Livros > Resenhas

Um retrato do artista quando Jovem

Devo confessar que o primeiro livro que li de James Joyce foi Ulisses, tradução de ninguém mais ninguém menos que Antônio Houaiss, ou seja, sem sombra de dúvida, nada para dar errado. Mas deu. Eu li esse livro duas vezes, não entendi quase nada e me senti uma besta quadrada. E olhe que não foi por falta de tentativa. Eu tentei. Sabia que havia algo que eu não conseguia acessar. Talvez má concentração ou burrice mesmo. Sabia que o problema não estava no livro, mas estava na minha (quem sabe?) imaturidade ou minha incapacidade. O livro em vários momentos me surpreendia, mas não conseguia amarrar os fios da meada do romance. Havia lido na idade de 30 anos. Enfim, seja qual for a razão, eu não consegui entendê-lo. Mas desistir é um verbo que não cabe no meu dicionário pessoal. Posso até demorar, mas desistir, jamais.

Talvez se eu tivesse lido “Um retrato do artista quando jovem”, de James Joyce, eu poderia ter lido Ulisses com menos problemas. Como eu farei em breve. O prefácio desse livro escrito por Karl Ove Knaugard (autor resenhado aqui no site) me facilitou e muito a leitura.

James Joyce foi um dos escritores mais influentes do século XX. Ele nasceu em Dublin em fevereiro de 1882, filho de John Stanislau Joyce e Mary Jane Murray. Seu pai foi aquele típico homem que havia tentado tudo na vida, profissionalmente falando. Negócios de destilaria, política e cobrança de impostos, política, mas em todas essas tentativas ele foi malsucedido. O resultado de tudo isso foi a pobreza, muito embora tentasse manter aparência de classe média.

Joyce foi educado na religião católica romana. Depois de se formar, resolveu se tornar escritor. Viajou para Paris, trabalhando como jornalista e professor. Voltou a Dublin para cuidar de sua mãe que estava muito doente. Houve um ponto de virada na vida de James Joyce que foi quando conheceu o grande amor de sua vida, Nora Barnacle. Eles se apaixonaram e seis dias depois já estavam casados. Foi no dia 16 de junho, que se tornou a data especial para ele, a data que ele usaria para a cronologia de Ulisses. Hoje os fãs de Joyce no mundo inteiro comemoram o dia 16 de junho como “Bloomsday”.

O aspecto mais importante do livro “Um retrato do artista quando jovem” está no fluxo de consciência de Joyce, um estilo em que o autor transcreve diretamente os pensamentos e sensações que passam pela mente de um personagem. E esse livro é a história do desenvolvimento da mente do personagem Stephen Dedalus.

O romance começa com as primeiras memórias de Stephen Dedalus, quando ele tinha cerca de três anos de idade. As linhas fragmentadas são de uma história de infância e de uma canção infantil, e estão ligadas a associações familiares, percepções sensoriais e conversas. Na cena de abertura, Joyce nos apresenta a gênese da percepção e interpretação do futuro de um artista.

Quando passa da infância, Stephen descreve seus dias no Clongowes Wood College, um internato jesuíta para meninos. E aqui Joyce se concentra em alguns incidentes importantes que afetaram a personalidade de seu personagem. O primeiro: Stephen é empurrado para dentro de um poço aberto por um colega de classe agressivo. O segundo momento é quando ele desenvolve uma febre que o confina em uma enfermaria da escola. O terceiro é quando ele, na volta à escola, é convidado a sentar-se com os adultos à mesa do jantar. Essa é uma ocasião muito feliz em sua vida. Ele assiste a uma discussão política acalorada, o que o deixa confuso sobre as questões de religião e política no mundo adulto.

A discussão política travada na mesa da refeição prova para Stephen que o mundo adulto é tão imperfeito e cruel quanto seu próprio mundo pequeno. Ele fica ainda mais desiludido quando descobre que a comunidade clerical contém sua própria forma de crueldade hipócrita. O motivo de tamanha discussão deve-se à morte de Charles Parnell, líder do Partido Nacionalista Irlandês. Esse é um tema recorrente no livro, leia-se nacionalismo irlandês.

Quando volta à escola, Stephen acidentalmente quebra os óculos e não consegue concluir o trabalho de aula. Recebe uma punição injusta do diretor, mas depois, graças a um amigo, consegue desfazer a injustiça a que foi submetido. Graças a esse incidente, ganha uma autoconfiança saudável e acaba obtendo respeito entre os amigos de classe.

