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Uma praça em Antuérpia

Certa manhã, eu estava como sempre na livraria olhando os lançamentos quando me defrontei com o livro “Uma Praça em Antuérpia”, de Luize Valente. Confesso que passei batido. Não por uma atitude indiferente, mas pensando nos inúmeros livros na minha mesa de cabeceira, que são muito bons também e tenho que ler. E como livreiro que sou, o que não me falta são bons livros para ler.

Até que um dia uma cliente me pediu esse livro. Ela me contou que era um presente para o seu avô e o motivo tinha um cunho simbólico pelo fato de ele ser judeu e ter conseguido um visto para Portugal por meio do embaixador Aristides de Sousa Mendes e depois ter vindo para o Brasil. Eu, que li a biografia de Salazar brilhantemente pesquisada e escrita por Filipe Ribeiro de Meneses, que inclusive está resenhado aqui no blog, pensei: “Opa! Já me interessei”. Meu interesse veio a partir do diplomata português que salvou das mãos dos nazistas mais de trinta mil judeus e outros refugiados, sem autorização das autoridades de Lisboa, leia-se Salazar. Tal decisão unilateral desse diplomata permitiu a fuga de centenas de refugiados judeus através da Espanha e Portugal. O livro não é um relato sobre as peripécias desse diplomata.

A quem se interessar pelo tema, recomendo o livro: “Quixote nas Trevas: o embaixador Souza Dantas e os refugiados do nazismo”, do escritor Fábio Koifman, que é muito melhor do que a biografia feita pela Wikipédia sobre o diplomata em questão. A da Wikipédia parece ter sido feita por um ex-agente da PIDE, a polícia política de Salazar. Luize Valente reserva apenas uma pequena parte sobre ele. Mas já posso adiantar que é um livro brilhante.

O livro é cheio de pequenas sutilezas e o roteiro, se fosse adaptado para o cinema, concorreria a um prêmio facilmente. A história é engenhosa e escrita de uma forma perspicaz, sem complicações, ou seja, numa linguagem direta, sem floreios, que vai ao ponto.

Contar a vocês como esse livro chegou às minhas mãos, já renderia uma história. Se eu pudesse sintetizar com uma frase o enredo de “Uma Praça em Antuérpia”, diria que o “knorr” do livro reside na dificuldade que temos em administrar nossas desilusões.  Deixo com vocês essa minha impressão para futuros debates aqui no blog.

Vamos à história?

Luize Valente recria e reinventa fatos e personalidades históricos, inserindo a ficção.  Numa madrugada do réveillon de 1999 para 2000, ou seja, do século XX para o XXI, Olívia revela sua história para sua neta Tita, passo a passo, momento a momento de sua vida.

A história começa numa quinta (que é uma espécie de chácara em Portugal) situada nos arredores de São Lourenço de Sande, no município de Guimarães, norte de Portugal. Manuel, que sempre se mostrou um apaixonado pela esposa Josefina, encontra-se radiante em ser pai. Apesar do inverno rigoroso passado, o verão favorecia a uma grande colheita de uvas.

Tudo caminhava para o êxito total. Sua vida estava prestes a mudar. Sua mulher, quando entra em trabalho de parto, consegue dar à luz duas filhas gêmeas com sucesso, mas a saúde dela não resiste. Falece. Manuel não aceita a morte da mulher e rejeita as suas filhas gêmeas, Clarice e Olivia. Não consegue demonstrar amor pelas filhas. O resultado de toda essa indiferença acaba quando a sogra, Dona Bernarda, resolve criar as netas. Nunca faltou nada a elas. Apenas o afeto do pai. Manuel não conseguiu aceitar a perda da mulher e, de um modo só, seu responsabilizava as meninas pelo seu infortúnio.

O único momento em que as meninas, já adolescentes, conseguem beijar o pai foi em seu leito de morte, quando ele parte dessa vida para se encontrar com Josefina, a mulher de sua vida, no mundo dos mortos. A vida segue, as meninas ficam mocinhas, e simplesmente lindas. Olívia casa-se com Antônio, e acabam se mudando para Lisboa. Salazar conseguiu fazer com que Portugal não sentisse as crises mundiais de 1929 e dos anos 1930, graças a uma política fiscal dura. No entanto, a vida democrática de Portugal sofre um imenso revés. Uma ditadura se instaurava nesse país.

