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A ribeira que corre para a nascente

Quando acabei de ler “A ribeira que corre para a nascente”, de Rui Maurício, eu pensei com os meus botões: o “gajo” escreve muito bem!  “Gajo” com sotaque, pois Rui Maurício é de origem angolana, mas se mudou aos sete anos para Portugal.  Segundo o próprio autor, foi nesse momento, ao embarcar para Lisboa no barco chamado “Príncipe Perfeito”,  que ele viu uma imagem que o marcaria – cardumes de peixes voadores em pleno Oceano Atlântico –, lembrança a que ele atribui o seu dom de contar e criar histórias. Os peixes na verdade eram as musas da sua imaginação. Posso dizer com muita tranquilidade e honestidade: Rui foi uma prazerosa descoberta.

Esse livro surgiu de forma inusitada através de minha irmã, que conheceu o autor em uma de suas idas e vindas a Portugal. Quando ela terminou a leitura, não teve dúvida, me emprestou o livro e disse: “Leia! Você vai gostar!”.  Não perdi tempo.

“A ribeira que corre para a nascente” ainda não tem uma editora brasileira. Mas, como tudo pode ser obtido de forma online, tenho quase certeza de que a “Editorial Minerva”, em Portugal, poderá facilitar aquisições da obra.

Os contos de Rui Maurício apresentam uma interessante mistura de elementos: humor fino, narrativa poética e um sarcasmo na medida certa. Uma outra coisa é que as histórias se interagem umas com as outras. E vamos aos contos de que mais gostei e que me cativaram, sem “spoiler”.

A palavra inglesa “spoiler” me faz lembrar um dos contos do livro que ressalto e que se chama “Um Team Building do Fracasso”. A expressão inglesa “Team Building” é uma ferramenta de treinamento empresarial que se destina a fortalecer as relações interpessoais de empregados para realização de tarefas do dia a dia.

O conto nos mostra uma nova forma de divisão do trabalho em uma empresa e as novas palavras e siglas que substituem as da língua portuguesa:  CEO (chefe executivo),  COO (diretor operacional), CFO (diretor financeiro),  CHR (diretor de recursos humanos), Compliance Director (o diretor jurídico) e Sales Director (diretor comercial). A partir das relações tóxicas existentes na empresa, onde todos tentam envenenar uns contra os outros, é chegada a hora de tentar fazer com que o team seja apaziguado. Dois grupos viviam às turras: o chamado grupo da “Liderança”, que vivia puxando o saco do CEO (Diretor Operacional), pelo COO (Diretor Financeiro); e do outro lado, o grupo dos “Contestatários”, composto pelo diretor de produto, pelo diretor comercial e pelo diretor de informática. A turma do “deixa disso” era composta pelo Legal Complience Director. A guerra estava armada. Com todas as siglas. E algo precisava ser feito. Até que chega uma sexta-feira, o dia em que o “team building” seguirá para as montanhas, no norte do país, para disputar um game da empresa. Bem, o resultado dessa reunião é surpreendente. E eu não vou revelar. Nada de spoiler. Mas foi um dos contos de que gostei.

O outro conto que destaco é “A Conferência das Verdades”, em que vemos o resultado de um relacionamento intercultural. De um lado, temos um marroquino (muçulmano), uma verdadeira sumidade internacional das humanidades, gosta de impressionar e tem no poeta Omar Kayyan como seu grande guru. Do outro lado, temos um americano (judeu), detentor de um ego bem calibrado, busca os olhares femininos na plateia e tem na obra de Abraham Joschua Heschel seu mentor. Do outro lado, um professor português, um cristão, que traz sua amante secreta para impressioná-la nesse grande evento. Ele é um disíipulo convicto de Fernando Pessoa.

Desse encontro das três religiões monoteístas, sairá algo que irá surpreender a todos os leitores desse livro. Quer um conselho? Leia. Os personagens são críveis e o conto prende o leitor.

No conto “A Lucidez do Louco”, o narrador diz:

“Por entre caras feias sobressaía um rosto que sorria. Por entre as caras feias via-se um rosto que ainda sabia sorrir. Por entre caras feias havia um sorriso. Com um sorriso, a cara deixa de ser feia. Para o dono daquela cara, os alicerces da vida são o sorriso e para sorrir é necessário ser louco. A doença psíquica trabalha-se. Os loucos sorriem a dizer banalidades. As banalidades dos loucos são mais profundas que as dos não loucos. Os loucos sorriem, somente porque sorrir é melhor. Contudo, chorar também é tão profundo e necessário como sorrir. Também se chora por banalidades. Os loucos também choram. Para o dono daquela cara, a plenitude é sorrir e chorar. A plenitude é atingir e aceitar a loucura. Os loucos são deuses. Para o dono daquela cara, és um ser livre para viveres e para te matares, não para nasceres.” (pág. 53)

Essa é a história de um mendigo que escrevia poesias em pequenos pedaços de papel e entregava às pessoas na rua. Trocava as poesias por uns trocados. Concatenava pensamentos filosóficos que poucos entendiam. Para ele a vida deveria ser diversão, pois adorava ver a rua cheia. O louco falava de um tal Al-Mu’tamid. Quem seria esse? Vale a pena ler esse conto. Um dos que mais gostei. Sim, gostei de vários.

