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A chave de casa

A autora desta obra arrebatou, logo em seu romance de estréia, o Prêmio Jabuti, em 2008. E entra pela porta da frente neste blog. Algum tempo se passou, mas quando um livro é bom – ele fica. Com vocês: A chave de casa, de Tatiana Salem Levy.

Começamos o livro com a protagonista prostrada na cama, em um diálogo solitário com seus próprios fantasmas, vivendo em seu próprio mundo. Mas existe algo que a fará partir : a chave da antiga casa turca dada pelo avô.

"Escrevo com as mãos atadas. Na concretude imóvel, do meu quarto, de onde não saio há longo tempo. Escrevo sem poder escrever e: por isso escrevo. De resto, não saberia o que fazer com este corpo que, desde a sua chegada ao mundo, não consegue sair do lugar. Porque eu já nasci velha, numa cadeira de rodas, com as pernas enguiçadas, os braços ressequidos. Nasci com cheiro de terra úmida, o bafo de tempos antigos sobre o meu dorso. Por mais estranho que isso possa parecer, a verdade é que nasci com os pés na cova. Não falo de aparência física, mas de um peso que carrego nas costas, um peso que me endurece os ombros e me torce o pescoço, que me deixa dias a fio – às vezes um, dois meses – com a cabeça no mesmo lugar. Um peso que não é de todo meu, pois já nasci com ele. Como se toda vez em que digo ‘eu’ estivesse dizendo ‘nós’. Nunca falo sozinha, falo sempre na companhia desse sopro que me segue desde o primeiro dia."

Há uma tradição lendária segundo a qual judeus sefarditas guardam até hoje a chave da casa que foi abandonada às pressas na Península Ibérica. A ficcionista reinventa isso no âmbito familiar recente. A chave guardada já não é de uma casa lisboeta ou toledana, mas da residência em Esmirna. O avô entrega a chave à narradora e a incumbe da missão de procurar a casa e parentes na Turquia.

É essa chave que permanece no centro da história ou das histórias. A narradora desfila épocas e personagens ao longo do livro para entender o seu presente, se isso for algo possível. Porque as interrogações e as buscas dão prosseguimento à aventura iniciada pelo avô que decide vir para o Brasil,  seguido do irmão, em busca de melhores perspectivas de vida. Um modo de reviver o passado sefardita e judaico do desenraizamento.

Na sua busca pessoal, a personagem passa por Lisboa, onde não há mais casas a serem encontradas e sim um namorado eventual, um fugaz companheiro de viagem. Depois é o retorno ao Rio de Janeiro e ao enfrentamento consigo mesma, com o que ela é,  com o que pode ser ou não.

O retorno à casa significa aquele momento em que, olhando para trás, destacamos os fragmentos de memória mais relevantes que parecem ter consistência suficiente para formarem uma narrativa a respeito de nós mesmos e de nossas histórias individuais, localizadas no tempo e na cultura.

Partindo em busca do passado familiar, impulsionada pela chave da casa do avô, na Turquia, a narrativa se desdobra em linhas que compõem um mosaico de episódios, vidas e lugares que convergem para a resposta da pergunta fundamental da protagonista: - afinal, quem sou eu?

Tatiana Levy denomina seu livro como autoficção, o que em outras palavras podemos dizer que não são memórias da autora. O texto usa a memória de forma criativa não dando o peso aos acontecimentos em si, mas seus significados afetivos. Para o leitor fica a dúvida do que aconteceu de fato na vida da autora, de sua família e das associações por ela inventada. Afinal, “A chave de Casa” é uma história verídica ou uma invenção? Essa é a provocação da autora.

Para finalizar, devo dizer que A chave de casa não é literatura de “mulherzinha” - é de mulher mesmo. Narrativa madura, calejada, que fala sobre a morte, sobre o amor, sobre o passado cheio de relíquias familiares, no qual ela abre seus álbuns de fotografias antigas que mostram a semelhança dos parentes distantes com a sua boca, o seu nariz, seus olhos e o seu sorriso.

É com extrema delicadeza que a autora nos mostra as ruínas de seu passado, utilizando-se da chave universal da literatura.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


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A chave de casa
autor: Tatiana Salem
editora: Record

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