confissões” quando diz:

 

“... Não sei como aprendi a ler; lembro-me apenas das minhas primeiras leituras e do efeito que elas me fizeram: é o tempo de onde marco sem interrupção, a consciência de mim mesmo. Minha mãe deixara uns romances, e, depois da ceia, meu pai e eu os íamos a ler. De começo cogitava-se apenas de me exercitar na leitura por meio de livros divertidos, mas logo meu interesse se tornou tão vivo, que líamos ambos sem tréguas e passávamos a noite nessa ocupação. Só podíamos largar ao fim do volume. Meu pai, as vezes, ouvindo as matinas das andorinhas, dizia envergonhado: “Vamo-nos deitar. Sou mais criança que tu.”( pp. 31 e 32)


Rousseau desenvolvera um método de ler e compreender, como também uma compreensão das paixões. Esse método consistia em “digerir” os livros tão completamente que se tornaram absorvidos pela vida.

 

 

“...Ainda não tinha nenhuma noção das coisas, e já todos os sentimentos me eram conhecidos. Essas emoções confusas que eu sentia uma sobre a outra, não alteraram a razão que eu ainda não tinha, mas me forjaram uma tempera diferente, e me deram da vida humana noções bizarras e romanescas de que a experiência e a reflexão nunca me puderam curar” (pg. 32)


Rousseau não descrevia simplesmente a leitura como tal era feita por ele e pelos personagens de seus livros. Orientava a leitura de seus leitores. Mostrava-lhes como abordar os seus livros. Guiava-os dentro do texto fazendo-os desempenhar certo papel. Como observa Robert Danton em seu livro “O grande Massacre de Gatos e outros episódios da história cultural francesa” Rousseau até tentou ensinar os seus leitores a ler, e através da leitura tentava tocar as vidas interiores deles. Para isso, a leitura convencional precisava ser esquecida, ou seja, ao invés de se esconder por trás da narrativa e puxar as cordas para manipular os personagens, à maneira de Voltaire. Ele jogava-se em suas obras e esperava que o leitor fizesse o mesmo. A transformação da relação entre o texto e o leitor, entre o leitor e o texto.

Ler, viver e amar eram coisas inseparáveis para o escritor, que vivia mais intensamente na imaginação do que na vida cotidiana.

 

 

“...Nessa situação estranha, minha imaginação inquieta adquiriu um costume que me salvou de mim próprio e acalmou-me a sensibilidade nascente; foi nutrir-me das situações que me haviam interessado nas leituras, lembrá-las, combiná-las, apropriar-me delas de tal modo que me tornasse um dos personagens que imaginava que me visse sempre, segundo o meu gesto, nas mais agradáveis posições, enfim que a condição fictícia em que me travestia me fizesse esquecer a vida real que me descontentava tanto. Esse gosto pelas coisas imaginárias e essa facilidade de as imaginar acabaram de me desgostar de tudo que me cercava, e determinaram esse amor à solidão que me ficou desde esse tempo, para sempre.”(pg. 59)


A influência dessas “Confissões” vai além da filosofia. É uma obra que inaugurou um gênero moderno de autobiografia e técnica de narrativa que influenciaram os grandes romances do século seguinte. “Confissões” enfatiza a importância da experiência subjetiva, individual e sensorial do mundo, não é à toa que o autor é considerado pai do romantismo.

A ênfase nas experiências da infância, na idade adulta, sobre sua sexualidade antecipa o trabalho psicológico revolucionário de Sigmund Freud. Rousseau conta com detalhes os seus momentos vergonhosos, como por exemplo, a maneira pela qual ele se desfaz de seus cinco filhos, que teve fora do casamento com Therèse Levasseur, fala de Madame de Warrens e suas longas permanências em sua casa quando jovem. Ele pretende mostrar a humanidade em geral, através de um homem particular, e um homem revelado no seu íntimo. Para ele, uma personalidade é um todo, e um indivíduo só pode ser explicado através da “singular totalidade da sua vida.”

Hoje, quando vemos a polêmica em torno das biografias não autorizadas, chegamos à conclusão que muito poucos são aqueles que têm “guts” (coragem) para uma exposição desse tipo. Não precisamos ser como Rousseau, isso seria pedir demais, mas não precisamos também, ao invés de biografias, inaugurarmos novo estilo de hagiologia (estudo dos santos) de celebridades.

“Confissões”, de Jean Jacques Rousseau, é um livro atual para esses tempos bicudos que estamos vivendo. Uma leitura preciosa sob todos os aspectos. Como sempre digo, não se contentem com o que foi dito aqui. Não é nada. O livro é muito melhor e com “detalhes” muito mais interessantes, feitos por um homem que nunca teve medo de falar de si. “Confissões” é um livro que você merece ter um lugar em sua estante.

 


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Biografias


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Confissões
autor: Jean-Jacques Rousseau
editora: Edipro
tradutor: Jose Benedicto Pinto | Rachel de Queiroz

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