Anos depois, após a morte de Dona Bernarda, que foi mãe, pai e avó dessas meninas, chega a vez de Clarice partir para o mesmo destino, ou seja, ao encontro do seu amor. Numa dessas coincidências da vida, ela encontra Theodor Zuskinder, um pianista que executava Schubert com uma beleza extraordinária, encantando-a. Os dois conversam após o recital e um amor à primeira vista começa a se desenhar. Os dois passam uma noite juntos. Mas o fato de ser judeu e comunista trazia a Theodor imensas dificuldades. Ele foge do país por achar que estava sendo perseguido pela polícia política. Após sua fuga, Clarice descobre que está grávida. E agora? Para evitar especulações maldosas causadas por sua gravidez, ela resolve sair de Lisboa. Se Theodor teve que fugir, ao menos deixou uma vida dentro dela. Esse era o seu consolo. Esse era o sentido de tudo aquilo. Vai para a cidade da Guarda, um lugar que tinha certas semelhanças com o norte de Portugal, onde vivera. E, numa dessas casualidades, escolhe morar nas proximidades da Porta d’El Rei, um antigo bairro judeu. Para evitar fofocas ou especulações, dizia a todos que o pai do filho que estava em seu ventre havia morrido. Uma solução que gerava compaixão de todos que moravam naquela pensão. Nessa pensão, um rapaz chamado Armando se rende aos encantos de Clarice. Um funcionário público de poucas amizades, um solitário compulsivo, econômico com as palavras e os sentimentos. Mas que resolve declarar seu amor de forma clara, coisa que fugia a seu modo de ser. Falava de maneira aberta que seria um excelente pai e que faria de tudo para fossem felizes juntos. Clarice absorve esse sentimento de maneira bem tranquila e elegante, dizendo que na verdade Armando era um irmão para ela, nada mais do que isso. E que guardava por ele um enorme afeto fraternal. Armando sente esse “não” na carne. Enquanto as coisas pareciam seguir o rumo totalmente previsível, quem aparece? Theodor, após passar por inúmeras situações de risco. E fica feliz ao saber, por Olívia, que sua mulher está grávida. Suas alegações para a fuga de Portugal eram mais do que eloquentes; afinal, não queria que Clarice vivenciasse as privações sofridas por ele. Os dois ficam juntos e abandonam Lisboa. Destino? Antuérpia, na Bélgica. Antônio, marido de Olivia, seguiria o mesmo rumo. Pensava no Brasil. E as gêmeas Clarice e Olívia separam-se.

Três anos se passaram desde que Clarice partiu com seu marido para Antuérpia. Agora ela tem um filho de três anos e mais um bebê na barriga. Assume a religião judaica e seus costumes sem perceber que, em 1939, na Alemanha de Hitler, as coisas iriam adquirir proporções ainda mais dramáticas. Theodor abandona o piano e resolve trabalhar com lapidação de diamantes. Enquanto a tensão aumenta na Europa, eles vão tocando a vida na Bélgica. Mas, a partir do momento em que as vitórias alemãs no campo de batalha vão acontecendo, vai ficando impossível viver na Antuérpia. E aí começa a peregrinação. Olívia tenta ajudar sua irmã de todas as formas. Ela espera Clarice em Portugal para conseguir o visto de entrada e viajarem para o Brasil. Mas, até o grande encontro com a irmã, percalços precisarão ser vencidos. E eu paro por aqui.

 

O livro é uma viagem histórica. Apesar de se passar na Segunda Guerra Mundial, a história é absolutamente atual, principalmente quando vemos a crise dos refugiados, corpos boiando em pleno Mediterrâneo, o desespero desses seres humanos de encontrarem lugares seguros.

Fica a pergunta: aprendemos após ouvirmos todos os relatos e o desespero das últimas duas Grandes Guerras Mundiais? Muito pouco. Essencialmente, continuamos os mesmos. Com algumas variações apenas de contexto.

Uma Praça em Antuérpia”, de Luize Valente é um romance histórico extraordinário, cheio de sutilezas. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.


Data: 08 agosto 2016 | Tags: Romance


< A besta humana Memórias de minhas putas tristes >
Uma praça em Antuérpia
autor: Luize Valente
editora: Editora Rizzoli

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