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Comunidade. A busca por segurança no mundo atual

“Bem-vindos à esquiva comunidade”, começa Zygmunt Bauman em seu livro “Comunidade − a busca por segurança no mundo atual”. A palavra “comunidade” é uma palavra boa, “estar numa comunidade”, viver em comunidade soa bem.  Comunidade é um lugar aconchegante, produz uma sensação boa por causa dos significados que a palavra carrega. Lá fora na rua existe o perigo, ele pode estar em qualquer lugar, temos que ficar em prontidão em cada minuto. Se você está fora da comunidade, é porque você está em más companhias. O que essa palavra evoca é tudo aquilo de que sentimos falta e de que precisamos para viver seguros e confiantes. Em suma, “comunidade” é o tipo de mundo que não está, lamentavelmente, a nosso alcance — mas no qual gostaríamos de viver e esperamos vir a possuir. É assim que começa o livro na introdução. É o título do livro.

O primeiro capítulo – “A agonia de Tântalo” – situa-nos no atrito que norteia a proposta do texto, seja na mitologia grega, seja na bíblica, a ideia de paraíso está ligada à inocência. Bauman se aproveita da mitologia grega, a qual narra a história de Tântalo, filho de Zeus e Plutó, que aventurou compartilhar um conhecimento que de forma alguma deveria ser alcançado pelos pobres mortais terrenos. Como castigo, Tântalo mergulhou até o pescoço em uma espécie de córrego e acima dele havia um cacho de frutas, porém a truculência dos deuses se fazia presente haja  vista  que,  ao  abaixar  a  cabeça  para  aliviar  a  sede,  a  água  logo  desaparecia  e,  ao estender a mão para pegar uma fruta, uma atmosfera empurrava e afugentava o cacho.

A ideia de comunidade nos remete ao mesmo tempo à fantasia do paraíso perdido ou, se quisermos o paraíso esperado, seja como for, comunidade é um conceito, segundo Bauman, que nós não conhecemos. Não é uma realidade conhecida. É algo imaginário, que não conhecemos. Talvez seja um paraíso por essa razão. Mas há algo ideológico que envolve esse conceito: ele sempre nos remete a uma coisa boa.

Na história de Adão e Eva, o castigo por terem comido o fruto da Árvore do Conhecimento foi a expulsão do paraíso. E o paraíso era um paraíso porque lá eles podiam viver sem problemas: eles não tinham que fazer as escolhas das quais dependia sua felicidade (ou infelicidade). As mitologias sempre dão o seguinte recado:

“Somente se pode ser realmente feliz enquanto não se sabe o quanto feliz se é”.

A comunidade significa entendimento compartilhado do tipo natural. Ela não pode sobreviver no momento em que o entendimento se torna autoconsciente, não há motivação para a reflexão, não há motivação para a crítica ou para a experimentação. Existe uma tensão entre essa utopia da segurança com a ideia de liberdade, na medida em que a vivência em comunidade significa a perda da liberdade. Essa questão, segundo Bauman, é um dos dilemas para compreendermos a contemporaneidade. Paradoxalmente, almejamos e resistimos à segurança coletiva, em prol da liberdade individual. 

A promoção da segurança sempre requer o sacrifício da liberdade, enquanto esta só pode ser ampliada à custa da segurança. Mas segurança sem liberdade equivale a escravidão (e, além disso, sem uma injeção de liberdade, acaba por ser afinal um tipo muito inseguro de segurança); e a liberdade sem segurança equivale a estar perdido e abandonado (e, no limite, sem uma injeção de segurança, acaba por ser uma liberdade muito pouco livre). Essa circunstância provoca nos filósofos uma dor de cabeça sem cura conhecida. Ela também torna a vida em comum um conflito sem fim, pois a segurança sacrificada em nome da liberdade tende a ser a segurança dos outros; e a liberdade sacrificada em nome da segurança tende a ser a liberdade dos outros. (2003, p. 24)

A perda desse paraíso perdido está guardada em nossa memória; temos a sensação de felicidade perdida que um dia tivemos, que transformou-se em um saudosismo atávico, que acabou se transformando em utopia.

