“Quarto de despejo. Diário de uma favelada”
Quando acabei de ler o livro da escritora Carolina Maria de Jesus, eu fiquei espantado com a sensibilidade reflexiva de uma mulher que não tinha sequer o primeiro grau. Carolina Maria de Jesus nasceu em 1914, na cidade de Sacramento, em Minas Gerais. Mudou-se para São Paulo, onde veio a trabalhar como catadora de papel para sustentar seus três filhos que criava sozinha. O livro é um diário sobre o seu dia a dia na favela do Canindé. Hoje essa antiga favela se transformou na Marginal Tietê.
A origem da palavra “favela” está no livro “Os Sertões”, de Euclides da Cunha, que narra os acontecimentos na “Guerra dos Canudos” (1896-1897) chamado o morro da Favela. A palavra “favela”, cujo nome científico é Cnidoscolus quertcifolius Pohl, também conhecida como “faveleira”, que são sementes parecidas com fava, daí “faveleira”, que encobriam a região.
Os soldados que retornaram ao Rio de Janeiro após a campanha militar contra os seguidores de Antônio Conselheiro estabeleceram-se em morros próximos à cidade por não terem onde morar. Eles nomearam esses morros de “Morro da Favela” em referência ao morro que haviam conhecido em Canudos.
O livro é um conjunto de 20 diários escritos no período entre 1955 e 1960. Não são diários corridos, muitas vezes existem ausências, devido ao excesso de trabalho, cansaço. Mas são relatos reais do cotidiano de uma catadora de lixo pobre, solteira, mãe de três filhos. São relatos e sensações reais do cotidiano.
O livro “Quarto de Despejo. Diário de uma Favelada” tem vários elementos. Autobiográfico em alguns momentos; em outros, vemos elementos de uma cronista que vive no centro do furacão, ou seja, no coração da favela, e na maioria das vezes um diário simplesmente. No entanto, não podemos deixar de mencionar que é uma obra visceral e impactante que se destaca como um documento sociológico profundo, mas também um poderoso testemunho literário.
O livro foi publicado pela primeira vez em 1960, vendeu no primeiro momento algo em torno de 10 mil exemplares nos primeiros quatro dias, e depois alcançou 100 mil cópias no ano. E depois traduzido para treze idiomas e distribuídos em mais de quarenta países.
O livro é uma reflexão sobre um contexto específico relacionado às mulheres, especialmente em situações de marginalização e pobreza. E aqui precisamos falar que Carolina Maria de Jesus não narra a própria história, mas também representa muitas mulheres invisíveis que lutam com resiliência e resistência para botar comida no prato de seus filhos. E não é só a fome, mas a precariedade habitacional.
“ O Brasil precisa ser dirigido por alguém que já passou fome. A fome também é professora. Quem passa fome ajuda a pensar no próximo e nas crianças” (pág. 29)
Carolina Maria de Jesus descreve o cotidiano da favela, marcado pela luta constante pela sobrevivência.
“- Eu estava escrevendo. Ela perguntou-me:
- Dona Carolina, eu estou neste livro? Deixa eu ver!
- Não. Quem vai ler isto é o senhor Audálio Dantas que vai publicá-lo.
- E por que eu estou nisto?
- Você está aqui por que naquele dia que o Armim brigou com você e começou a bater-te, você saiu correndo nua para a rua.
Ela não gostou e disse-me:
- O que a senhora ganha com isto?
- Resolvi entrar para dentro de casa. Olhei para o céu com suas nuvens negras que estavam prestes a transformar-se em chuva” ( pág. 143)
Em 1958, Audálio Dantas conheceu Carolina. Estava conduzindo uma reportagem sobre o cotidiano da favela do Canindé, no centro de São Paulo (hoje, por ironia, transformou-se na Marginal Tietê) e ficou impressionado com os escritos que ela mantinha nos cadernos, relatando a sua vida.
Carolina não apenas narra a sua própria história, mas a história de muitas outras mulheres, especialmente negras e pobres, que raramente são ouvidas na literatura. Ilumina os desafios enfrentados pelas mulheres em contexto de marginalização.
Às oito e meia da noite eu já estava na favela respirando o odor dos excrementos que mescla com barro podre. Quando estou na cidade tenho a impressão que estou na casa de visita com seus lustres de cristais, seus tapetes de viludo, almofadas de sitim. E quando estou na favela tenho impressão de ser um objeto fora de uso digno de estar num quarto de despejo (pág37)
O livro mantém exatamente a escrita dos diários da escritora com seus erros ortográficos e variações vocabulares para que os leitores experimentassem autenticamente a leitura.
O livro é um relato que ainda permanece atual da condição de muitas outras mulheres nas favelas do Brasil. E mais do que isso, uma reflexão política também:
“- É que eu tinha fé no Kubstcheck
- A senhora tinha fé, mas agora não tem mais?
- Não meu filho. A democracia está perdendo seus adeptos. No nosso paíz tudo está enfraquecendo. O dinheiro é fraco. A democracia é fraca e os políticos fraquíssimos. E tudo que está fraco morre um dia.” ( pág. 39)
Em um outro momento ela diz:
“Passei na sapataria. O senhor Jacó estava nervoso. Dizia que se vivesse no comunismo, ele havia de viver melhor porque o que a fábrica produz não dá para as despesas.
Antigamente era os operários que queria o comunismo. Agora são os patrões. O custo de vida faz o operário perder a simpatia pela democracia. O saco de papéis estava muito pesado que o meu ombro esquerdo está ferido.
