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Amor e psiquê

Amor e Psiquê é uma história  baseada na  “Metamorfoses” (ou também conhecida como “O Asno de Ouro”) escrita no século II d.C. por Lucio Apuleio. A história trata sobre a superação de obstáculos ao amor de Psiquê e Cupido (ou Amor) e sua união final em casamento sagrado. Eros e Psiquê aparecem na arte grega já no século IV a.c. Existem elementos neoplatônicos e alguns mistérios que acomodam inúmeras interpretações.

Mas antes de entrarmos na história falemos um pouco de Lucio Apuleio. Ele nasceu em Mdauruch  (atual Argélia) por volta 124 d.C. A posição social da família permitiu-lhe uma excelente educação, primeiro em Cartago (agora na Tunísia) e depois em Atenas, na Grécia. Começou em Roma sua carreira forense, e rapidamente alcançou a fama. A eloquência fácil, a enorme produção literária, além de uma certa aura de feiticeiro fizeram-no conhecido nas muitas cidades africanas que percorreu. Numa delas, Oca (a atual Trípoli) conheceu uma rica viúva, de nome Pudentila, bem mais velha do que ele, com quem se casou. Os parentes de Pudentila tentaram impedir esse casamento, acusando-o de práticas de bruxaria. Apuleio se defendeu num discurso contundente perante o procônsul Claudio Máximo. Deve ter logrado absolvição, pois algum tempo depois o encontramos de volta de Cartago como “sacerdote da província”, tão reverenciado pelos seus concidadãos que estes, ainda em vida, lhe ergueram uma estátua.

“Metamorfoses” (também chamada de “O Asno de Ouro”) é uma de suas histórias famosas, uma história contada em primeira pessoa, do jovem Lúcio. Esta história acontece numa viagem de negócios à Tessália, província conhecida por suas tradições de feitiçaria e tradições ligadas à ciência da magia, onde submete-se a um tratamento que deveria transformá-lo em coruja, símbolo da sabedoria, ave preferida de Palas. No entanto, algo aconteceu que ele acabou se transformando em outra coisa, uma metamorfose acontece. Ele transforma-se em asno, o mais desprezado dos animais. O jovem Lucio, acidentalmente transformado em burro é, neste momento de sua aventura picaresca, propriedade de um bando de ladrões. Eles trazem para o covil uma jovem nobre sequestrada para pedir resgate. Assustada e em pânico, ela é consolada por uma governanta que ajudava os ladrões, a qual lhe conta a história de Amor & Psiquê para distraí-la de seus problemas. “Amor e Psiquê” é uma história originária de “Metamorfoses”.

Aqui está a história de  Amor & Psiquê. Vamos a ela?

O mito de Amor e Psiquê divide-se em partes. Psiquê é filha de um rei e venerada como deusa graças à sua beleza sobrenatural.  A pobreza da linguagem não conseguia definir essa beleza. Os homens renunciaram o culto à deusa Vênus e dedicam-se à Psiquê. A fama de sua beleza era tão grande que os estrangeiros dos países vizinhos vinham em multidões para para apreciar aquele monumento à beleza.

Essa mudança de atitude por parte dos humanos em relação ao culto a uma mortal de uma beleza sem igual, fez com que Vênus pedisse a Cupido que vingasse e aniquilasse Psiquê.

