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A besta humana

Se você está procurando um romance psicológico, cheio de tensões e de intenções mentais doentiamente macabras, “A Besta Humana”, de Émile Zola, é tiro e queda. Você vai conhecer personagens que são verdadeiras máquinas humanas e que desenvolvem, ao longo de suas vidas, desejos obscuros dentro de suas almas. E esse desejo é apenas de matar. Simples assim. 

 

Um thriller apavorante, mas escrito por um gênio. “A Besta Humana”, de Émile Zola, faz parte do seu projeto literário “Os Rougon – Maquart: História natural e social de uma família sob o Segundo Império”. Podemos ver, na excelente apresentação escrita por Jorge Bastos, as ambições literárias do autor. Esta edição comentada e ilustrada traz dezenas de notas, cerca de 20 ilustrações de época, cronologia e uma excelente tradução de Jorge Bastos.

 

A versão impressa apresenta capa dura e acabamento de luxo. E ainda inclui um depoimento extraordinário de Ferdinand Celine sobre Zola e o naturalismo.

 

Vale a pena ler e ter este livro. Uma verdadeira pérola literária. Na verdade, foram vinte livros lançados entre 1871 e 1893, um projeto semelhante à “Comédia Humana” de Balzac. Esses livros são teses literárias chamadas “naturalistas”, que viam na ciência, especialmente no evolucionismo de Charles Darwin, no socialismo científico e no positivismo, a matriz de um novo tipo de literatura.

 

O ser humano, segundo as teses do naturalismo, será analisado e representado a partir dos comportamentos patológicos, dos seus desejos e taras sexuais, do seu lado animalesco, da sua agressividade e das suas características fisiológicas e naturais. O homem é apenas um “fruto” da natureza.

 

Durante a sua vida, Zola marcou presença no mundo literário. Sempre esteve disposto a uma polêmica literária, mas tornou-se famoso pela defesa do naturalismo e ganhou a paternidade desse movimento. Alguns críticos sentem dificuldades em distinguir “realismo” e “naturalismo”. O realismo estabelece um grande grau de semelhança com a vida, ou seja, retrata a vida. O naturalista é diferente. Ele retrata a vida, mas acrescentando as coisas desagradáveis, feias e sórdidas, e são mais céticos. Partem da premissa de que a humanidade está presa por forças incontroláveis a um universo hostil, sem salvação.  Não é à toa que o naturalismo, segundo alguns críticos, é chamado de realismo histérico. Vamos ao livro?

 

O romance começa em Paris com um personagem chamado Roubaud (vice-chefe da estação em Le Havre), um homem de meia-idade, noivo da jovem Séverine, que traz consigo um dote de 10.000 francos para o casamento. E não ficou só por aí. Após o casamento, Roubaud foi promovido (quando deveria ter sido demitido por um erro grave cometido no trabalho) graças a um juiz chamado Grandmorin, que pede aos diretores da companhia de trens para que Roubaud fosse perdoado e ainda tivesse uma promoção. Grandmorin é um juiz conhecido e tornou-se guardião de Séverine quando ela ficou órfã. Ela foi criada como filha, frequentava a mesma escola de sua filha legítima. Roubaud é um homem tosco. Sua mulher, Séverine, é tratada como animal de estimação. É impulsivo e extremamente ciumento e violento. Sua mulher costumava ir a Paris para fazer o que gostava, ou seja, compras.

 

Certa vez, na volta de uma de suas viagens, trouxe um presente para seu esposo.  E o que era? Uma faca. Nesse mesmo dia, Séverine acidentalmente revela que o anel que ela estava usando tinha sido dado por Grandmorin, e que ela tinha sido sua amante. Roubaud entra numa crise de ciúmes e por muito pouco Séverine quase perde sua vida. Apanhou e foi humilhada pelo marido. Roubaud a obriga escrever uma carta a Grandmorin para atraí-lo para uma cilada. Era a sua resposta à humilhação sofrida por ele. O plano consistia em fazê-lo tomar o mesmo trem em que embarcariam para voltar a Le Havre.

