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As portas da percepção e Céu e Inferno

Aldous  Huxley nasceu em 26 de julho de 1894 no condado de Surrey, na Inglaterra. Seu primeiro livro foi publicado em 1916, uma coleção de poemas. O pedigree (vamos chamar assim) de Huxley é poderoso. Aldous Huxley era neto de um cientista de grande relevância no campo evolucionista e patriarca de uma notável família de intelectuais com grande destaque na sociedade britânica.

Em 1937, chegou ao auge da fama com o seu “Admirável Mundo Novo”, onde ele denuncia os aspectos desumanizantes do progresso  científico e material, a conformidade, a alienação, a perda da individualidade e os perigos do controle excessivo por parte do governo e tecnologia. Tudo isso em troca do conforto e a estabilidade em detrimento da liberdade individual e da busca pelo significado da vida.

Huxley deixa  a Europa e se muda para a Califórnia. Essa mudança acontece com a Segunda Guerra Mundial batendo nas portas no Ocidente. Nesse período Aldous Huxley oferece uma alternativa à razão individualista, pela “sabedoria perene”,  a busca por uma verdade universal que transcende as diferenças culturais e religiosas. E para isso ele examina as grandes tradições espirituais, como o hinduísmo, o budismo, o taoísmo, o cristianismo e o islamismo, argumentando que, apesar das diferenças, todas compartilham um núcleo de verdades espirituais comum.

 Aldous Huxley coincidentemente morreu no mesmo dia em John Kennedy (presidente dos EUA) foi assassinado.

Alguns livros de Aldous Huxley encontram-se resenhados aqui no site: “O Admirável Mundo Novo”, “Filosofia Perene”. E agora “As Portas da Percepção e Céu e Inferno”.

Vamos ao livro?  A ideia de “As portas da percepção” nasceu do poema “O casamento do Céu e do Inferno”. De William Blake. No poema, existe uma reflexão que diz: “Se as portas da percepção estivessem abertas, tudo parecerá ao homem como é infinito.”

A mescalina é uma substância derivada de um cacto comum na região semiárida do México e dos estados americanos fronteiriços, o peiote. Muito usada pelos indígenas em rituais xamânicos, tem um sentido semelhante à ayahuasca, levando os usuários a contemplações. Na metade do século XX era explorada por psiquiatras americanos que administravam-na através de capsulas.

O livro é dividido em duas partes. A primeira chama-se “As Portas da percepção”, onde o autor analisa uma das viagens de Huxley com a mescalina. Ele entrelaça descrições do que viu e sentiu em sua viagem de oito horas cheia de visões e histórias. Huxley tinha um fascínio por William Blake como o principal fator em sua decisão de tomar mescalina:

“a droga haveria de garantir minha admissão, ao mesmo por umas poucas horas, no tipo de mundo descrito por Blake” ( pág. 5)

 A sua descrição começa:

“ Meia hora depois de ingerir a droga, eu comecei a perceber um lento bailado de luzes douradas. Pouco depois surgiram imponentes superfícies rubras que cresciam se avolumavam a partir de brilhantes nódulos de energia a assumir continuamente as mais variadas formas. De outra feita, ao fechar os olhos, se me deparava um complexo de estruturas cinzentas, de dentro das quais brotavam, incessantemente, pálidas esferas azuladas que se iam materializando e, à medida que o faziam, deslizavam silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo que se iam materializando e, a medida que o faziam, deslizavam silenciosamente para cima e fugiam de cena. Mas em tempo algum aparecem faces ou formas de homens e animais. Nada de paisagens e de espaços abissais, mágico crescimento e metamorfose de edificações, nada que lembrasse, por remoto que fosse, um drama ou uma parábola. O outro mundo ao qual a mescalina me conduzia não era o mundo das visões; ele existia naquilo que eu podia ver com os meus olhos abertos. A grande transformação se dava no reino dos fatos objetivos. O que tinha acontecido a meu universo subjetivo era coisa que relativamente pouco importava” ( pág. 6)

 

O segundo ensaio chama-se o “Céu e Inferno”, onde Huxley discute parte da simbologia religiosa e visões sobrenaturais experimentadas com mescalina, e a privação alimentar. Ali ele observa alguns lugares interiores onde transitou. E conclui que o excesso de distração da sociedade moderna serve para diminuir o poder da arte que, de outra forma, seria mais facilmente capaz de induzir visões e insights.

O livro  explora as possibilidades infinitas escondidas em nossa percepção. E o livro nos faz um convite a refletir que as nossas percepções estão enraizadas numa realidade limitada e condicionada. Huxley nos revela que a nossa percepção do universo sofre de uma limitação que nos impede de perceber o universo em sua abrangência, em sua totalidade.