Certa vez, ao passar alguns dias em sua casa, se depara com problemas financeiros de seu pai, o que torna impossível ele voltar a Clongowes Wood, sua escola. As consequências desse problema financeiro da família fizeram-no mudar de colégio. Dessa vez um colégio também jesuíta de qualidade de ensino inferior, o Belvedere College. Nesse colégio, ele descobre a escrita e consegue se distinguir dos demais colegas, sendo inclusive premiado, isso sem contar que também se distingue como ator em sua peça de escola.

O seu crescente interesse pela literatura faz com que os seus valores religiosos entrem em xeque. As consequências se dão mediante o isolamento, intensificado por causa de uma viagem que faz com seu pai a Cork, onde descobre ainda mais coisas sobre as fraquezas do pai.

A situação financeira familiar mexe com Stephen, que sente certo enfado por Dublin. Sua fé na religião católica começa a dar sinais de colapso, e seus laços culturais começam a se perder. Certa vez, passeando pela cidade, passa por um bordel. Ele encontra um consolo momentâneo em uma prostituta de Dublin. Na época, ele tinha quatorze anos e essa foi a sua primeira experiência sexual.

Logo após ter relações sexuais com uma prostituta, Stephen Dedalus submete-se a um retiro espiritual de três dias. Para aqueles que nunca fizeram, é uma espécie de cursilho que a Igreja católica promove (eu já fiz alguns retiros espirituais). Durante esse tempo, a culpa e o remorso calam fundo em sua alma. Durante as homílias do retiro, Stephen acredita que o padre capuchino Arnal estava falando diretamente para ele. Acaba se confessando e como promessa resolve retomar a fé através de uma reforma moral e se dedica a uma vida de pureza e devoção. Para isso ele se dedica a serviços religiosos. Os diretores da escola, vendo o envolvimento espiritual de Stephen, propõem que ele entre no sacerdócio.

Apesar de pensar sobre essa possibilidade, Stephen ainda se sente atormentado pelos desejos carnais. Por saber que tinha uma natureza pecaminosa inerente, ele rejeita o convite da vocação religiosa. Quando entra na universidade, entende que pertencia a uma outra estirpe e decide moldar o seu destino sendo um artista. Sua decisão de abandonar uma vocação religiosa o faz perceber que agora ele é livre − livre para perseguir os prazeres da vida através da arte.

Naquele dia, Stephen descobre com sua irmã que a família se mudará − mais uma vez por razões financeiras. Ansiosamente aguardando notícias sobre sua aceitação na universidade, Stephen vai dar um passeio na praia, onde observa uma jovem caminhando à beira-mar. Ele fica impressionado com a beleza dela e percebe, em um momento de epifania, que o amor e o desejo de beleza não devem ser uma fonte de vergonha.  Ele  resolve viver sua vida ao máximo e promete não ser restringido pelos limites de sua família, nação e religião.

“Estava só. Despercebido, feliz e perto do coração selvagem da vida. Estava só e era jovem e disposto e de coração selvagem da vida, só em meio a um deserto de ar selvagem e águas salgadas e de uma colheita marinha de conchas e emaranhados e velado sol cinzento e figuras de roupas leves e alegres, de crianças e moças e vozes de crianças, de moças pelo ar. Uma moça estava à sua frente em meio ao regato, imóvel e só, mirando o mar. Parecia alguém que a mágica tivesse transformado em imagem de estranha e linda ave marinha. Suas longas pernas nuas e esbeltas eram delicadas como as da cegonha e puras, a não ser onde um rastro esmeralda de algas se tinha marcado como sinal sobre a pele. Suas coxas, mais cheias e do tom suave do marfim estavam nuas quase até o quadril, onde as alvas franjas da roupa de baixo eram como penugens de macias plumas brancas. Sua saia azul-ardósia estava atrevidamente presa na cintura e se abria em caudas atrás dela. Seu peito era de ave, suave e exíguo, exíguo e suave como o peito de uma pomba de penas negras. Mas os longos cabelos claros eram de menina: e de menina, e tocado pelo encanto da beleza mortal, seu rosto.

