Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder
Byung-Chul Han é um filósofo e teórico coreano-alemão. No Brasil, pela editora Vozes, lançou aproximadamente uns doze livros sobre temas relacionados à cultura e sociedade contemporânea, novas tecnologias, globalização e capitalismo neoliberal. O livro de que falaremos hoje, “Psicopolítica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder”, é da editora Ayné.
Han estudou metalurgia na Universidade da Coreia como estudante de graduação. Na pós-graduação, Han estudou filosofia, literatura alemã e teologia católica em Freiburg e Munique. Ele ocupou cargos acadêmicos no Departamento de Filosofia da Universidade da Basileia, na Universidade de Artes e Design de Karlsruhe, e atualmente leciona na Universidade de Artes em Berlim.
Sua relevância nos dias de hoje está na teoria da política contemporânea, onde ele rastreia novas tecnologias de poder cada vez mais implantadas pelas empresas privadas, em vez do estado-nação soberano e seus aparelhos ideológicos de estado.
O estudo de Byung-Chul Han visa desvendar as operações de poder, violência, subjetivação, política e produção na sociedade contemporânea. Segundo seu diagnóstico, nossa sociedade é marcada pela exploração psicopolítica, transformando todos em consumidores e empreendedores de si mesmos.
Para isso, ele acompanha a transformação dos modos de produção e da subjetividade no neoliberalismo e a relação do neoliberalismo com a proliferação do digital, do virtual à Big data. Suas críticas se direcionam aos modelos existentes de controle sociopolítico e governança de acordo com a lógica mais antiga da sociedade disciplinar.
O estudo de Han desafia o otimismo das reformas das democracias liberais. Han não é nada otimista. Para ele, o neoliberalismo governa a liberdade, a autonomia e as economias afetivas para reproduzir o capital e subjugar o sujeito pós-industrial. As sociedades mais diversificadas, equitativas e inclusivas não perturbam as tecnologias neoliberais de poder, apenas aceleram o crescimento do neoliberalismo.
A ideologia nos dias de hoje nos faz acreditar que somos projetos livres, isentos de submissões, acompanhados pelo sentimento de liberdade. O “eu” livre das coerções externas e das restrições impostas pelos outros.
Byung-Chul Han vai questionar este conceito de liberdade, que envolve coações internas, na forma de obrigações e desempenho e otimização. Essa liberdade produz ela mesma coerção e doenças psíquicas, como depressão ou burnout
Um novo sujeito surge nos dias de hoje; o sujeito de desempenho, que se julga livre, mas na verdade é servo de si mesmo, ou seja, seu sucesso ou fracasso, depende de si, esse é o sujeito do desempenho.
Para Marx, ser livre não significa nada mais do que se realizar conjuntamente. Liberdade é sinônimo de comunidade bem-sucedida. Diferente da suposição de Marx, a contradição entre forças produtivas e as relações de produção não pode ser superada através de uma revolução comunista; ela é de fato impensável. E o motivo é que essa contradição faz com que o capitalismo escapa sempre para o futuro. Foi assim que o capitalismo se transforma em capitalismo financeiro com modos de produção imateriais e pós-industriais, em vez de se transformar em comunismo.
O neoliberalismo, como mutação do capitalismo, torna o trabalhador um empreendedor de si mesmo. Não é uma revolução comunista, e sim o neoliberalismo que elimina a exploração alheia da classe trabalhadora. Hoje cada um é trabalhador que explora a si mesmo para sua própria empresa. Cada um é senhor e servo em uma única pessoa. A luta de classe sai do lado de fora e se transforma em uma luta interior consigo mesmo. E a ditadura do proletariado é nos dias de hoje algo impossível. Somos todos dominados pela ditadura do capital.
O capitalismo neoliberal transforma a exploração imposta pelos outros em uma autoexploração que atinge todas as classes. Quem fracassa na sociedade neoliberal de desempenho em vez de questionar a sociedade, ou o sistema, considera a si mesmo o responsável e se envergonha pelos seus fracassos. E é aí que reside a grande sacada: o regime neoliberal não permite que emerja qualquer resistência ao sistema.
No regime liberal de autoexploração a agressão é dirigida contra nós mesmos. Ele não transforma explorados em revolucionários, mas em depressivos. O capital representa uma nova transcendência, uma nova forma de subjetivação.
