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Vida Líquida

Zygmunt Bauman foi um sociólogo polonês (1925-2017) e um dos eminentes teóricos sociais do mundo. Nascido na Polônia, ele fugiu para a União Soviética quando os nazistas invadiram seu país. Retornou à Polônia após a Segunda Guerra Mundial como comunista e professor comprometido na Universidade de Varsóvia. Em 1968, ele foi expulso da Polônia por ser muito crítico ao regime comunista do país e se mudou para o Reino Unido. Passou o resto da sua carreira – e da vida – em Leeds, na Inglaterra. Alguns de seus livros já foram expostas aqui, entre elas: Amor Líquido e Identidades. Mas existem muitas outras questões em sua obra que eu quero trazer para o site Bons livros para ler. O livro de que falaremos hoje chama-se “Vida Líquida”.

A obra desse pensador é imensa. Só aqui no Brasil foram publicados trinta livros. Suas grandes ideias – que se concentram em questões de modernidade, consumismo e globalização – refletem décadas vividas nos dois lados da divisão ideológica do século XX. Como sociólogo, Zygmunt acreditava apaixonadamente que, ao fazer perguntas sobre nossa própria sociedade, ficaríamos mais livres. E confesso que compartilho dessa visão. Uma sociedade autônoma, uma sociedade verdadeiramente democrática, é uma sociedade que questiona tudo o que é narrado e, da mesma forma, libera a criação de novos significados.

Por outro lado, torna-se fundamental o questionamento desses novos valores que estão sendo colocados para todos nós. Não podemos ser escravos de narrativas que estão sendo fabricadas ao nosso redor, perdendo contato com as nossas próprias experiências subjetivas.

Em nossas vidas pessoais, agora vivemos essa mudança de sólido para líquido diariamente. Na modernidade sólida, no mundo das fábricas e sindicatos automotivos de Henry Ford, a tarefa que enfrentavam os indivíduos livres era usar sua liberdade para encontrar o nicho apropriado e estabelecer ali a conformidade. Os nossos sistemas de educação, por exemplo, foram projetados para nos ajudar a atingir a meta de vida.

A economia industrial era caracterizada pelo emprego permanente em tempo integral em um único local. Na economia sob demanda, mais pessoas têm vários empregos. Hoje os padrões, códigos e regras aos quais podemos nos conformar estão cada vez mais escassos. Hoje estamos vendo claramente isso. Uma empresa que contrata terceirizados e terceiriza grande parte de sua atividade tem poucos compromissos e obrigações, e relações muito superficiais com a força de trabalho. Por outro lado, enquanto os funcionários permanentes trabalham em apenas uma empresa, os freelancers e os empregados em tempo parcial têm vários empregadores, alguns deles podem até ser concorrentes.

Onde antes os trabalhadores se sindicalizavam e se uniam para humanizar o trabalho contra a conformidade desumanizadora, agora lutamos com a ausência de estruturas de empregos estáveis. Não há como nos conformar, pois esses novos padrões que estamos vivendo não são mais dados, eles se contradizem o tempo todo. A modernidade líquida se caracteriza por sua transitoriedade, algo não permanente, o imediato, e não mais o longo prazo.

Torna-se fundamental compreender antecipadamente e profundamente o conceito de liquidez que Bauman cria, combinando reflexão sociológica. Solidez e liquidez são características distintas de duas épocas: modernidade e pós-modernidade, que se transforma em modernidade líquida no que se refere à existência contemporânea. A relação entre indivíduos e a sociedade está mudando. O consumidor é inimigo do cidadão. A cidadania foi reduzida ao ato de comprar. A vida líquida é uma vida de consumo. Ela projeta o mundo e seus fragmentos, é uma vida precária vivida em condições de incertezas. Na sociedade líquida moderna as realizações individuais não podem solidificar-se em posses permanentes porque, em um piscar de olhos, “os ativos se transformam em passivos, e a capacidade em incapacidade e tudo se transforma em insatisfação”.

Ser indivíduo na sociedade líquida não significa simplesmente ser bom consumidor, mas também ser produto competitivo no mercado global. Tal condição não requer apenas compra de “itens da moda”, mas também um “corpo da moda”, auxiliando na completa passagem da automanipulação de nossa própria fisicalidade. Os mercados de consumo se alimentam e estimulam a ansiedade dos potenciais consumidores.  

O corpo torna-se um espaço livre no qual moldar o Eu visível, pois, se não formos capazes de vestir nosso próprio físico, isso significa que estamos carentes de alguma coisa. A gestão autônoma de nossa corporeidade, responsabilidade pessoal, que tem a “responsabilidade de ser indivíduos”, deriva do conceito de ter e não de ser. 

As condições de ter recaem sobre o corpo do homem contemporâneo, que encontra uma forma de certeza: manipular e controlar seus meios físicos, agindo de acordo com o que você tem certeza de possuir. Incorporação e posse são parte de ter, que, em nossos tempos, ocorrem através do consumismo. O ato de consumo é uma forma de ter, talvez o mais importante para a opulenta sociedade industrial de hoje. O consumo possui algumas ambivalências: alivia a ansiedade, porque o que se tem não pode ser retomado, mas também exige que os consumidores consumam cada vez mais, já que o consumo anterior logo perde sua peculiaridade recompensadora.