 Estava só e imóvel, mirando o mar; quando sentiu sua presença e a adoração dos olhos dele, os olhos dela se viraram para ele suportando quietos sua mirada, sem vergonha e sem vaidade. Por muito tempo sustentou seu olhar e então quieta retirou o olhar do dele e baixou os olhos para a água, delicadamente agitando a água com o pé daqui para lá. O primeiro ruído vago da água que se movia delicada rompeu o silêncio, baixo e vago e sussurrava, vago como os sinos do sono; daqui para lá; e uma flama leve tremia o rosto dela.

- Santo Deus! – gritou a alma de Stephen, num rompante de alegria profana. (pg 208, 209)

Stephen se muda para a universidade, onde desenvolve uma série de amizades fortes e é especialmente próximo de um jovem chamado Cranly. Em uma série de conversas com seus companheiros, Stephen trabalha para formular suas teorias sobre arte. Enquanto ele depende de seus amigos como ouvintes, ele também está determinado a criar uma existência independente, liberada das expectativas de amigos e familiares. Ele se torna cada vez mais determinado a se libertar de todas as pressões limitantes e, eventualmente, decide deixar a Irlanda para escapar delas. Como seu homônimo, o mítico Dédalo, Stephen espera construir asas sobre as quais ele possa voar acima de todos os obstáculos e conseguir uma vida como artista.

Na sua vida universitária, Stephen apresenta-se como uma pessoa antissocial e mais preocupado em formar um pensamento do que seguir o pensamento alheio, principalmente o pensamento político. Ele é mais introspectivo, resiste ao pensamento patriótico cego, muito embora continue respeitando a fé católica. Através de conversa com amigos e um professor, Stephen desenvolve sua própria teoria estética da arte baseada na teoria de Aristóteles e Tomás de Aquino:

“...O desejo e a repulsa excitados por meios estéticos impróprios não são de fato emoções estéticas, não apenas por serem cinéticos, mas talvez porque não passam de sensações físicas.”(pg 252)

“Para cobrir apreensões estéticas de todo tipo, provenham elas da visão ou da audição ou de qualquer outra apreensão. Essa palavra, apesar de vaga, é clara o suficiente para manter afastados o bem e o mal que excitam o desejo e repulsa. Ele quer dizer certamente uma estase e não uma cinese. E que tal o verdadeiro? Ele produz também uma estase na mente. Você não ia conseguir escrever o seu nome na hipotenusa de um triângulo reto....

...Estática, portanto – disse Stephen, – Platão, acredito eu, disse que a beleza é o esplendor da verdade. Não acho que isso queira dizer alguma coisa, mas o verdadeiro e o belo são relacionados. A verdade é contemplada pelo intelecto que é apaziguado pelas relações mais satisfatórias do sensível. O primeiro passo na direção da verdade é compreender o próprio ato de intelecção. Todo o sistema filosófico de Aristóteles repousa no livro da psicologia e ele, eu acho, repousa na sua declaração de que o mesmo atributo não pode, simultaneamente e na mesma conexão, pertencer e não pertencer ao mesmo sujeito. O primeiro passo na direção ao belo, é compreender o próprio ato de apreensão estética.” (pg 254, pg 255)

Stephen propõe que o bem é o que deve ser desejado, e o verdadeiro e o belo são os mais persistentemente desejados. Embora Stephen admita que o que é belo para uma pessoa pode não ser belo para outro, ele enfatiza a beleza universal. Por fim, ele explica o momento em que o indivíduo compreende e aprecia essas qualidades de um objeto de arte, o que a sua beleza proporciona ao observador uma experiência espiritual que tem sido referida como “o encantamento do coração”.

Lynch, amigo de Stephen, está confuso com a definição de arte de Stephen, e assim continua a explicar a diferença entre arte inferior e superior:

“Quando falamos de beleza no segundo sentido do termo, o nosso julgamento é influenciado em primeiro lugar pela própria arte e pela forma dessa arte. A imagem, fica claro, deve se interpor entre a mente e os sentidos de outros. Se você mantiver isso na memória, vai ver que a arte necessariamente se divide em três formas progredindo de uma a outra. Essas formas são: a forma lírica, forma em que o artista apresenta a imagem numa relação imediata consigo; a forma épica, a forma em que ele apresenta sua imagem em relação mediata consigo e com os outros; a forma dramática, forma em que ele apresenta sua imagem em relação imediata com outros.” (pg261,pg 262)

Stephen conclui que o dever do verdadeiro artista é afastar-se de sua criação completa e permanecer "indiferente" a ela, permitindo-lhe viver uma vida própria.