Han nos faz lembrar do slogan publicitário da Microsoft: “Aonde você quer ir hoje?” A euforia inicial da internet hoje não passa de uma ilusão. A liberdade e a comunicação ilimitada se transformam em um controle total. Esse controle faz uso intensivo da liberdade. Essa liberdade é algo passivo, a passividade do consumidor.
No plano político, vemos políticos e partidos seguindo a lógica do consumo. O eleitor tem uma reação passiva exatamente como faz o consumidor diante de um produto ou de um serviço de que não gosta. E os partidos seguem a mesma linha de consumo, ou seja, tem que satisfazer os eleitores como consumidores ou clientes.
É aí que entra a transparência, que hoje se exige dos políticos. Não se exige a transparência para os processos de decisão, ninguém se interessa, o imperativo da transparência serve para desmascarar ou expor a classe política. A reivindicação da transparência pressupõe a posição de um espectador escandalizado. Não é a demanda de um espectador engajado, mas de um consumidor passivo. A democracia de espectadores povoados por consumidores e espectadores. É a psicopolítica digital que nos empurra para uma nova forma de liberdade.
O poder é algo silencioso. Ele não é uma violência ou é repressivo. É algo permissivo. E a sua permissividade, o poder exclui a sua negatividade e se passa por liberdade. Ele lê e avalia nossos pensamentos conscientes e inconscientes. Os Big Data são elementos importantes nesse processo, eles alcançam um conhecimento que permite influenciar na psiquê do sujeito. Eles preveem os comportamentos e tornam possível prever e controlar os sujeitos.
Como observa Han, os dados são coletados hoje para qualquer finalidade, desde os dados coletados pelo Facebook, o Google e Acxion (agência de Segurança Nacional estadunidense). Os adeptos do Quantified self são viciados em dados. Eles equipam seus corpos com sensores que registram todos os parâmetros corporais. Mede-se tudo, como a temperatura do corpo, ciclos de sono, entrada e perda de calorias, perfil de atividades e até ondas cerebrais, batimentos cardíacos durante uma meditação. A catalogação da vida virtual de todas as atividades desenvolvidas por determinado indivíduo da construção de perfis psicológico.
O capitalismo disciplinar para Foucault é um poder normativo que se submete a um conjunto de regras, obrigações e proibições, eliminando desvios e anomalias. Produz o sujeito da obediência, produção e reprodução, que deve ser administrável meticulosamente. A sociedade disciplinar aposta na produção. Foucault vincula a biopolítica à forma disciplinar do capitalismo, sendo uma forma que age no biológico, no somático, no corporal. E assim trata-se da política dos corpos.
Hoje, segundo Han, o corpo como força produtiva não é mais central como na sociedade disciplinar biopolítica. O disciplinamento corporal dá lugar à otimização mental. Ele e liberado do processo imediato de produção e se torna um objeto de otimização estético e técnico. Sexy e Fitness tornaram-se recursos econômicos que devem ser multiplicados, comercializados e explorados. Fazer de si uma obra de arte.
A psicopolítica neoliberal inventa formas de exploração cada vez mais refinadas. A era de ativa produção industrial é passad. Hoje a otimização do trabalho é assessorada, por exemplo, pelos coaches, livros de autoajuda. Bloqueios e erros devem ser removidos através de uma terapêutica para desenvolver o desempenho.
Essa ideologia da otimização ganha características religiosas e até mesmo fanáticos; representa uma nova forma de subjetivação. Os pregadores evangélicos de hoje atuam como gerentes e treinadores motivacionais que pregam o novo evangélico do desempenho.
Existe alguma semelhança entre o Estado de vigilância (1984) de Orwell e o de hoje?
No romance “1984”, George Orwell cria uma sociedade em que impera o Estado de vigilância, nela é instituída a “Novafala” que substitui a “Velhafala”, de forma que se reduza a liberdade de pensamento. Com o tempo, o número de palavras diminui e a liberdade de consciência se torna menor. Na política, ocorre o contrário se produz mais informação, sobrecarregando os sujeitos, graças à sua enorme produtividade. Por ter muita informação para ser manuseada, o sujeito não consegue processar de forma racional. Muita informação confunde a verdade e, portanto, atinge o efeito de “pensamentos irritantes, esta estratégia não requer coercitivo direto”.