“Imploro-te filho meu, pelas provas um materno amor, pelas doces feridas que abrem tuas flechas e pelas doces feridas que abrem tuas flechas e pelas doces queimaduras que tua tocha produz: vinga tua mãe, vinga-a plenamente; por meu respeito, vinga-te dessa beleza obstinada. É este único pedido que te faço; empenha-te em satisfazê-lo antes de qualquer outra coisa. Cumpre que esta virgem se apaixone violentamente pelo último dos homens por um infeliz privado de honra e bens, sem eira nem beira, tão miserável que não encontre semelhante pelo mundo” (pág. 26)

 Cupido se preparou para obedecer aos comandos de sua mãe. Duas fontes existiam no jardim de Vênus, uma de água doce e outra de água amarga. Cupido encheu os dois vasos de âmbar, um de cada fonte, suspendeu-os e correu para o quarto de Psiquê, que encontrou dormindo. Ele derramou algumas gotas da fonte amarga sobre seus lábios, embora a visão dela quase o deixasse com pena; então tocou o lado dela com a ponta de sua flecha. Ao toque, ela acordou e abriu os olhos para Cupido (ele está invisível), o que o assustou tanto que, em sua confusão, ele se feriu com a sua própria flecha. Indiferente ao ferimento, todo o seu pensamento agora era reparar o dano que havia causado, e derramou as gotas balsâmicas de alegria sobre todos os seus cachos sedosos.

Seus pais, com medo de terem involuntariamente incorrido na ira dos deuses, consultaram o oráculo de Apolo e receberam esta resposta:

“Deixa tua filha no alto de um rochedo,

  Com atavios de funéreas bodas

  Não espere genro de mortal estirpe,

  Mas um monstro horrível, fero como serpe,

  Que nos ares librando-se, a todos aflige

   E que com ferro e fogo fere e queimas a todos]

   Que os deuses detestam, e Jove receia,

   Que às estígias ondas negras fazem tremer.” (pág. 28)

A virgem não está destinada a ser noiva de nenhum morta.l Seu futuro marido a espera no topo da montanha. Ele é um monstro igual aos deuses: nem os homens podem resistir. Os pais recebem o impacto dessa previsão e acabam obedecendo à ordem do oráculo e entregam Psiquê às núpcias. Não é morta, mas levada pelo Zéfiro para viver uma vida com um marido invisível chamado Cupido, que a escolheu como esposa.

Psiquê se prepara para uma cerimônia que parecia mais um funeral do que uma pompa nupcial, todos inconformados e lamentando junto com todo o povo. Todos sobem ao monte. Psiquê caminha sozinha ao cume com os olhos cheios de lágrimas. E todos voltam para a casa.

Enquanto Psiquê estava no cume da montanha, ofegante de medo, o gentil Zéfiro levantou-a da terra e carregou-a com um movimento fácil para um vale florido. Aos poucos sua mente foi se recompondo e ela se deitou na margem gramada para dormir. Quando acordou revigorada pelo sono, olhou em volta e viu próximo um agradável bosque de árvores altas imponentes. Ela entrou e no meio descobriu uma fonte, emanando águas límpidas e cristalinas, e, passando rapidamente, um magnífico palácio impressionante. Ela ficou impressionada, se aproximou do palácio e se aventurou a entrar.

Cada objeto que encontrava a enchia de prazer e espanto. Seguindo em frente, ela percebeu que. além da arquitetura. havia cômodos maravilhosos, seguidos de tesouros e foi aí que ela ouve:

“- Por que, ó senhora, te espanta destes tesouros. Tudo aqui é teu. Entra, pois, num cubículo, descansa num leito, ordena um banho a teu bel-prazer. Nós, cuja voz ouve, somos tuias criadas e cumpriremos tuas ordens com diligência. Cuida primeiro de teu corpo, não tardará um régio banquete.” (pág. 32)

Psiquê ouviu a advertências de seus atendentes vocais e, após o repouso, sentou-se onde a mesa começou a ser apresentada com a ajuda de garçons invisíveis servindo iguarias e vinhos, néctares, e uma música de artistas invisíveis; dos quais um cantava, outro tocava uma lira invisível e todos encerravam a harmonia de um refrão completo. Psiquê não via ninguém.

 Seu marido não havia aparecido. No entanto, Cupido havia sucumbido a tudo que havia prometido  a Vênus. Ele estava apaixonado por Psiquê.