Ferdinand Tönnies (sociólogo alemão) sugere uma distinção entre a comunidade antiga da moderna sociedade. Para o sociólogo, comunidade era um entendimento compartilhado por todos os seus membros, em que residia a  consanguinidade (família), a coabitação territorial (vizinhos) e afinidade espiritual (amigos). Caracteriza-se pela vida social em conjunto, intimidade, laço entre as pessoas. São relações que têm valor por si mesmas, não dependem de algo externo a elas, são únicas.

Na sociedade, as relações são fluídas e orientadas mais para alcançar os fins a que se propõem os indivíduos ou grupos a que estejam vinculados. Porém, os vínculos não são uma cláusula pétrea, pois o indivíduo tem autonomia e liberdade para buscar outros vínculos de acordo com seus interesses ou preferências. Buscam construir consensos, e o consenso não é mais do que o acordo alcançado por pessoas com opiniões essencialmente diferentes, um produto de negociações e compromissos difíceis, de muitas disputas e contrariedades, e com murros ocasionais.

Robert Redfield (foi um antropólogo, sociólogo e etnolinguísta americano)  concordaria com Tonnies, no sentido de que a comunidade é autossuficiente, oferece todas as atividades e atende a todas as necessidades das pessoas que fazem parte delas. A unidade da comunidade  é feita do mesmo estofo: de homogeneidade e mesmidade. Essa mesmidade começa a enfrentar dificuldades no instante em que o equilíbrio entre a comunicação de dentro e de fora, antes inclinado para o interior, começa a embaçar, alterando a distinção entre nós e eles. A mesmidade evapora no momento em  que a comunicação entre o interior e o exterior se intensifica e passa a ter mais peso que as trocas mútuas internas.

Um olhar histórico da humanidade permite dizer que Tonnies via a comunidade como o passado, e a sociedade como o presente na civilização ocidental. Nos dias de hoje, a palavra “comunidade”, como observa Hobsbawm,  “nunca foi utilizada de modo indiscriminado e vazio do que nas décadas em que as comunidades no sentido sociológico passara a ser dificil de encontrar na vida real”; e comentou que “homens e mulheres procuram por grupos a que poderiam pertencer, com certeza e para sempre, num mundo em que tudo se move e se desloca, em que nada é certo”.

Sobre a concepção atual de comunidade, segundo Bauman, estão presentes duas tendências que acompanharam o capitalismo moderno: por um lado,

“o esforço de substituir o ‘entendimento natural’ da comunidade de outrora, o ritmo, regulado pela natureza, da lavoura, e a rotina, regulada pela tradição, da vida do artesão, por uma outra rotina artificialmente projetada e coercitivamente imposta e monitorada” (pg 36).

 Nos termos de Tönnies, seu objetivo era naturalizar os padrões

      “abstratamente projetados e ostensivamente artificiais” (pg 39).

Durante cerca de meio século e particularmente nas “três gloriosas décadas” do “acordo social” que acompanhou a reconstrução do pós-guerra, a “fábrica fordista” serviu de modelo para o ideal perseguido com graus variados de sucesso por todas as empresas capitalistas. Entender a complexidade envolvida nessa tensão no contexto pós-moderno é o objetivo desse livro. Se nos livros anteriores já resenhados aqui, Bauman tinha como preocupação entender e diagnosticar o século XX, nesse livro “Comunidade − a busca por segurança no mundo atual”, o autor localiza na Revolução Industrial e na formação do Estado-nação o processo de desconstrução da ideia de comunidade, e os dilemas com os quais nos confrontamos hoje.

Segundo Bauman, o golpe mortal na “naturalidade” do entendimento comunitário foi desferido pelo advento da informática. A informação passa a viajar independente de seus portadores e numa velocidade máxima, nunca alcançada. A fronteira entre o “dentro” e o “fora” não pode ser estabelecida e muito menos mantida. E é nesse momento em que a comunidade colapsa e  a identidade é inventada. A identidade é a palavra que mais se ouve na cidade, atrai paixões e substitui a comunidade. A identidade brota entre os túmulos das comunidades.

Bauman utiliza-se das reflexões de Max Weber para entender que o ato de consolidação do capitalismo moderno se deu na separação entre os negócios e o lar, o que significou ao mesmo tempo a separação entre os produtores e as fontes de sua sobrevivência. Esse duplo movimento libertou as ações voltadas para o lucro e também aquelas voltadas para a sobrevivência da teia dos laços morais e emocionais da família e da vizinhança, esvaziando todo o sentido de que eram, antes, portadoras.