Segundo Han, não há semelhanças. A técnica de poder do regime neoliberal, não é proibitivo, nem repressivo , mas prospectivo e permissivo. O consumo não se reprime, só se maximiza gerado não por uma escassez, mas por uma abundância, um excesso de positividade.
No pan-óptico digital ninguém se sente vigiado ou ameaçado. As pessoas se sentem livres e se autoexploram e se autoexpõem, ao contrário do Estado-vigilância, que reduz a liberdade. A técnica usada do Grande Irmão é a da lavagem cerebral, isolamento e torturas, a restrição ao consumo.
Ao contrário do Grande Irmão de Orwell, o pan-óptico digital tem uma abordagem bem distinta. O indivíduo faz publicações em redes sociais, como no Twitter, Facebook, Instagram, onde as particularidades são usadas como forma de controle. Na sociedade neoliberal, o hiperconsumo e a hiperprodução são o toque diferencial. O consumo não se reprime, só se maximiza, gerado não pela escassez, mas por uma abundância, um excesso de positividade.
Um outro ponto abordado por Han diz respeito ao excesso de sentimento e das emoções. De repente o ser humano não é um ser racional, mas uma criatura sensível. E como se dá isso?
Han faz uma distinção entre sentimento e emoção. Os sentimentos são mais duradouros, ocupando um espaço temporal. As emoções são mais instantâneas. As emoções são mais reativas do que intencionais, enquanto os sentimentos são mais intencionais e incorporam uma estrutura interna.
“ O sentimento permite uma narração: tem uma duração ou uma profundidade narrativa. Nem o afeto nem a emoção são narráveis. A crise dos sentimentos que pode ser observada no teatro atual, também é uma crise de narrativa. Hoje, o teatro narrativo do sentimento cede lugar a algo barulhento teatro do afeto. Por falta de narrativa, uma massa de afetos é levada ao palco. Ao contrário dos sentimentos, o afeto não abre nenhum espaço. Ele procura uma via linear para ser descarregado. O médium digital também é o meio do afeto. A comunicação digital favorece uma descarga. Já por causa de sua temporalidade, a comunicação digital transporta mais afetos do que sentimentos. Shitstorm são correntes de afetos e são características da comunicação digital. “ (pág. 60)
O capitalismo da emoção explora essas caraterísticas. Ser livre significa deixar as emoções correrem livres. Como bem observa Han, o regime neoliberal emprega as emoções como um recurso para alcançar mais produtividade e mais desempenho.
A aceleração da comunicação na economia neoliberal favorece a transformação emotiva porque a racionalidade é mais lenta que a emotividade. Em certo sentido, ela(racionalidade) não tem velocidade. Por isso a pressão da aceleração leva à ditadura da emoção. É essa emoção que o capitalismo do consumo explora para estimular a compra.
Sentimentos têm uma temporalidade diferente:
“Sentimento também tem uma temporalidade diferente da emoção. Ele permite uma duração. As emoções são essencialmente mais fugazes e mais curtas do que os sentimentos. O afeto é muitas vezes limitado a um instante. Ao contrário do sentimento, a emoção não representa um estado. A emoção não dura. Não pode haver uma emoção de tranquilidade, mas é, sem dúvida, pensável como sentimento de tranquilidade. A expressão estado emocional soa assim paradoxal. A emoção é dinâmica, situacional e performativa. O capitalismo da emoção explora exatamente essas características. O sentimento por outro lado, é difícil de ser explorado devido a faltas de performatividade. Já o afeto é eruptivo. Falta-lhe orientação performática” (pág. 61)
Um outro ponto abordado por Han é a separação dos iluminismos em três partes. O primeiro é caracterizado pela razão. O segundo pela transparência, tudo se torna dados e informações. O terceiro iluminismo está surgindo, e ele provoca a servidão.
No primeiro iluminismo, a estatística seria capaz de libertar o conhecimento do teor mitológico. Voltaire saudou as luzes das estatísticas como uma forma de separar a história da mitologia. Para Voltaire, a estatística significa esclarecimento.