Quando eu passava na Avenida Tiradentes, uns dos operários que saíam da fábrica disse-me:
Carolina já que você gosta de escrever, instiga o povo para adotar outro regime.
Um operário perguntou-me:
- É verdade que você come o que encontra no lixo?
- O custo de vida nos obriga a não ter nojo de nada. Temos que imitar os animaes ( pág. 112)
A escrita pessoal mostra uma sensibilidade e algumas percepções muito sofisticadas e irônicas como esse relato:
“ Encontrei a Rosalina que estava discutindo com Hélio. Ele não quer que fala que ele e a Olga pede esmola. A Rosalina é sosinha e sustenta três filhos. É que ela não sabe que o seu filho Celso anda dizendo que quer fugir de casa porque tem nojo dela. Acha a mãe muito bárbara e avarenta. |Ele diz que queria ser meu filho. Então eu lhe digo:
- Se você fosse o meu filho, você era preto. E sendo filho de Rosalina você é branco.
Ele respondeu-me:
- Mas seu fosse seu filho eu não passava fome. A mamãe ganha pão duro e nos obriga a comer os pães duros até acabar.
Segui pensando na desventura das crianças que desde pequeno lamenta sua condição no mundo. Dizem que a Princesa Margareth da Inglaterra tem desgosto de ser princesa. São os dilemas da vida” ( pág. 104)
A linguagem de Carolina é crua, direta, mas também poética. Ela não apenas retrata a miséria material, mas também reflete sobre, por exemplo, seus sonhos, sobre os aspectos psicológicos da vida em condição adversa:
“Os próprios favelados falam que favelados não tem educação. Pensei: vou escrever.
Quando eu voltava encontrei com Paulo que vive com a dona Aurora. Ela tem uma filha mulata clara. Ela diz que a filha é filha de Paulo. Mas as feições não condiz:
- Eu durmi. E tive um sonho maravilhoso. Sonhei que eu era um anjo. Meu vestido era amplo; mangas longas cor de rosa. Eu ia da terra para o céu. E pegava as estrelas na mão para contemplá-las Conversas com as estrelas. Elas organizavam um espetáculo para homenagear-me. Dançavam ao meu redor e formavam um risco luminoso.
Quando despertei pensei: Eu sou tão pobre não posso ir a um espetáculo, por isso envia-me estes sonhos deslumbrantes para minha alma dolorida. Ao Deus que me protege, envio os meus agradecimentos. ( pág. 120)
A importância desse livro é imensa. Ela rompeu barreiras em uma época em que as vozes femininas, especialmente de mulheres negras e pobres, eram raramente ouvidas na literatura. O livro destaca a luta diária dela e de outras mulheres na favela.
Enfrentando a pobreza extrema, a fome, a precariedade habitacional e a discriminação. O livro serve como uma ferramenta educativa importante, oferecendo perspectivas autênticas sobre as interseções de gênero, raça e classe.
O livro mostra como a arte e a literatura podem ser formas de resistência e transformação social. Seu sucesso incomodou e muitos comentários maldosos relacionavam o seu talento de escritora com a figura de Audálio como se fosse, utilizando as palavras de hoje, um jabá. Com o tempo, seus livros posteriores não lhe renderam o mesmo sucesso de “Quarto de Despejo”.
Mas o livro mostra também o preconceito existente dentro da favela. Desfaz aquela ideia romântica do favelado unido e fraterno.
“ Muita gente passou a achar que eu fiquei rica. Procuravam-me como se eu fosse dona de uma fortuna. Queriam propor negócios malucos. Queriam pedir empréstimos, pedir auxílios descabidos. O que me dói é que se aproximam fantasiados de honestos. Pedem exigem quase como se eu fosse mãe da Vera, do João e do José Carlos, mas a mãe de todos. Pedem e depois não pagam” ( pág. 196)
Apesar de todo o sucesso inicial, morreu na pobreza como catadora de papel na rua em 1977. Mas seu reconhecimento póstumo continua a inspirar muitos estudiosos universitários tanto no Brasil como no exterior, além de uma adaptação para o teatro por Edy Lima, onde Carolina foi interpretada pela atriz Ruth de Souza. Na televisão, a história da autora virou “Caso Verdade”, programa exibido em 1983. Até na Alemanha sua história chegou à televisão. Em 2002 o diretor Jeferson DE cineasta brasileiro que realizou um documentário de curta metragem chamado, Carolina.:
“A vida é igual a um livro. Só depois de ter lido é que sabemos como a nossa vida decorreu. A minha até aqui tem sido preta. Preta é a minha pele. Preto é o lugar que eu moro.” ( pág. 167)
O mundo fora da favela foi também uma decepção. Um desejo de vencer a qualquer preço, o que rendeu o seguinte comentário da autora:
“Decepção. Pensei que houvesse mais idealismo, menos inveja. Mas aqui há não só muita ambição ,mas também o desejo de vencer a qualquer preço. Mesmo os meios empregados sejam podres. Quando matei um porco, lá na favela do Canindé, alguns vizinhos exigiram um pedaço de carne. Rondavam meu barraco feito bicho que fareja presa. Lá na favela era porco, aqui é o dinheiro. No fundo é a mesma coisa. Lembrei do meu provérbio: “Não há coisa pior do que a própria vida”. (pág. 197)
“O Quarto de Despejo. Diário de uma Favelada”, de Carolina Maria de Jesus, é um livro icônico para o Dia Internacional das Mulheres. Merece um lugar de HONRA na sua estante.