Para o empresário moderno, a separação entre os negócios e o lar foi uma verdadeira emancipação. Em um primeiro momento, não visava a libertação do indivíduo. Os homens e as mulheres deviam ser separados dos laços comunitários que impediam os seus movimentos para que pudessem mais tarde ser recolocados como equipe de fábrica.

Duas tendências acompanharam o capitalismo moderno ao longo de sua história. A primeira tendência se inicia no começo do século XX com a linha de montagem, com a organização científica do tempo, ou seja, separou-se o desempenho produtivo dos motivos e sentimentos dos trabalhadores, que poderia ser traduzido na separação entre trabalhador e a máquina. Uma rotina inteiramente diferente, ostensivamente artificial, sustentada pela coação. Uma segunda tendência paralela à primeira: as cidades modelos construídas em torno das fábricas, projetadas pelos donos das fábricas. Havia uma engenharia social, combinando um novo padrão social racional, flertando com uma nova forma de comunidade.

Podemos resumir dizendo que o novo arranjo capitalista construiu-se sob dois pilares: uma claramente emancipatória, para os poderosos; e uma coercitiva, destinada às massas. A emancipação de uns exigia a supressão de outros, diz Bauman, e o momento culminante que entrou para a história ficou conhecido como “Revolução Industrial”: as massas de artesãos e camponeses eram retiradas de suas rotinas comunitárias, ligadas ao hábito, e inseridas nas rotinas das fábricas, presas às tarefas.

Bauman cita uma passagem de Marx, quando ele disse que não é preciso que o regente de uma orquestra sinfônica seja dono dos violinos e trombetas. Podemos virar o argumento pelo avesso e dizer que os donos dos instrumentos da orquestra também não precisam assumir a complexa tarefa da regência. Regentes não compram os instrumentos de suas orquestras; mas o dono da orquestra e da sala de concerto preferem contratar os seus regentes em lugar de reger a orquestra diretamente. Pegando carona nesse exemplo, os empresários capitalistas passaram as tarefas regenciais a empregados contratados. Bem-vindos ao mundo da gerência.

A gerência não é uma questão de escolha, mas de necessidade. Um serviço cujo objetivo e atividade é padronizar, vigiar, monitorar e dirigir as ações como principal método de projeto, construção e manutenção da ordem. E o fez substituindo o modelo da modernidade capitalista, direcionado ao lucro, pelo capitalismo moderno, dirigido pela urgência de substituir a tradição fundada na comunidade por uma rotina artificial construída.

Podemos resumir dizendo que a Modernidade foi, em sua maior parte, uma época de gerenciamento, em que a única ordem concebível era uma ordem projetada e mantida pelo monitoramento. A rotina imposta pelas “fábricas de disciplina” era sem dúvida detestada e provocava ressentimentos.

Após as duas guerras mundiais e a reconstrução do pós-guerra, os poderosos perceberam que não queriam ser regulados por ninguém; e ainda menos queriam regular os outros. E, em meio à incerteza de não haver alguém tomando as rédeas da vida e dando-lhes ordens, aqueles que costumavam obedecer veem-se livres, mas mantêm a disciplina.

“O desmantelamento dos panópticos anuncia um grande salto para frente no caminho da maior liberdade do indivíduo. Ela é experimentada, porém, para dizer o mínimo, como uma bênção problemática, ou uma bênção enfeitada demais para ser recebida com alegria” (p. 43)

No mundo em que vivemos no século XXI, as muralhas não são sólidas, são móveis. Parecem, nas palavras de Bauman, “divisórias de papelão ou telas destinadas a serem reposicionadas mais e mais vezes segundo mudanças sucessivas”. O primeiro exemplo que Bauman cita como representativo é o que aconteceu com o “trabalho”. Se na Modernidade o trabalho era referência para a vida, o eixo em torno do qual o sistema girava, atualmente esse eixo está com problemas. A rigidez dos empregos está abalada: trabalhos que antes eram considerados essenciais, indispensáveis, deixaram de existir de uma hora para outra. Vivemos a época da flexibilização e reengenharia de prestação de serviço no lugar de contratos de trabalhos.