No segundo Iluminismo, tudo se transforma em dados e informações. Este totalitarismo dos dados marca que qualquer ideologia pode ser deixada para trás, só que isso é em si mesmo uma ideologia. É o totalitarismo digital. É a crença na mensuralidade e na quantificação da vida que domina toda a era digital. O big Data é uma forma de monitorar o comportamento humano. É um controle muito eficiente.
A Dialética do Esclarecimento afirma que o iluminismo, ao começar a destruir os mitos, foi se emaranhando cada vez mais em uma nova mitologia. A falsa clareza é uma outra expressão do mito.
“ Adorno diria que a transparência também é uma outra expressão do mito e que o dataismo promete uma falsa clareza. Essa mesma dialética transforma o segundo iluminismo, que se opõe à ideologia em uma ideologia e em uma barbárie de dados.” (pág. 82)
O terceiro Iluminismo é o hoje, o dataísmo digital, onde vemos, por exemplo, o número de endereços na web praticamente ilimitado. Assim é possível fornecer a cada objeto de uso um endereço de internet. É a servidão, onde as próprias coisas se tornam emissoras ativas de informações sobre nossa vida, nosso fazer, nossos costumes. A expansão da internet das coisas (Web 3.0) completa a sociedade de controle digital. A Web 3.0 torna possível um registro total da vida. Agora somos monitorados pelas coisas que utilizamos cotidianamente.
Os dados pessoais são monetizados e comercializados. Hoje as pessoas são tratadas e comercializadas como pacotes de dados que podem ser explorados economicamente. A big data governa uma nova sociedade de classe digital.
A memória humana é uma narração, uma narrativa para a qual o esquecimento é essencial. A memória digital, por outro lado, é uma adição e acumulação sem intervalo. Os dados armazenados são contáveis, mas não narráveis. Salvar e recuperar é fundamentalmente diferente da memória, que é um processo narrativo.
As big datas desenterram desejos nossos dos quais nós mesmos não estamos propriamente conscientes. Muitas vezes, nem sequer sabemos por que de repente sentimos certa necessidade.
“ O fato de uma mulher em determinada semana da gravidez deseja determinado produto, implica uma correlação da qual ela mesma não está consciente. Ela simplesmente compra aquele determinado produto, mas não sabe por quê. É assim mesmo. Esse “é assim mesmo” talvez tenha uma proximidade psíquica do id freudiano, que escapa o ego consciente. Visto dessa forma, as big datas fariam um ego a partir do id que se deixa explorar psicopoliticamente. Se os big data oferecesse acesso ao inconsciente de nossas ações e inclinações, então seria possível imaginar uma psicopolitica que interviria profundamente em nossa psiquê para explorá-la. (pág. 88)
O último capítulo do livro chama-se “Idiotismo” e traça a rica história da idiotice contracultural da filosofia. E o que vem a ser isso? Em seu curso de 1980 sobre Espinosa, Deleuze observa o seguinte
“Literalmente, eu diria que se fazem de idiotas. Fazer-me de idiota. Fazer-se de idiota será sempre uma função da filosofia” (pág. 109)
O idiotismo se opõe ao poder neoliberal de dominação. O idiota se comunica pelo silêncio, quietude e solidão. Em 1995, Deleuze anunciava a política do silêncio. Ela é dirigida a política neoliberal que abriga a comunicação e a informação:
“A dificuldade hoje não é mais que não podemos expressar livremente nossas opiniões, mas criar livres espaços de solidão e silêncio em que encontramos algo a dizer. As forças repressivas não nos impedem de expressar nossa opinião. Ao contrário, elas nos obrigam a isso. Que libertação é ao menos uma vez não ter que dizer nada e poder ficar em silêncio, porque só então temos a possibilidade de criar algo cada vez mais raro: algo que realmente valha a pena ser dito. “ ( pág. 113)
O novo idiota não quer evidências, ele quer o absurdo, a mais alta potência do pensamento, isto é, criar. Sócrates sabia apenas uma coisa: não sabia nada. Descartes disse: penso, logo existo. Byung-Chul Han quer recuperar esta tradição. O idiotismo como uma ruptura de isolamento, de desinformação e de descomprometimento – como uma prática de liberdade e, portanto, uma possível estratégia de luta contra a psicopolítica neoliberal.
Por isso, indico “Psicopolitica – O neoliberalismo e as novas técnicas de poder”, de Byung-Chu Han, como um livro importante para os dias de hoje. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.