Furiosamente calma
Quando o livro “Furiosamente Calma”, de Denise Crispun, chegou às minhas mãos, eu comecei a ler no mesmo instante. E logo nos primeiros contos, identifiquei quatro elementos fundamentais na escrita da autora: concisão, sensibilidade, ritmo e elegância. Denise escreve como quem brinca, mas é precisa na escolha das palavras, levando o leitor a degustar prazerosamente cada história. A minha leitura foi puramente degustativa. Em menos de três dias, o livro estava lido. E foi uma ótima companhia.
Os contos são curtos, fragmentos de realidade que a sensibilidade de Denise captura com humor e inteligência. “Super bonder”, um dos contos, transita entre o real e abstrato de forma deliciosa. Em “A Falange”, vemos um estado de transe onde a narradora termina dizendo:
“Escrever? É só sentar diante da máquina e sangrar como um carvão que brilha.” - Achei isso sensacional.
As epígrafes, as apresentadas antes de cada conto, anunciam ao leitor a natureza do futuro “encontro”.
“Se a ideia não é absurda, então não há esperança para ela.” (A.A.) pág. 76) Achei essa epígrafe a cara da proposta das histórias de Denise Crispun.
No total, são 49 contos que variam em estrutura, narrativa e tamanho. Uns mais curtos, outros mais longos, nos quais a autora conduz com inteligência e precisão o cotidiano, e potencializa sentidos, como no conto “A Bala de Prata”. Um conto curto, forte e certeiro, que aqui transcrevo:
“Não queria ter tido esse filho, mas não teve coragem de tirar. A sociedade. Eram ricos, perderam tudo. Sobrou apenas uma bala de prata. Sobraram os dois, mãe e filho. A propriedade era a terra de ninguém e foi comida pelas beiradas. Acordou com o barulho. De novo a arruaça. A invasão, o deboche, os cabelos brancos. Atirou sem ver. Era o filho voltando. Acertou o osso. O oco no coração. Morreram juntos.” (pág. 64)
Esse conto é uma síntese implacável. Mãe e filho na iminência do fim. E, no entanto, tudo foi dito e descrito em poucas linhas. Nada mais foi necessário para que sentíssemos o “tiro certeiro” desse drama humano, com passado, presente e futuro.
“Se eu fosse Diane Keaton”, um dos contos que destaco, é uma narrativa que se desprende das páginas e flutua como uma bolha de sabão. Mas não se engane com a leveza da proposta, pois a realidade insólita vence o previsível. A protagonista e o marido haviam escrito um roteiro, em dupla, uma “fábula urbana”. Mas nada é simples. E conhecemos a dinâmica desse casal quando ela narra:
“Na vida real fui casada com um ogro, que fez de mim – de comum acordo, é bom deixar claro – a pior esposa do mundo, pois vocação eu já tinha. Nós dois, de comum acordo, conseguimos envenenar nosso cotidiano com doses maciças de ironia, álcool e nicotina, que ajudou a destruir uma parte dos nossos pulmões”.
E eu pergunto: quem não conheceu ou conhece uma dupla assim?
No conto “O anel do Papa”, outro que destaco, há uma deliciosa mistura de fatos e fantasias imaginadas pela autora que se entrelaçam numa trama de tal forma que, por vezes, me peguei acreditando e rindo das situações criadas.
Vamos a um pouco do conto:
Em julho de 1980, o Papa decide visitar o morro de Vidigal. A partir desse momento o morro sofre uma verdadeira revolução para recebê-lo. A prefeitura começa a construir novas escadarias, com corrimão, para que o Sumo Pontífice pudesse alcançar todos os lares. A associação dos moradores mandou uma cartilha com conselhos para ver o Papa. Um desses conselhos era: “Faça com que o Papa se sinta em casa”. No meio da visita, o Papa resolveu entrar na casa de uma moradora. E essa moradora chamava-se Dona Elvira. Os dois conversaram. Ninguém sabe qual foi a conversa. No final, o Papa doou um anel para que fosse vendido e o dinheiro revertido aos moradores.
Dona Elvira era amiga da empregada de Vivian Lee, uma jornalista que cobria o evento, e foi aí que ela conseguiu um furo de reportagem para sua patroa, e esta entrevista alavancou a carreira da jornalista. Bem, quanto ao anel, virou alvo de disputas entre a associação e as autoridades. E sabemos que ele foi roubado. No entanto, algo aconteceu, algo muito estranho. Dona Elvira começa a ter visões. Sim, visões. Em uma dessas visões, ela viu o Papa sofrendo uma tentativa de assassinato e tenta falar com o Vaticano. Situações como essa surpreendem, e outras, tão inusitadas quanto, são criadas pela autora.
Mas vou ficar por aqui, antes que eu conte tudo!
“Furiosamente calma”, de Denise Crispun, é um livro para pegar, ler, se divertir com o bom humor das situações criadas pela autora, refletir sobre as pérolas encontradas em cada conto e deixar o livro por perto, à mão. Porque livro bom é sem contraindicação.
Sobre Denise Crispun: é roteirista, trabalhou em diversos programas de variedades para televisão, escritora de teatro infantil e uma mulher atenta aos absurdos do mundo, com uma verve clara para a escrita.
“Furiosamente Calma” é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.