 No ano de 1886, o farmacologista alemão Ludwig Lewin publicou o primeiro estudo sistemático do cacto, que mais tarde receberia um outro nome: Anhalonium Iewinu. Esse cacto era conhecido pelos índios do México e do Sudoeste dos EUA. Os índios comiam uma raiz que chamavam de peiote e que era venerada como a um deus. Os psicologistas, Jaensc, Havelock Ellis e Weir Mitchel,  entenderam  o motivo de tal veneração quando começaram a fazer experiência com a mescalina. E eles entenderam que, administrada em doses adequadas, ela modifica mais profundamente a qualidade da percepção. Mais do que qualquer outra droga. é menos tóxica que as demais.

Pesquisas sobre a mescalina foram realizadas. E os químicos não se limitaram a isolar o alcaloide. Com isso, não ficaram à mercê de coletas de um cacto do deserto. E muitos desses cientistas fizeram uso da mescalina para compreender os processos mentais de si e algumas vezes de seus pacientes. O número de provas foi reduzido. No entanto, alguns dos psicologistas observavam e registraram alguns dos mais impressionantes efeitos da mescalina. Os neurologistas e fisiologistas chegaram a algumas conclusões a respeito do mecanismo de sua ação no sistema nervoso central.

Através de suas próprias lentes, Huxley experimentou a mescalina. E ele revela a extraordinária capacidade das substâncias alucinógenas de dissolver as fronteiras da nossa realidade limitada, levando-nos a questionar a verdadeira natureza da existência. Suas observações nos transportam para um reino sobrenatural saturado de insights profundos. Impactando profundamente a nossa percepção, nos levando a sair do mundo cotidiano e a entrar em uma tapeçaria de cores intensificadas por sensações. A mescalina aviva consideravelmente a percepção de todas as cores.

 “Tal como ocorre com os consumidores de mescalina, muitos místicos percebem cores de uma intensidade preternatural, não só em seu mundo interior como também das coisas objetivas que os rodeiam. Fato idêntico ocorre com os indivíduos suscetíveis a ou que sofrem de psicoses. Há certos médiuns para as quais as revelações se manifestam, por breves períodos, nos indivíduos que ingerem a mescalina, são uma experiência diária, de todas as horas, por longos espaços de tempo.” ( pág. 13)

Aldous Huxley relata o impacto que essas substâncias exercem na sua percepção, transmutando o mundo cotidiano em sua tapeçaria inspiradora de cores e padrões e sensações intensificadas. Sob a influência da mescalina, ele descreve como objetos comuns, por exemplo, uma cadeira ou uma flor, adquirem um significado elevado e ficam imbuídos de uma sensação de profunda beleza. As fronteiras normais que separam esses objetos uns dos outros, bem como do observador, parecem dissolver-se.

 

“Uma rosa é uma rosa, e nada mais que uma rosa; mas esses quatro pés de cadeira, além de pés de cadeira eram São Miguel e todos os anjos. Quatro ou cinco horas após o início da experiência, quando começamos a cessar os efeitos da deficiência de açúcar no meu cérebro, levaram-me para um pequeno passeio pela cidade, no qual estava incluída uma visita, ao cair da tarde, ao que era modestamente, entre brinquedos e solicitações e revistas de história em quadrinhos, havia - por estranho que pudesse parecer – toda uma prateleira de livros de arte. Apanhei um Van Gogh, e o quadro que surgiu quando o livro se abriu era a Cadeira – aquele assombroso retrato de uma realidade metafísica que o pintor louco viu, como uma espécie de reverente  terror, e buscou reproduzir em sua tela. Mas essa é uma tela onde até o poder do gênio revelou-se totalmente impotente. Estava claro que a cadeira vista por Van Gogh era, em essência, a mesma que eu vira. Mas ainda incomparavelmente mais real do que aquela  que a percepção comum deixa entrever, mesmo assim a deste quadro continuava a ser nada mais que um símbolo do fato, embora,  extraordinariamente expressivo.” ( pág. 13; pág. 14)

Huxley nos oferece uma profunda exploração filosófica da condição humana. Ele volta o seu olhar para o místico, o espiritual e o metafísico, dissecando as crenças e experiências humanas que abrangem culturas e milênios. Ele investiga a natureza da arte, da religião e da consciência humana, incitando o  leitor a questionar a própria existência.

“Sim, um Vermmer. Pois esse misterioso artista foi triplamente aquinhoado – com a visão que identifica o Dharma-Corpóreo com a sebe ao fundo do jardim; com o talento para reproduzir, com a máxima fidelidade, essa visão, dentro das limitações impostas pela capacidade humana; com a prudência para se ater, em suas pinturas, aos aspectos da realidade mais suscetíveis de serem reproduzidos. Pois embora Vermmer representasse seres humanos, sempre foi um pintor de natureza morta... Veermer jamais pediu a suas modelos que buscassem parecer-se com maçãs. Ao contrário, insistia em que fossem o mais femininas possível, mas sempre se abstendo de se comportarem com infantilidade. Poderiam sentar-se ou ficar de pé, mas não deveriam apresentar-se com risos zombeteiros ou com arrogância, jamais deveriam rezar ou suspirar por amores ausentes, tagarelar, olhar com inveja os filhos de outras mulheres, namorar, amar, odiar ou trabalhar. Se fizessem quaisquer dessas coisas iriam, indubitavelmente, mostrar-se mais elas mesmas, mas deixariam, por essa mesma razão, de apresentar sua sublime e essencial Despersonalização.” ( pág. 20)

 Ele nos oferece algumas conclusões: a primeira é que a nossa percepção não é objetiva; é moldado por nossos filtros, crenças e condicionamentos pessoais, levando a experiências limitadas e tendenciosas da realidade. A segunda é que as substâncias psicodélicas têm o potencial de remover temporariamente alguns filtros que nos impedem de perceber as dimensões da realidade e expandir a nossa consciência. Ao estudar os estados alterados de consciência, podemos obter insights profundos sobre a natureza da existência e a interconexão de todas as coisas.