A moldura social do trabalho e a sobrevivência não é a única coisa que está se esboroando. Tudo mais parece estar no olho do furacão. Bauman, citando Richard Sennet, diz:

“o lugar onde se passará toda a vida, ou onde se espera passá-la, “existe a partir da batuta do agente imobiliário, floresce e começa a decair no prazo de uma geração”. Em tal lugar (e mais e mais pessoas começam a conhecer esses lugares e sua amarga atmosfera do modo mais difícil) inguém testemunha a vida de ninguém”. (pg 36)

 Você que está lendo esta resenha, basta olhar  para o lugar onde você mora. Nada dura o suficiente. O conceito de lugar, onde espera-se estar seguro, passa por mudanças permanentes. O mercadinho da esquina, a simpática papelaria não conseguem sobreviver à competição. Os donos, os gerentes e os rostos estão sempre mudando. O banco local e os escritórios em breve serão substituídos por vozes anônimas e impessoais (produzida por sintetizadores eletrônicos). Do outro lado da linha telefônica, as vozes gravadas incomodando a todo momento, O carteiro, que antes batia à sua porta, é algo que em breve entrará em extinção.

Espera-se que as lojas de departamentos e cadeias de butiques sobrevivam às fusões ou trocas de dono, mas a troca de empregados vem em uma velocidade absurda. A crise imobiliária força o antigo vizinho a buscar outra moradia, devido ao preço do aluguel. No “lugar”, nada se mantém igual por muito tempo, a sensação de familiaridade desaparece.

A decadência do espírito comunitário gera um novo tipo de personalidade, o “cool”. E o que vem a ser isso? São as pessoas que  se distanciam da cansativa e desgastante fuga dos sentimentos, fogem da confusão da verdadeira intimidade, para o mundo cercado de artefatos eletrônicos, vidros blindados, entre outros produtos da lucrativa  indústria da segurança. São os bem-sucedidos. Pertencem à comunidade apenas no nome, pois tudo que querem é manterem-se a distância e viver livres dos intrusos. Os condomínios da Barra da Tijuca são um exemplo clássico, os moradores vivem em bolhas.

Bauman analisa também um outro tipo de elite, a elite com status extraterritorial. São os globalizados, que não possuem “endereço permanente” a não ser o e-mail e o número do celular. A nova elite não se define por nenhuma localidade. Recebem a companhia apenas dos maîtres, arrumadeiras e garçons, e não pertencem, portanto a um único local. Vivem em hotéis. São os cosmopolitas, que nas palavras de Bauman, “celebram a irrelevância do lugar”, uma condição a que os pobres pés-no-chão, de padrão de vida mais ordinário e simples, não podem se dar o luxo. Vivem em uma “bolha sociocultural isolada das diferenças mais ásperas entre as diferentes culturas nacionais”.

Ser extraterritorial não significa, no entanto, ser portador de uma nova síntese cultural global, ou mesmo estabelecer laços e canais de comunicação entre áreas e tradições culturais. Independente de outros conteúdos associados a ele. O “cosmopolitismo” da nova elite global é certamente seletivo. No entanto, mesmos os ricos e poderosos sentem a necessidade de pertencer a algo (por mais que autonomia tenha um valor em suas vidas) para que sintam algum conforto e saibam que não estão sós. Imaginam-se pertencentes a uma comunidade dos eleitos formada por iguais, ou seja, por pessoas com identidades parecidas.

Essa identidade cosmopolita é feita precisamente da uniformidade mundial dos passatempos e da semelhança global dos hotéis cosmopolitas. O público é homogêneo, as regras de admissão são meticulosamente (ainda que de modo informal) impostas, os padrões de conduta precisos e exigentes, demandando conformidade incondicional.

E, em nenhum caso, o vínculo e o compromisso da comunidade com seus integrantes devem ser irrevogáveis ou indissolúveis. Escolhas novas e diferentes não devem ser impedidas. Bauman usa uma célebre metáfora de Weber: “O que é procurado é um manto diáfano e não uma jaula de ferro”.

Bauman segue suas reflexões sobre outro tipo de comunidade, a comunidade estética. E o que vem a ser a comunidade estética? É o campo preferencial que alimenta a indústria do entretenimento: a amplitude da necessidade explica em boa medida o sucesso impressionante e contínuo dessa indústria, principalmente o mundo das celebridades.