Ele a via, mas não aparecia para ela. Psiquê pedia que ele aparecesse para contemplá-lo, mas ele não consentia. Pelo contrário ele pediu que ela não tentasse vê-lo, pois a invisibilidade era o seu prazer.

 Mas no fim ele a aconselhou:

“ Minha gentil Psiquê e amada esposa, a Fortuna cruel ter ameaça de perigo mortal, contra o qual te deves amar de maior prudência. Tuas irmãs, turbadas cm a notícia de tua morte, chegarão dentro em pouco ao rochedo em busca de teus vestígios. Se acaso lhes ouvires as lamentações, não lhes respondas, nem olhes sequer para elas, e te exporás a ti mesmo a extremo risco. ( pág. 34)

Ela obedece ao marido, ela foi levada para o cume da montanha até o vale onde se encontravam suas irmãs, que a abraçaram, e Psiquê retribuiu os abraços. Psiquê as convida para conhecer o palácio onde vivia, junto dela um numeroso séquito de vozes a acolhia.  Ela mostrava às irmãs os seus tesouros. Tal visão causou inveja as irmãs por não possuírem tais riquezas. Inúmeras perguntas foram feitas. Uma delas, “Onde o marido está agora?”, teve como resposta: “Caçando nas montanhas”.

As irmãs não conseguiam segurar a inveja. E não ficaram satisfeitas com a resposta. E começaram a colocar suspeitas sobre o marido da irmã. Afinal, quem é o seu marido irmã?

“ No decorrer da conversação, põem-se a perguntar , com o ar mais inocente, quem é o marido de Psiquê, qual a sua família a sua linhagem. Extremamente ingênua, Psiquê havia se esquecido o que antes lhe contara, e inventou uma nova fábula : o marido era de uma província vizinha, tinha grandes capitais, que empregava em negócios, era um homem de meia idade, cujos cabelos já principiavam a encanecer. Sem muito prolongar a prática , cumulou-as outra vez de ricas dádivas e entregou-as ao vento, seu veículo.” (pág. 44)

E lembraram as previsões do oráculo de que  ela iria se casar com um monstro. Os habitantes falavam que o marido dela era nada mais nada menos que um animal feroz.

“Cala-te decidir se queres ouvir suas irmãs ansiosas de tua salvação e viver com elas em segurança, evitando a morte, ou se preferes ser enterrada nas vísceras desse animal feroz. Se, porém, a solidão cheia de vozes destes lugares, a perigosa e repulsiva concubinagem de um amor clandestino e os abraços de uma serpente venenosa te agradarem mais, nós outras pelo menos teremos cumprido o nosso dever de irmã afetuosas” (pág. 46)

 Psiquê espanta-se com essas palavras horríveis e, fora de si, esquece todas as adversidades do esposo, perde toda a lembrança de suas promessas e lança-se em um abismo de calamidades.

Psiquê resistiu até onde pôde essas persuasões vindas de suas irmãs, mas alguns estragos foram deixados por elas em sua mente e, quando suas irmãs partiram, suas palavras e sua curiosidade foram fortes demais para que ela resistisse.

“ Psiquê ficou sozinha, se está realmente só aquele a quem as Fúrias atormentam; a tempestade que a agita assemelha-se à tormenta do mar. Sua decisão já foi tomada, seu espírito nela se obstina, suas mãos já prepararam o crime; súbito, vacila, os sentimentos chocam-lhe na alguma atribulada. Apressa-se, hesita, resolve-se, e vacila outra vez; desconfia, depois enraivece; em uma palavra, no mesmo corpo odeia à serpente e ama ao esposo. Mas como tarde já cede lugar à noitinha, com grande precipitação conclui os aprestos do hediondo crime.” ( pág49)

 Quando ela adormeceu pela primeira vez, ela levantou-se silenciosamente e, descobrindo a lâmpada, viu não um monstro hediondo, mas o mais belo e encantador dos deuses, com seus cachos dourados vagando sobre o pescoço, com duas asas nas costas, seus ombros, mais brancos que a neve e com pernas brilhantes como as tenras flores de primavera.

