O Capote
Nikolai Gogol é um autor recorrente aqui no site. Parte de sua pequena biografia já foi escrita aqui. Uma pequena parte de sua biografia não mencionei, e ela é importante para entendermos o seu foco em todas as suas histórias: a burocracia.
Quando ele tinha 17 anos, em 1825, um grupo de revolucionários chamados de “Dezembristas” tentou derrubar o regime czarista. Essa tentativa acabou levando a uma enorme frustração. Mas uma sequela havia sido deixada: a população russa compreendeu que o regime czarista não era indestrutível.
Essa insurreição teve um caráter ideológico liberal e o grupo que a liderou era composto por aristocratas e militares que aspiravam reformas políticas profundas. A maioria dos rebeldes foi mandada para o exílio, e cinco conspiradores foram executados tornando-se mártires na luta contra o autoritarismo dos czares. Bem, como resultado, a burocracia russa sofreu mudanças a partir desse levante. E essa mudança fez com que a aristocracia fosse retirada da burocracia, o que causou mudanças.
Quando Gogol se candidatou a um emprego como burocrata em 1828, toda a burocracia estava em estado de agitação. Com essa desordem instaurada, a burocracia não parecia um lugar acolhedor para se trabalhar. Gogol, em seu conto “O Capote”, pinta uma imagem de pessoas pobres habitando o interior das instituições do governo russo da época. E é bom que se diga que não é só em “O Capote”, mas em “Almas Mortas” , “o Inspetor Geral”, o “Diário de um Louco” e em “O Nariz”, todos são uma crítica à burocracia.
“O Capote” fala sobre a vida de Akáki Akákievitch, que trabalha na burocracia. Como ele é? Gogol faz a descrição do protagonista dessa história:
“Quando Akáki Akákievitch entrou no departamento, era coisa que ninguém podia se lembrar. Por mais que mudassem de diretores e chefes de toda espécie, sempre o viam no mesmo lugar, na mesma posição, no mesmo cargo, como o mesmo escrevente, de tal maneira que depois passaram a acreditar que ele parecia mesmo já haver nascido inteiramente preparado, de uniforma e calvo. No departamento ele não era objeto de nenhum respeito. Os guardas, além de não levantarem quando ele passava, nem olhavam para ele, como se ele fosse uma simples mosca que voava pela sala de recepção. Os superiores o tratavam com uma frieza um tanto despótica. Qualquer subchefezinho de departamento metia-lhe uma papelada debaixo do nariz sem se ele dar ao trabalho de dizer: “Copie”, ou “Eis um trabalhinho interessante, bom” ou algo agradável, como se faz entre funcionários bem-educados. E ele ia recebendo, olhando apenas o papel, sem reparar em quem lhe entregara e se tinha direito de fazê-lo. Recebia e no mesmo instante começava a escrever. Os funcionários jovens zombavam e gracejavam dele o quanto permitia o humor de chancelaria, contavam mesmo em sua presença toda a sorte de histórias que envolviam a sua pessoa, e sua senhoria, uma velha de setenta anos, diziam que a velha lhe batia, perguntavam quando os dois iam se casar, faziam chover sobre sua cabeça de bolinhas de papel e diziam que era neve. Mas Akáki Akákievitch não respondia uma palavra como se não houvesse ninguém diante dele: em meio a todas essas amolações, não cometia um só erro no seu trabalho. “ ( pág. 9; pág. 10)
O narrador sugere que estamos falando de um funcionário de baixo escalão que trabalha como copista em um departamento da burocracia russa. Uma outra coisa que o narrador sugere e que Akáki Akákievtch não socializa com os demais e mal percebe o que se passa à sua volta. Os outros funcionários zombam dele constantemente.
Apesar de tudo, Akáki Akáievich não se importa e, ao que parece, não guarda nenhum tipo de infelicidade no seu ambiente de trabalho. Ele é um homem cem por cento envolvido com aquilo que faz. Seu grande desafio está nas temperaturas congeladas de São Petersburgo. Para isso, ele tem um capote totalmente esfarrapado. O salário de quatrocentos rublos o impede de comprar um capote novo. E o capote velho que ele usa é alvo de piadas.