A sociedade de consumo consegue tornar permanente a insatisfação. Uma das formas de causar esse efeito é depreciar e desvalorizar os produtos de consumo logo depois de terem sido alçados ao universo dos desejos do consumidor. O que começa como necessidade deve terminar como compulsão ou vício. E isso implica velocidade, excesso e desperdício.

É essa espiral viciosa que corre entre a posse e o consumo que Bauman chama de modernidade líquida, que – ao contrário do pós-modernismo – tem uma relação contínua com o processo de modernização, que tem suas origens nos tempos modernos, mas se prolonga e se intensifica até atingir a liquidez do nosso tempo, caracterizado pelo consumismo desenfreado.

Para isso é importante criar uma demanda apta a absorver a oferta e, nas etapas de reflexão ou estagnação da economia, devemos participar da recuperação liderada pelos consumidores.

Os pobres e ociosos, aqueles que não têm uma renda decente, nem cartões de crédito, nem a perspectiva de melhores dias, não estão à altura desses requisitos. Consequentemente, a regra quebrada pelos pobres hoje em dia, a violação da regra, os distingue e os rotula nas sociedades desenvolvidas como anormais.  São chamados de maus consumidores.

Hoje, o consumo parece ser uma atividade de homologação e, segundo Bauman, é uma maneira de medir o quanto uma pessoa – na sociedade líquida – é capaz de ser individual. Nesse conceito, Bauman constrói seu pensamento sobre o indivíduo e a sociedade, que é executado em duas linhas principais. 

A primeira é incorporada na ideia de que, no mundo líquido, a conquista da identidade anda de mãos dadas com a adesão às regras de uma sociedade de consumo dirigida pelas políticas do mercado global: ser indivíduo equivale a ser consumidor. 

A segunda linha, no entanto, indo além dessa consideração, se expande para incorporar o individuo nos produtos. Ninguém pode se tornar sujeito sem primeiro virar mercadoria. A “subjetividade” do “sujeito” – e a maior parte daquilo que essa subjetividade possibilita ao sujeito atingir – concentra-se em um esforço sem fim para se tornar e permanecer uma mercadoria vendável. A característica da sociedade de consumidores, ainda que de uma forma líquida, é a transformação dos consumidores em mercadora.

Apesar de possuirmos cada vez mais meios inovadores para nos comunicar e interagir com nossos semelhantes, sentimos desconforto e solidão, principalmente porque esse novo individualismo em rede é “um modelo social, não uma coleção de indivíduos isolados”. Justamente porque o papel mais importante da internet na estruturação das relações sociais é a contribuição para o novo modelo de sociabilidade baseado no individualismo.

Cada vez mais pessoas estão conectadas e organizadas em redes sociais que se comunicam via celulares ou computadores. Assim a internet cria um modelo de individualismo em rede. Sem laços permanentes, as relações nas redes sociais são muito artificiais e podem ser quebradas com apenas um clique. Porém, há pessoas que usam números como a quantidade de amigos na rede para gabar-se. O que nos faz concluir que as relações de um indivíduo é tão frágil e supérflua que não lhe interessa as relações físicas, e sim as virtuais. Em tempos líquidos, a crise de confiança traz consequências para os vínculos que são construídos. Estamos em rede, mas isolados dentro de uma estrutura que nos protege e, ao mesmo tempo, nos expõe.

 

Essa nova forma de socialização de “ser incluído” nada mais é do que o legado do abandono do autêntico sentimento de pertencimento. O pertencer, de fato, se caracteriza como um sentimento humano natural, que, sendo suprimido nos dias de hoje, se manifesta em formas substitutas de agregação social virtual que são a tentativa de satisfazer a sociabilidade humana natural.

 

A mesma fluidez é repetida em nossa cultura. Os pilares de nossa identidade − nossa profissão, nossas crenças, onde vivemos − estão sujeitos a mudanças. A realidade é dividida em módulos, que muitas vezes parecem pertencer a universos paralelos. Uma queixa comum é a falta de uma narrativa abrangente. Não há um quadro sólido para dar significado às nossas vidas.

A mudança pode ser excitante e estimulante, abrindo novos mundos de oportunidades e experiências. Ou pode ser ameaçadora e estressante, como um assalto. Como vemos, a mudança afeta como nos posicionamos. Se sentirmos que o jogo está montado contra nós, preferimos não jogar junto. Se tivermos confiança, nos envolveremos.

Uma vida muito mais líquida parece inevitável − mas é isso que realmente queremos? Isso é bom para nós? A ideia de retirar-se do espaço público e se refugiar em ilhas artificiais criadas por nós mesmos dificulta o convívio com a diferença, fazendo com que o diálogo venha a definhar-se. O fato é que é mais fácil criticar do que compreender, pois ouvir nos dias de hoje já não cabe no mesmo pacote, já que o palanque das redes está aberto para todos.

Fico por aqui. “Vida Líquida”, de Zygmunt Bauman, é uma leitura obrigatória para aqueles que não se acomodam a narrativas oficiais, para aqueles que gostam de pensar. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 30 julho 2019 | Tags: Sociologia


< Paris la Nuit 1Q84 (3 volumes) >
Vida Líquida
autor: Zymunt Bauman
editora: Zahar
tradutor: Carlos Alberto Medeiros

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