“ Já chegara a noite e, com ela, o marido. Em seguida às primeiras escaramuças de Vênus, este mergulhou num sono profundo. Então Psiquê quase doente do corpo e da alma, mas incitada pela crueldade do destino, reúne suas forças, busca a lâmpada e agarra o punhal; a audácia mudara-lhe o sexo. Mal, porém, aproximou do leito, a luz da lâmpazinha este lhe revelou, este lhe revelou o seu segredo: viu a mais gentil,  de todas as feras, o próprio Cupido, esse deus formoso, em linda postura; o espetáculo avivava a própria luz da lâmpada e realçava o brilho do punhal sacrílego”. ( pág48; pág. 50)

 Psiquê entra em parafuso, empalidece, treme e cai de joelhos, procura esconder o ferro, mas em seu próprio coração. Apesar de seu desespero, a jovem não desprende os olhos do rosto divino, cuja beleza acaba restituindo o ânimo. Mas Cupido foi implacável:

“- Vê, ingênua Psiquê: esquecido das ordens da minha mãe Vênus, que me determinara inspirar-te paixão pelo misérrimo dos mortais e ligar-te por um matrimônio indigno, preferir voar a ti, oferecendo-te o meu amor. Procedi levianamente, bem e sei: famoso flecheiro, feri-me a mim próprio, e tornei-te minha mulher. Em recompensa, tu me tomaste por uma fera, quiseste cortar esta cabeça, por ter olhos que te amam. Quantas vezes não te adverti contra este perigo, quantas vezes não te censurei delicadamente! Tuas eminentes conselheiras, castigá-las-eis sem detença por suas perniciosas lições, quanto a ti, punir-te-ei apenas fugindo de ti.” (pág. 52)

Quando recuperou um pouco da compostura, olhou ao redor, mas o palácio e os jardins haviam desaparecido, e ela se viu em campo aberto, não muito longe da cidade onde moravam suas irmãs. Ela vai até a cidade e conta os seus infortúnios. As irmãs fingem tristeza, mas sentem um imenso prazer interiormente.

 Enquanto isso, Cupido está doente da queimadura da lamparina, no leito materno gemendo de dores. Uma gaivota contou a Vênus o ocorrido. Vênus deduziu que seus filhos estavam vivendo a libertinagem na montanha. Mas a gaivota ainda foi mais longe quando disse a Vênus:

“Não sei bem, minha senhora. Parece-me que está ardentemente apaixonado por uma menina de nome Psiquê, se bem me lembro.” (pág. 56)

 Vênus não acreditou no que havia escutado, justamente Psiquê rival de sua beleza. E se sentiu traída, pois afinal foi ela que indicou Psiquê. Ela vai direto para o palácio onde encontra o filho enfermo. E passa uma descompostura nele.

“- Belo procedimento! Digno de tua família e de tua reputação, não é? Não contente de pisares a ordem de tua mãe e rainha, em vez de desonrar minha inimiga com amores sórdidos, vais ao ponto de ligá-la a ti por abraços licenciosos e prematuros, inconvenientes à tua idade. Acaso me queres impor a minha rival como nora? Presumes, porventura, devasso, nojento, sedutor insuportável, que só tu, podes ter prole, e que em vista da minha idade eu não posso  mais conceber? Pois fica sabendo: darei à luz um filho muito melhor do que tu, ou, até, para que mais humilhado te sintas, adotarei um dos meus escravos e dar-lhe-ei tuas asas, teu archote, tuas setas e todo esse equipamento que te dera para outro uso; nada de tudo isso vem de teu pai, tudo é meu. A tua educação foi estragada desde a meninice! Tens as mãos violentas: quantas vezes não bateste em pessoas mais idosas, a quem deverias respeitar! Até a tua mãe, sim até a mim, matricida, despoja-me todos os dias, e me bates frequentemente, e me despreza como seu fora viúva! Nem sequer seu padrasto respeitas, a esse corajoso e grande guerreiro. Afinal, como havias de respeitá-lo, se és tu que lhe arranjas amantes, para minha maior aflição? Mas deixa estar, que te arrependerás dessa brincadeira! Acharás um gosto amargo e azedo nesse teu casamento!” ( pág. 57; pág. 58)