“É preciso dizer que o capote de Akáki Akákievitch era também objeto de galhofas na repartição: tiraram-lhe inclusive o nobre nome de capote, substituindo por roupão. A peça era realmente de um formato estranho: a gola sempre diminuindo de ano para ano, pois servia de remendo para outras partes. O remendo não dava prova de maestria do alfaiate: a peça era feia . Percebendo do que se tratava, Akáki Akákievitch resolveu que era necessário levar o capote a Pietrovitch, um alfaiate que vivia num terceiro pavimento subindo por uma escada de serviço e, apesar do olho torto e da cara sarapintada, consertava com bastante acerto calças e fraques de funcionários etc., naturalmente quando não estava bêbado nem tinha em mente alguma outra invenção.” ( pág14)
Ao conversar com o alfaiate Akáki é convencido a fazer um novo capote. Era impossível fazer mais um remendo no capote velho. Mas Pietrovich disse que era impossível fazer qualquer coisa com aquele velho capote. Ele propõe que Akáki compre um novo. Com que dinheiro ele compraria um novo? O preço era de oitenta rublos. Quarenta rublos ele tinha, mas os oitenta rublos eram impossíveis. Como consegui-lo?
Pietrovitch havia feito um grande trabalho. O novo capote não era apenas mais quente. Era elegante e moderno. Quando Akáki experimenta, ele se sente ótimo.
“Em suma, o capote saiu exatamente na medida. Diante de tudo isso, Pietróvitch não perdeu a oportunidade de dizer que só cobraria tão barato por que morava numa pequena rua onde trabalhava sem letreiro, e ainda porque conhecia Akáki Akákievitch havia muito tempo; se fosse na avenida Nievski, só o feitio teria custado setenta cinco rublos. Akáki Akákievitch não queria discutir esse assunto com Pietrotovitch e ademais temia todas as grandes quantias com que ele costumava fazer farol. Acertou as contas com ele, agradeceu-lhe e no mesmo instante saiu de capote novo no departamento. Pietrovitch saiu atrás dele e, na Rua, ainda ficou muito tempo parado, observando de longe o capote, depois caminhou deliberadamente para um lado a fim de contornar o caminho de Akáki Akákievitch por um beco curvo, retornar à rua e mais uma vez contemplar a sua obra de outro ângulo, isto é, de frente. Enquanto isso, Akáki Akákievitch caminhava com todos os seus sentimentos impregnados da mais pura disposição.” ( pág. 24)
Akáki, ao aceitar comprar esse capote, precisa privar-se de algumas despesas. Ele para de tomar chá à noite, não acende as velas, tenta ao máximo andar de forma que não gaste muito os sapatos e passa algumas privações à noite. Mas em compensação seu estado de espírito dá uma guinada de trezentos e sessenta graus. Podemos dizer que esse capote possui uma equivalência a um ser humano. O capote não elevou o seu estatuto social, mas o apresentou a novas formas de se relacionar com o mundo.
Akáki fica surpreso quando o diretor do departamento lhe concede uma pequena festa em comemoração ao novo capote.
“ Quando os colegas se chegaram a ele e começaram a lhe dizer que era preciso comemorar o novo capote ou que ele devia pelo menos dar uma festinha para eles, Akáki Akákievitch ficou totalmente perdido, sem saber o que fazer, o que responder, como escusar-se. Passados alguns minutos, ele, todo vermelho, fez menção de assegurar, de modo bastante ingênuo, que esse capote não tinha nada de novo, que aquilo não era nada de mais, que era o capote velho. Finalmente um dos funcionários, um subchefe da repartição, provavelmente com a intenção de mostrar que não nutria qualquer orgulho e se dava inclusive com subordinados disse:
- Bem pessoal, em vez de Akáki Akákievitch, quem vai dar a festinha sou eu. Estão todos convidados ao chá em minha casa: justo hoje é o dia do meu santo.” (pág. 25)
Akáki se sente deslocado nesse ambiente até que seus colegas de trabalho o pressionam a beber champanhe. Isso o anima, mas ele decide sair à francesa da festa à meia-noite. No caminho para casa, Akáki é abordado por dois ladrões em uma praça – eles o espancam e roubam o seu casaco. Não há testemunhas, Akáki tenta prestar queixa, mas é enrolado pela burocracia da polícia. O chefe da polícia estava dormindo. Volta mais tarde e é informado de que o inspetor de polícia ainda está na cama. Depois é lhe dizem que ele não está em casa. Quando retorna à noite, os funcionários se recusam a deixá-lo entrar na sala. Ele insiste, e o deixam falar com o inspetor. Mas não dá em nada.