 

Durante a viagem, Séverine e Roubaud matariam o juiz. Claro que, caso Séverine não aceitasse, poderia morrer. Por isso, participou de toda a trama. Paralelamente a isso, um novo personagem surge nessa trama. Seu nome é Jacques Lantier, um maquinista que sempre, em suas folgas no trabalho, visitava sua tia Phasie em La Croix de Maufras. Detalhe: era maquinista de uma locomotiva que carinhosamente chamava de “La Lison”. Essa máquina tinha um controle sobre sua vida e era responsável por algumas de suas manias. Quais seriam? Jacques Latier é homem tímido, trabalhador. Ele sempre ouvia sua tia dizer que seu marido, Misard, tentava envenená-la para herdar mil francos.  Ela dizia a Jacques que o dinheiro estava tão bem escondido que Misard nunca iria encontrá-lo. O sobrinho ouvia tudo, mas focava o seu olhar em Flore, sua prima. Nessa noite em que estava na casa de sua tia, Jacques encontra sua prima Flore, que sempre foi apaixonada por ele, e os dois se beijam. Jacques se afasta, por sofrer de um impulso irresistível de matar mulheres que o despertam. Jacques é torturado pelo seu desejo de matar. Ele quer assassinar Flore, e este desejo latejante está conectado com seu desejo sexual. Para vencer esse desejo, Jacques se afasta de Flore.

 

Após o encontro com a prima, ele caminha sozinho ao longo dos trilhos, transtornado pelo desejo reprimido, quando o trem expresso de Paris passa e ele vê um flash.  Um homem com uma faca levantada para matar outro homem e outra figura que segura as pernas da pessoa prestes a ser morta. Quem será? Jacques acidentalmente encontra Misard (marido de sua tia Phaise) com feições estranhas. Misard tinha acabado de ver o corpo de um homem estendido sobre os trilhos da ferrovia. A polícia chega ao local onde estava o cadáver para fazer a perícia. Observam que a vítima, além de jogada, tinha um corte profundo na garganta. O desejo de Jacques de matar se intensifica. Algo incontrolável. A princípio, o crime parece ter sido um latrocínio, ou seja, roubo seguido de morte.

A vítima é reconhecida. Durante as investigações, circulam informações de que a vítima tinha comportamentos pouco recomendáveis para o cargo que ocupava, pois não apenas seduzia jovens vulneráveis, mas também usava a violência para satisfazer os seus básicos instintos. Uma empregada doméstica que trabalhou na casa da vítima fugiu e sucumbiu a lesões sofridas. Isso faz de Cabuche, seu noivo, um bode expiatório conveniente e um provável suspeito pela morte dessa vítima misteriosa e ao mesmo tempo poderosa. Suspeitos são apresentados. Alguns, como já disse, por conveniência. Em outras palavras, a Justiça precisa achar um criminoso e dar um fim a toda essa história. Mas infelizmente a Justiça não consegue provar nada. Tudo fica em suspenso. Querem saber como toda a trama se resolve?

 

“A Besta Humana” descreve não só os instintos assassinos, mas a corrupção do sistema legal e judicial do século XIX na França. Ao perceber toda essa precariedade institucional, Émile Zola contempla o coração das trevas em seu personagem Jacques Lantier, um funcionário da ferrovia que vivia no limiar entre as fronteiras da paixão sexual e o desejo de matar.

 

“Aquele homem a quem não havia conseguido abater e que apenas os escrúpulos da sua educação e as ideias de humanismo lentamente adquiridas e transmitidas há meses poupavam. E agora, a despeito do próprio interesse, arrebatado pela hereditariedade da violência, pela necessidade que, nas florestas primitivas, lançava besta sobre besta. Quem mata de forma racional? Mata-se apenas por impulso do sangue e dos nervos, vestígio das antigas lutas, por necessidade de viver e pela alegria da força. Sentia agora apenas uma lassitude saciada, esforçava-se, procurava entender sem nada encontrar, no fundo da paixão satisfeita, espanto e amarga tristeza do irreparável. Ver a infeliz, que continuava a olhá-lo com a mesma interrogação aterrorizada, se tornou atroz. Quis desviar os olhos e teve a brusca sensação de que outra figura branca se erguia ao pé da cama. Seria um desdobramento da morta?” (pg331) “O pavor o deixou gelado, perguntando-se o que fazia permanecendo tanto tempo naquele quarto. Havia matado, estava satisfeito, farto, bêbado com o terrível vinho do crime. Tropeçou no canivete aberto que havia ficado no chão e fugiu, desceu aos trambolhões a escada, abriu a porta principal da entrada como se a menor não fosse suficientemente larga e se lançou lá fora, na noite escura como breu, onde seu galope furioso se perdeu. Não olhou para trás, para a casa capenga, plantada de viés à beira da linha, deixada escancarada e desolada em seu abandono mortal” (pg331)

 

“A Besta Humana”, de Émile Zola, é um desses livros que levará você, leitor, a um passeio no coração das trevas em que reside o monstro adormecido de todo ser humano. Por isso, recomendo este livro, que merece um lugar na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< O sol é para todos Uma praça em Antuérpia >
A besta humana
autor: Émile Zola

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