 Tudo havia desabado, Psiquê vagava dia e noite, sem comida nem repouso, em busca do marido. Lançando seus olhos  para uma montanha elevada que tinha em seu cume um templo magnífico, ela começa a suplicar. Ela encontra com a deusa Ceres. Ela não pode ajudá-la. E diz que Vênus está atrás dela.

“Tuas preces e tuas lágrimas me comovem – respondeu Ceres – e gostaria de ajudar-te; mas não posso indispor-me com uma parenta a quem estou ligada por amizade antiga, e que além disso é mulher excelente”. ( pág. 61)

Ceres se retira, mas dá um conselho: procure Vênus, é a sua única chance. Ela se dirige ao palácio de Vênus esforçando-se para se concentrar da melhor forma possível e tentar apaziguar a deusa irada.

Para piorar a situação de Psiquê, Vênus pede ao seu irmão Mercúrio que procure Psiquê e coloca um anúncio escrito: “Procura-se a filha do rei que fugiu”.  Tal anúncio de uma recompensa feito por Mercúrio despertou a ambição de todos os mortais.

 Psiquê  foi capturada. Vênus com semblante irado. Agarrou-a pelos cabelos e prometeu que o inferno seria algo paradisíaco em face do que ela iria enfrentar. Psiquê não demonstrou nenhuma reação. Psiquê introduziu as suas criadas e pediu que elas a torturassem. Psiquê foi esculachada. A tortura não teve piedade de sua beleza. E elas a trazem para Vênus se deliciar da desgraça da rival. Mais uma vez ela tortura Psiquê na frente dela. E para mais tarde ainda ouvir de estar desfigurada:

Acho-te uma criada tão feia que, a meu ver pudeste obter amantes senão pelo teu zelo, pois quero ver o quanto prestas” ( pág. 67; pág. 68)

Psiquê fica impassível. Sentada sem mover um dedo.  Cupido está trancado em um quarto no fundo do palácio. Psiquê não consegue trabalhar, suas tarefas são impossíveis de execução. Mas o inusitado acontece. Uma pequena formiga, habitante dos campos, que bem podia avaliar a maldade da sogra, apieda-se de Psiquê. Corre para todos os lados, convoca toda a multidão das formigas vizinhas, e incita-as com essas palavras:

“- Tende piedade, ágeis filhas da Terra nossa mãe comum: vinde socorrer a esposa de Amor, essa linda jovem que está em situação difícil.”( pág. 68)

Psiquê estava atolada entre grãos. E as formigas começaram a retirar grão por grão. E quando tudo terminou, as formigas desapareceram.

 Vênus, ao se aproximar do crepúsculo, retornou de um banquete dos deuses perfumada de bálsamos e coroada de rosas, ligeiramente embriagada. Levou um susto quando viu que o trabalho que cabia a Psiquê estava terminado. Ela exclamou:

“Esse trabalho não foi feito pelas tuas mãos, traste ruim, é obra daquele a quem soubeste agradar, para a infelicidade tua e dele.”( pág69)

Vênus suspeitava de Cupido. Ao ver a cena, ela atirou um pedaço de pão preto e foi deitar-se. No dia seguinte, Vênus ordenou que Psiquê fosse chamada e disse:

“Vês aquele bosque que se estende ao longo daquele rio Tormentoso, cheio de sorvedouros, apesar de ter bem perto a sua nascente? Ali vagueia um grupo de nédias ovelhas, de pele de ouro não guardadas por ninguém. Custe o que custar, deves-me trazer imediatamente um floco de sua preciosa lã.” ( pág. 69)

Psiquê obedientemente foi até a beira do rio, preparada para fazer o possível para executar a ordem. Mas foi o deus do rio que disse:

“- Ó Psiquê, atormentada de tantas desgraças não poluas minhas águas sagradas com a tua morte misérrima, nem te aproximes das temíveis ovelhas de outra margem. Enquanto o calor do Sol as aquece, são possuídas de uma raiva feroz, e com seus agudos  chifres, com sua fronte rija e até com suas mordeduras venenosas investem perigosamente contra os mortais. Quando, porém, depois do meio dia, o calor diminuir e o sopro fresco do rio as houver acalmado, poderás esconder-te sob este alto plátano que se alimenta das mesmas águas que me nutrem. Quando, passada a sua fúria, as ovelhas forem descansar, terás de sacudir as árvores do bosque vizinho, pois haverá por toda parte flocos de lá douradas presos nos ramos.” (pag. 70)

O deus do rio deu instruções a Psiquê sobre como realizar sua tarefa e, seguindo suas instruções, ela logo retornou a Vênus com os braços cheios de flocos de lã dourada. Mas isso não adiantou em nada. Vênus imediatamente deu uma outra missão. E a missão era ir até uma montanha íngreme, de onde nascem as ondas de uma fonte escura, para entrar em um vale próximo e regar os pântanos. Um vaso talhado em cristal foi dado a Psiquê para trazer a água gélida.

Com estas palavras, acrescidas de ameaças veladas, dirige-se ao cume da montanha, na esperança de pelo menos ali encontrar o fim da sua infeliz existência. O rochedo era de uma altura terrível. As águas dotadas de vozes gritavam:

- “Vai-te embora”! – “Que vens fazer aqui?” – “Olha bem!” – “Atenção!” – “Foge” – “ Vais morrer!” ( pág. 71)

De repente, quem aparece com suas asas? Ele mesmo, o  Cupido. Com o auxílio de Júpiter, ele resolveu trazer à jovem oportuno auxílio. Com as asas de uma águia que passa veloz por entre os ferozes dentes dos dragões. E alegremente recebeu Psiquê. Vênus, vendo aquilo tudo,  diz:

“ – Vejo agora que é uma verdadeira feiticeira, e das mais poderosas, pois conseguiste cumprir tamanhas exigências com tanta presteza. Mas tenho ainda um servicinho para te pedir, pupila dos meus olhos. Tome esta caixinha e vai direito ao Inferno, à casa lúgubre de Orco. Ali  apresentá-la-ás a Prosérpina com as seguintes palavras: “ Vênus te pede que lhe mandes um pouquinho de tua beleza, pelo menos o que baste para um dia, pois a sua beleza, pelo menos o que baste para um dia, pois a sua própria beleza ela estragou e consumiu todinha enquanto cuidava do filho doente”. Sobretudo, não percas tempo na viagem, que preciso de coisas ainda hoje, quero usá-la para ir ao teatro dos deuses”. ( pág. 73)

Psiquê compreendeu que seu fim já estava próximo, mais uma vez. Vênus a enviou à própria morte, sendo obrigada a descer com os próprios pés até o inferno, a casa lúgubre de Orco. Não queria evitar o inevitável, ela sobre e desce pelo caminho mais curto até as sombras abaixo, quando mais uma vez ouve uma voz:

“- Por que razão queres assim acabar a vida infeliz? Por que recuas ante a prova, ante este último perigo ? Quando tua alma for separada do corpo, irás, sem dúvida, direito ao fundo do Tártaro – mas voltar de lá é que não poderás de maneira alguma. Escuta-me: Lacedemônia , cidade nobre da Acaia, não fica longe. Procura lá o Tênaro, só acessível através de caminhos escondidos. É um respiradouro do inferno. Por sua porta escancarada entreverás um caminho em que nunca ninguém pôs o pé. Entra pela porta  e segue por ele: chegará diretamente ao palácio de Orco.” ( pág. 74)