“O artista como Deus da criação, permanece dentro ou atrás ou além ou acima de sua artesania, invisível, purgado da existência indiferente, aparando as unhas.” (pg 263)

Em “Um retrato do artista quando jovem”, o leitor aprende através das experiências particulares de Stephen Dedalus como um artista percebe o seu entorno, entendendo como suas visões sobre a fé, família e país frequentemente entram em conflito com as prescritas para ele pela sociedade. Como resultado, o artista se sente distanciado, é mal interpretado por outros como a atitude orgulhosa de um egoísta. Assim, o artista, já se sentindo isolado, está cada vez mais consciente de um certo isolamento social.

Os impulsos sexuais de Stephen o confundem. Ele é jovem, inteligente, sensível e eloquente, mas também possui sentimentos sexuais urgentes, dúvida e insegurança – todas as emoções universais que são experimentadas durante o percurso de sua adolescência. James Joyce revela esses tumultuosos sentimentos adolescentes através de uma técnica de narrativa chamada fluxo de consciência. Leva-nos para o mundo consciente e subconsciente, mostrando-nos as realidades objetivas e subjetivas de uma determinada situação. Para isso, ele usa Stephen Dedalos para nos ajudar a explorar as profundezas do coração humano.

Esse romance é narrado, na maior parte, no ponto de vista onisciente e obedece à forma lírica e épica de expressão e também ao modo dramático. Os pensamentos, associações, sentimentos e linguagem de Stephen (tanto cerebrais como verbais) servem como uma trilha que o leitor percorre com Stephen Dedalos sobre a dor, os prazeres da adolescência, bem como as experiências emocionantes de descobertas sexuais, intelectuais e espirituais.

As experiências estéticas de Stephen Dedalo ganham um componente próprio a partir da experiência católica de Joyce, quando Stephen de repente entende a natureza de uma coisa através de uma ideia, uma palavra, uma situação – estão associadas a uma revelação. Joyce chama esses momentos de epifanias.

Essas epifanias de Stephen aparecem através de imagens, sons, lembranças, cheiros, toques − tudo isso ganha uma ênfase. Outros temas se encontram no romance, como o nacionalismo irlandês e o catolicismo, que tentam obscurecer a sua vida literária. A escolha do sobrenome Dédalos tem a ver com o mito de Dédalo e Ícaro. Dédalo, o arquiteto que projetou um labirinto elaborado no qual o rei planejava confinar o monstruoso Minotauro. Por uma má sorte acabaram presos no labirinto do qual foram forçados a inventar. Precisam sair dali. Stephen Dédalos precisa fugir de Dublin.

Assim como o seu homônimo mítico Dédalo – “o grande artífice”, Stephen está preso em um labirinto que consiste nos caminhos feitos pelos outros, como família, religião e nação. Ele sabe que ao seguir os caminhos dos outros não haverá saídas, não haverá satisfação. Existem várias saídas falsas do labirinto, momentos que Stephen se sente exaltado e livre, mas nenhuma é a rota de fuga. No final do romance, Stephen está subindo imaginativamente – fugindo da Irlanda para um futuro de liberdade artística irrestrita.

“Um retrato do artista quando Jovem” é considerado um exemplo de Bildungsroman, um termo alemão que significa romance de formação, que descreve uma história da educação e crescimento intelectual de um jovem. Podemos ver que ao longo de sua vida sempre cultivou um espírito independente, sempre fiel aos seus princípios e aos seus instintos artísticos. Para isso, ele tem que romper com a família, cultura e a religião. Ele deve criar algo a partir da sua história pessoal, de sua própria experiência de vida, e estes devem estar em conformidade com a sua definição de beleza. Ele sabe que qualquer influência o afastará do verdadeiro chamado e é seu dever resistir ao que vem de fora, focar em si próprio e nos seus próprios valores. Stephen está preparado para se exilar e viver a sua experiência artística solitariamente.

“Um retrato do artista quando sovem”, de James Joyce, é um romance para os fortes. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 17 abril 2020 (Atualizado: 17 de abril de 2020) | Tags: Romance


< Breve Romance de Sonho A bela de Odessa ( Saga de uma família judia na Revolução Russa) >
Um retrato do artista quando Jovem
autor: James Joyce
editora: Penguin Companhia
tradutor: Caetano W. Galindo
gênero: Romance;

compartilhe

     

você também pode gostar

Resenhas

Norwegian Wood

Resenhas

Deixa Comigo

Resenhas

As benevolentes