A função do cérebro e do sistema nervoso é fundamentalmente eliminatória. É proteger-nos impedindo que sejamos esmagados e confinados  por essa massa de conhecimentos, na sua maioria inútil e sem importância, eliminando coisas. Nos deixando passar apenas aquelas poucas sensações selecionadas que serão usadas na prática.

Um outro ponto abordado no livro é que Huxley observa que as sociedades ocidentais têm uma visão linear do tempo, os eventos são vistos como uma progressão do passado para o presente e para o futuro. Huxley contrasta isto com as visões de certas culturas indígenas, onde o tempo é visto como cíclico e interligado, ou seja, como algo fluido e infinito., Huxley enfatiza essa diferença de percepção como o nosso condicionamento não apenas à nossa compreensão do mundo físico, mas também de algo tão fundamental como o tempo.

Ele acredita que os estados alterados da consciência nos permitem nos libertar das limitações de nossa percepção comum e chegar a uma maior compreensão da realidade. Os estados alterados da consciência nos permitem desfrutar de um mundo de uma forma diferente e mais profunda.

Quando Huxley investiga o domínio das experiências religiosas e místicas, ele sugere que os estados alterados da consciência podem fornecer insights sobre a natureza do divino e nosso lugar na ordem cósmica. Através de várias tradições religiosas e filosofias orientais, ele discute como os indivíduos ao longo da história usaram vários métodos, como meditação, jejum ou substâncias psicodélicas, para transcender a sua consciência espiritual profunda.

 “ A experiência com a mescalina é o que os teólogos católicos chamam de uma “graça gratuita”, não necessariamente para a salvação, mas potencialmente valiosa e que se realizada, será prazerosamente aceita. Ver-se livre da rotina e da percepção ordinária, ser-lhe permitido contemplar, por umas poucas horas em que a noção de tempo se esvai, os mundos exterior e interior, não como eles mostram ao animal dominado pela ideia  de sobrevivência ou ao ser humano obcecado por termos e ideias, mas tais como são percebidos pela Onisciência – direta e incondicionalmente – eis uma experiência de inestimável valor para qualquer indivíduo, especialmente para o intelectual, pois este é , por definição, especialmente para o intelectual, pois este é, por definição, o homem para quem a frase de Goethe “A palavra é essencialmente proveitosa”. Ele é o homem para quem “o que percebemos pela visão nos é estranho e, pois, não nos deve impressionar profundamente” Não obstante, embora fosse ele mesmo um intelectual e um dos supremos mestres da linguagem, Goethe nem sempre concordou com a sua conceituação da palavra. “ Falamos demais” – escreveu ele em sua madureza. “ Dever[íamos falar menos e desenhar mais. Eu, pessoalmente, gostaria de renunciar por completo a fala e, imitando a natureza organizada, comunicar por esboços tudo o que tivesse a dizer. Aquela figueira, esta pequena serpente, o casulo aguardando serenamente o futuro no umbral de minha janela, tudo isso são importantes signos. Quem fosse capaz de decifrar corretamente seu significado poderia por inteiramente de lado tanto a palavra escrita quanto a falada. Quanto mais penso nisso, mais encontro futilidade, mediocridade e até mesmo ( sou levado a dizê-lo) fatuidade da palavra, contrastando com  isso, como nos assombram a gravidade e o silêncio da natureza quando ela nos deparou face a face, concentrados diante de uma colina estéril ou da desolação que a erosão desgastou. (pág. 42; pág. 43)

Fico por aqui. O livro “As Portas da Percepção. O Céu e o Inferno”, de Aldous Huxley, nos oferece uma exploração instigante da natureza subjetiva da percepção da realidade, a qual é influenciada pelos filtros, crenças e condicionamentos pessoais. Huxley nos convida a questionar e a transcender essas limitações, oferecendo a possibilidade  de entendermos e sentirmos a nossa percepção de uma forma mais abrangente. A nossa percepção subjetiva nos desafia a expandir a nossa compreensão da realidade, levando-nos a uma experiência mais rica e significativa do que nos rodeia. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 23 janeiro 2024 | Tags: Filosofia


< Mito e Significado Furiosamente calma >
As portas da percepção e Céu e Inferno
autor: Aldous Huxley
editora: Editora Globo
tradutor: Oswaldo de Araújo e Souza

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