A voz lhe diz como por uma certa caverna ela poderia chegar aos reinos de Plutão, e como evitar todo os perigos da estrada e convencer Caronte, o barqueiro, a levá-la e atravessar o rio negro em sua barca sutil e trazê-la de volta. Mas a voz acrescentou:

“ Enquanto atravessares o rio dormente, um ancião erguendo de entre as águas as mãos apodrecidas, implorar-te-á que o puxes para dentro do barco, mas tu não deixarás vencer a piedade ilícita. Mal  houveres deixado a margem do rio, umas velhas tecedeiras, ocupadas em tecer tela, pedir-te-ão que lhes ajudes um pouco; nem isto te é permitido fazer. Todas essas tentações. E muitas outras, surgirão por artifício de Vênus, a fim de que largues um desses bolos de cevada não tenha importância: isto basta tu perderes um, e nunca mais verás a luz do sol. Um cão enorme, de três cabeças monstruosas deitado à própria porta de aposento sombrio de Prosérpina, a guardar o triste palácio de Plutão, late com toda força, espantando os mortos, a quem, no entanto, já nenhum mal pode fazer. Depois de apaziguá-lo atirando-lhe um dos bolos, passarás facilmente por ele e entrarás logo em casa de Prosérpina. ( pag75)

Psiquê dirige-se sem demora ao Tênaro, desconhece as preces dos espíritos pedintes, como também a fúria do horrível cão, e entra na residência de Prosérpina. Não aceita  nada, nem comida nem o assento que a hospedeira lhe oferece. Entregam-lhe uma caixinha, repleta e fechada. Ela consegue sair do inferno bem mais animada do que quando entrou. E  vê a luz do sol. Sente-se curiosa:

“ Trago aqui a beleza divina, e nem guardo um pouquinho para mim a fim de agradar mais ao seu belíssimo amante”. ( pág. 77)

Quando ela acaba de pensar isso, abre a caixinha. Esta, porém, não continha nenhuma porção de beleza, nada, absolutamente nada. Uma sensação de letargia infernal, que se expande da caixinha, se apodera de Psiquê, estende-lhe sobre todos os membros numa nuvem de letargia.

Na mesma hora a ferida de Cupido cicatriza-se. Já não suportando a ausência de Psiquê, sua amada, escapa pela janela estreita. E num voo rápido, vê a esposa. Liberta-a do sono letárgico que a oprime e encerra este outra vez na caixinha. Cupido lança suas setas e Cupido diz:  

“- Ias perecer outra vez, infeliz, por efeito da tua curiosidade. Mas desempenha-te primeiro da missão de que foste incumbida por minha mãe, deixa o resto comigo.” ( pág. 77)

Cupido levantou voo enquanto Psiquê levava a dádiva de Prosépina a Vênus. Com as suas asas, voa até o céu e tenta advogar sua causa com Júpiter implorando a ele o direito ao perdão. Júpiter ordena a Mercúrio que imediatamente convoque todos os deuses e conselho e anuncie a multa de dez mil “sestércios” (unidade monetária celestial). Após a assembleia, Júpiter permite que Cupido goze para sempre o amor de Psiquê.

Assim, Cupido e Psiquê casaram-se. E dessa união nasceu sua filha, a quem chamamos de Volúpia.

Fico por aqui e indico essa obra-prima de Lúcio Apuleio. “Amor e Psiquê” merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 20 outubro 2023 | Tags: Narrativa, Mitologia


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Amor e psiquê
autor: Lucas Apuleio
editora: Editora Civilização Brasileira
tradutor: Paulo Ronai, Aurélio Buarque de Holanda

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