Os espectadores (hoje com o advento das redes sociais, foram substituídos pelo nome de seguidores) sempre ávidos, na espera de uma confissão pública das pessoas que estão na ribalta.  O que eles se deleitam com a confissão das celebridades é fazer parte de suas vidas, da comunidade de solitários. Ao ouvir a história de infância infeliz, surtos de depressão e casamentos abusivos e desfeitos, dificuldades causadas por envolvimento com drogas ou bebidas, o indivíduo enxerga nessas situações um exemplo de como sair sozinho de situações e se torna membro de uma comunidade.

Os ídolos invocam a “experiência da comunidade” sem comunidade real, a alegria de fazer parte sem o desconforto do compromisso. A união é sentida e vivida como se fosse real. As comunidades que se formam em torno deles são comunidades instantâneas prontas para o consumo imediato – e também inteiramente descartáveis depois de usadas. Trata-se de comunidades que não requerem uma longa história de lenta e cuidadosa construção, nem precisa de laborioso esforço para assegurar o seu futuro.

 Uma das características mais importante da modernidade em seu estado “sólido” era uma visão de uma economia estável, de um sistema em equilíbrio, de uma sociedade justa, com códigos de direito e ética racionais. Na modernidade líquida, os operadores políticos e porta-vozes culturais do estágio líquido praticamente abandonaram o modelo de justiça social como horizonte.

A atual modernidade “líquida” abandonou o modelo de justiça social como horizonte, prima pelo estímulo para que as pessoas encontrem seus próprios destinos. O centro agora não é mais justiça social, mas direitos humanos.  A nova elite global, de poder extraterritorial, desiste de impor uma nova ordem: na decadência da modernidade sólida, sobram as diferenças e as fronteiras entre elas erigidas. 

“É da natureza dos “direitos humanos” que, embora se destinem ao gozo em separado (significam, afinal, o direito a ter a diferença reconhecida e a continuar diferente sem temor a reprimendas ou punição), tenham que ser obtidos através de uma luta coletiva, e só possam ser garantidos coletivamente. Daí o zelo pelo traçado das fronteiras e pela construção de postos de fronteira estritamente vigiados. Para tornar-se um “direito”, a diferença tem que ser compartilhada por um grupo ou categoria de indivíduos suficientemente numeroso e determinado para merecer consideração: precisa tornar-se um cacife numa reivindicação coletiva. Na prática, porém, tudo se reduz ao controle de movimentos individuais — demandando lealdade inabalável de alguns indivíduos considerados como os portadores da diferença reivindicada, e barrando o acesso a todos os demais. (pg 71)

Sempre que a questão do “reconhecimento” é levantada é porque certa categoria de pessoas se considera relativamente prejudicada e não vê fundamento para essa privação. As guerras pelo reconhecimento preparam os combatentes para tornar a diferença irreversível, tornando-a sectária. No entanto, as “guerras pelo reconhecimento” à demanda da igualdade pode também deter o reconhecimento da diferença. Bauman coloca a “justiça social” como uma reivindicação o reconhecimento através de um comprometimento mútuo e o diálogo significativo, que poderão levar a uma nova unidade – em verdade, uma ampliação e não um estreitamento do âmbito da “comunidade ética”. Bauman sugere que essa demanda por reconhecimento deveria ser um momento para um diálogo em que fossem discutidos os méritos e os deméritos dessa diferença, colocando em xeque o fundamentalismo universalista que se recusa a reconhecer a pluralidade de formas que a humanidade possa abarcar,  a prática da tolerância.

Bauman ao falar de multiculturalismo, mostra que as pessoas são designadas como pertencentes a uma minoria étnica sem que lhes seja pedido consentimento, uma vez que essas minorias são determinadas por quem está do lado “de fora”, isto é, pelas “comunidades poderosas”, fortes, dominantes. As diferenças que fazem desses grupos “minorias” não derivam de seus atributos ou particularidades culturais, mas de um contexto social que forçou a imposição desses limites.

“Minoria étnica” é uma rubrica sob a qual se escondem ou são escondidas entidades sociais de tipos diferentes, e o que as faz diferentes raramente é explicitado. As diferenças não derivam dos atributos da minoria em questão, e ainda menos de qualquer estratégia que os membros da minoria possam assumir.