Aqui podemos ver que Gogol acusa a natureza corrupta da burocracia, os funcionários totalmente indiferentes a ele. A reação do inspetor também revela esse caráter corrupto. Eles não o tratam como vítima de um crime, mas como um criminoso. O estatuto é superior à decência. O conselho que o inspetor dá é que ele apele para um “figurão”:
“ - O figurão pareceu não notar que Akáki Akákievitch já passara dos cinquenta anos. Portanto, se ele pudesse ser qualificado de jovem, isso só seria possível em termos relativos, isto é, se comparado com quem já estivesse na casa dos setenta. – O senhor por acaso não sabe com quem está falando? Será que não compreende diante de quem se encontra? Compreende ou não? Eu estou lhe perguntando, - E bateu com o pé, elevando a voz a um timbre que deixaria não só Akáki Akákievitch apavorado.” ( pág. 35)
O Figurão grita com Akáki até que ele sai do escritório atordoado. Ele sai e caminha no meio de uma tempestade e é rapidamente atingido por uma febre, que se intensifica rapidamente, e a morte é uma questão de instantes. Ele tem visões dos homens que roubaram seu capote novo.
Akáki morre e ninguém percebe a sua morte. Sua morte significa apenas uma coisa: outro ocupará o seu lugar. Apenas isso.
Com a morte de Akáki, o narrador agora se concentra no “figurão”, aquele que o destratou. Sente um certo remorso e começa a pensar nele o tempo todo. Só que um boca a boca começou a circular:
“De repente Petersburgo foi tomada por rumores de que nas proximidades da ponte Kallinkin e bem mais adiante começara a aparecer um defunto com aspecto de funcionário a procura de seu capote que lhe haviam roubado, e sob o pretexto do capote roubado estava nos ombros de qualquer um, sem dar atenção a títulos e patentes, todo tipo de capote de pelo de pele de gato, de castor, de guaximin, de raposa, de pele de urso, em suma qualquer tipo de couro ou pele até inventado pelas pessoas para cobrir a própria. Um funcionário do departamento viu com seus próprios olhos o defunto e nele reconheceu Akáki Akákievitch, mas isso lhe infundiu tamanho pavor que ele saiu em disparada e por isso não pode observá-lo bem, vendo apenas como o defunto o ameaçou de longe com o dedo em riste.” ( pág. 38)
O fantasma de Akái sugere que outros fantasmas estão rondando São Petersburgo. A morte de Akái na verdade desaparece e a vida continua com todos os fantasmas e absurdos.
“ E de fato um guarda do bairro de Kolomna viu com seus próprios olhos o fantasma saindo dos fundos de um prédio; porém, sendo por natureza um tanto fraco, tão fraco que certa vez foi derrubado por um porquinho adulto que saía correndo detrás de uma casa, para maior risada dos cocheiros que ali se encontravam, risada que custou a cada um deles um níquel para o tabaco -, pois bem, com essa fraqueza toda não ousou retê-lo e limitou-se a acompanhá-lo à distância na escuridão, até que o fantasma acabou de voltar-se de repente e, parando, perguntou: “Que é que vai querer?” - e mostrou um punho daqueles que não se encontram nem entre os vivos. O guarda respondeu “Nada” e foi tratando de dar meia-volta. Mas esse era um fantasma bem mais alto, de bigodes enormes. Tomando ao que parece, o rumo da ponte Obukhov, ele desapareceu por completo na escuridão da noite” ( Pág. 42; pág. 43)
Fico por aqui e indico sem nenhuma hesitação “O Capote”, de Nikolai Gogol, que merece um lugar de “HONRA” na sua estante.