“Os Moradores do Número 27” é a história do lar de um casal, Celinha e Jaime. Essa casa havia sido construída quando eles ainda eram muito jovens. Com a cidade se remodelando, a pressão para que vendessem a casa começava. Naquele espaço, havia a assinatura dos dois em tudo. Tinham filhos, que foram criados num mix de criatividade e liberdade. E mesmo depois de adultos, voltavam à casa. O número 27 era um entra e sai sem fim. A vizinhança (leia-se a banda podre da vizinhança) não deixava de fazer comentários maldosos. Como a casa era enorme, resolveram fazer um espaço comunitário, liderado por Celinha e Jaime. Esse era o conceito. Aos poucos, os moradores do número 27 foram chegando e uma comunidade começou a ser vivida. Quer saber o que aconteceu? Leia esse conto delicioso, humano e poético.

O conto “A Lua de mel do Louva a Deus” é uma história curiosa. É a história de um homem temente a Deus. Quando completou dezesseis anos, conheceu uma menina que tinha dez anos. Filha de pais pobres. No entanto, à medida que o tempo foi passando, a relação entre eles foi ganhando novos tons. Quando a menina completou dezesseis anos, ele a pediu em namoro. O tempo foi passando e a ideia de ela ser sua esposa foi ganhando traços de certeza, de que seria esse o destino.

No momento do sexo, a menina surpreendeu o Louva Deus, ela era incrivelmente quente. Louva Deus carregava culpas a Deus pelo fato de ele estar fazendo sexo antes do casamento. Depois do sexo, a reza acontecia com todo fervor. Quando a menina completou dezoito anos, a relação entre os dois assume um novo patamar sexual. Começa a ficar mais violenta. Para o Louva Deus, era ele que ditava as cartas do baralho afetivo. No entanto, algo acontece. E eu não vou estragar esse prazer. Quer um conselho? Leia o livro.

Em “O Homem Deprimido”, conhecemos um homem com uma vida sem grandes emoções.  Ele trabalhava em um escritório de advocacia, um tipo sistemático. Tudo tinha que estar em seu devido lugar. No trabalho, era um homem seco, mas eficiente. Não sorria. A sobriedade sempre foi uma meta a ser alcançada à medida que os anos iam se passando. Os processos que estão na sua mesa são deprimentes. Sentia-se um funcionário da embaixada da tristeza. Até que algo aconteceu. Algo que pode acontecer na vida de qualquer um, mas é necessário que se esteja aberto a mudanças. Quer saber o que aconteceu, que irá mudar o rumo desse sujeito? Leia o livro.

“A ribeira que corre para a nascente” é o conto que dá nome ao livro. É a história de um homem perdido em sua vida pessoal, que se encontra em uma encruzilhada. As palavras faltavam, elas não o acompanhavam e havia uma dificuldade de comunicação consigo próprio. O relacionamento com sua mulher passava por momentos de, como o narrador diz, “um pôr do sol, morno”. A relação com sua filha era problemática. E, para piorar, a menina cursou filosofia, em outras palavras, eram muitas questões que ela levantava. Existencialmente falando, o inferno pertencia não a si, mas ao outro. Pensava em largar tudo e partir, como se diz no meio musical, para uma “carreira solo”.  Ao caminhar pela natureza, sentia as coisas fluírem, ou seja, uma sensação de liberdade o invadia. Caminhar era o elixir da paz que tanto procurava. E assim percorreu vários quilômetros até chegar a uma ribeira simplesmente deslumbrante. Montou uma tenda e por ali ficou naquele local. Quando acordou, notou algo estranho. Mas muito estranho mesmo. Simplesmente a ribeira corria em direção contrária. Ao invés de descer indo em direção ao mar, ela subia em direção à nascente. O que estaria acontecendo? Pegou a bússola e o mapa que confirmava exatamente a posição dele. A água mostrava seu curso ascendente. O que estaria acontecendo?

Deu vontade de ler “A ribeira que corre para a nascente”, de Rui Maurício? Uma coisa eu posso dizer: esses 14 contos reunidos merecem um lugar de destaque na sua estante.


Data: 04 setembro 2023 | Tags: Contos


< Hécuba A Paz >
A ribeira que corre para a nascente
autor: Rui Maurício
editora: Editorial Minerva

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