Não raro, essa postura radical acaba sendo adotada pelas “minorias étnicas”, como cita Bauman, referindo-se à relação de imigrantes e nativos em grandes países, como ocorre hoje em dia. Muitas vezes, explica o autor, os imigrantes não têm escolha e acabam tornando-se minoria étnica no país de adoção.

Mas essa proximidade dos “estranhos étnicos” com os nativos, em vez de aproximar e integrar, afasta ainda mais: imigrantes disparam nos nativos seus instintos étnicos e os fazem desejar isolar os “invasores” cada vez mais; estes, por sua vez, sentindo-se agredidos, fecham-se em sua “comunidade”. E, no lugar de contribuir para reduzir esta distância, as classes dominantes, ou “forças poderosas”, como define Bauman, até estimulam essa separação e favorecem a construção de barricadas. Dividir para reinar.

O filósofo americano Richard Rorty (citado por Bauman) faz uma interessante observação sobre dividir para reinar:

“O objetivo será manter 75% dos americanos e 95% da população mundial ocupados com hostilidades étnicas e religiosas ... Se os proletários puderem ser distraídos de seu próprio desespero por pseudoeventos criados pela mídia, incluindo uma breve e sangrenta guerra ocasional, os super-ricos nada terão a temer.”

Enquanto a divisão reina, perdura, o “multiculturalismo”, que é utilizado pelos detentores do poder, orientado pela tolerância liberal, pela preocupação com o direito das comunidades à auto-afirmação e com o reconhecimento público de suas identidades. Porém, na prática, o multiculturalismo funciona como instrumento para uma força conservadora, pois transforma desigualdades incapazes de obter aprovação pública em “diferenças culturais” reconhecidas. Afasta e não integra. Numa interessante citação, Bauman refere-se a Alain Touraine.

“Alain Touraine sugeriu que o “multiculturalismo” como postulado de respeito pela liberdade de escolha entre uma variedade de possibilidades culturais fosse separado de algo inteiramente diferente (se não manifestamente, pelo menos em suas conseqüências): uma visão mais bem chamada de multicomunitarismo. O primeiro pede respeito pelo direito de os indivíduos escolherem seus modos de vida e seus compromissos; o segundo supõe, ao contrário, que o compromisso dos indivíduos é um caso encerrado, determinado pelo pertencimento comunitário e portanto não passível de negociação. Confundir as duas vertentes no credo culturalista é, porém, tão comum quanto equivocado e politicamente perigoso”. Pg 98

Muitas culturas, uma humanidade? Bauman no seu livro retoma suas críticas à banalização do multiculturalismo e relaciona a atual insegurança à dificuldade de que haja uma humanidade unida. Para ele, o multiculturalismo é uma invenção de ilustrados intelectuais contemporâneos cuja mensagem é a seguinte:  

 

“Perdão, mas não podemos resgatá-lo da confusão em que você se meteu. Sim, há confusão sobre valores, sobre o sentido de “ser humano”, sobre as maneiras certas da vida em comum; mas depende de você encontrar seu próprio caminho e arcar com as consequências caso não goste dos resultados” (pg 112)

É a insegurança que tende a converter o multiculturalismo num multicomunitarismo, ou seja, diferenças culturais são usadas na construção de “muralhas defensivas ou plataforma de lançamento de mísseis”. Cultura é sinônimo de fortaleza sitiada.

A universalidade da cidadania é a condição preliminar de qualquer “política de reconhecimento” significativa. A universalidade da humanidade é o horizonte pelo qual qualquer política de reconhecimento precisa orientar-se para ser significativa.

A universalidade da humanidade não se opõe ao pluralismo das formas de vida humana; mas o teste de uma verdadeira humanidade universal. Precisamos permitir que o pluralismo sirva à causa da humanidade. Mas fico por aqui.

Indico “Comunidade − a busca por segurança no mundo atual”, de Zygmunt Bauman, como um livro que merece um lugar de destaque na sua estante. Principalmente para aqueles que querem entender os efeitos desse novo mundo que nos é apresentado em nossa vida.


Data: 22 novembro 2019 | Tags: Sociologia


< Os índios e a Civilização Poética >
Comunidade. A busca por segurança no mundo atual
autor: Zygmunt Bauman
editora: Jorge Zahar
tradutor: Plinio Dentzien

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