Breve Romance de Sonho
Arthur Schnitzler (1862-1931) não é um nome familiar neste site, mas fiquem certos de que outros romances desse autor vão aparecer por aqui. Nascido em Viena, filho de um laringologista judeu eminente, tornou-se médico, mas deixou a profissão por volta de 1893, após a morte de seu pai. O único ramo da medicina que o interessava era a psiquiatria. A recompensa (segundo dizem) era na psiquiatria. A recompensa mais proveitosa de sua prática eram pacientes do sexo feminino, jovens, bonitas e eminentemente seduzíveis. Sofreu com o antissemitismo, e acabou se transformando em um dos grandes escritores austríacos. Seu grande tema era o amor sexual, principalmente suas raízes psicológicas.
Certa vez, quando enviou uma mensagem de parabéns pelo seu aniversário de 50 anos, Freud expressou espanto por Schnitzler acumular “conhecimento secreto”, o tipo de insight psicológico que ele, Freud, só pôde obter através de pesquisas trabalhosas. “Por muitos anos”, escreveu ele, “tenho estado ciente do amplo acordo entre você e minhas concepções de alguns problemas psicológicos e eróticos”.
“Breve Romance de Sonho”, de Arthur Schnitzler, publicado em 1926, foi descrito como uma história de um homem através das profundezas ocultas da própria psique. O livro é ambientado na Viena de fin-de-siécle. A história de Schnitzler expõe as hipocrisias da cultura burguesa, explorando os desejos, fantasias e paixões reprimidas sob a superfície de um casamento aparentemente feliz. O livro teve sua versão no cinema de Stanley Kubrick, com título diferente: “De olhos bem fechados”. Eu adorei a leitura que Kubrick deu ao livro. Quanto ao livro, devo dizer que é maravilhoso. A história se passa no período relativamente breve de 48 horas.
Vamos a história?
Fridolin é um médico bem-sucedido de 35 anos que vive com a sua esposa Albertine e sua jovem filha. Eles estão em um baile de máscaras e cada um deles sentiu certo frisson sexual causado pelas atenções de um estranho mascarado. Uma noite, Albertine relata que foi abordada por um estranho com sotaque polonês, cujo comportamento inicialmente a encantou, mas depois a perturbou usando a palavra errada.
“Eu já o tinha visto pela manhã, respondeu Albertine, “subindo apressado as escadas do hotel com sua valise amarela. Ele me examinara de passagem, mas somente se deteve alguns degraus adiante, voltando-se para mim: nossos olhares tinham que se encontrar. Não sorriu; antes, pareceu-me que seu semblante ensombreceu-se, e o mesmo deve ter acontecido comigo, que me senti tocada como nunca. Na praia passei o dia inteiro perdida em devaneios. Se ele me chamasse – julguei então –, não teria podido resistir. Acreditava-me capaz de tudo, pronta para abrir mão de você, da criança, de meu futuro; acreditava estar já decidida e, ao mesmo tempo – será que você poderia me entender? – Você me era mais caro do que nunca. Justamente naquela mesma tarde, você há de se lembrar, conversamos intimamente sobre milhares de coisas, como não fazíamos havia muito tempo: sobre o nosso futuro, nossa filha. Ao pôr- do- sol estávamos você e eu sentados na sacada quando, lá embaixo na praia, ele passou sem erguer os olhos, fazendo-me feliz por vê-lo. Eu, porém, acariciei sua testa, beijei seus cabelos, e, em meu amor por você, muito havia também de uma dolorosa compaixão. À noite, eu estava muito bonita, você mesmo disse, e levava uma rosa branca no cinto. Talvez não por coincidência, o estranho e seus amigos sentaram-se próximo de nós. Ele não olhou para mim, mas eu brincava com a ideia de me levantar, ir a sua mesa e dizer-lhe: aqui estou eu, que tanto esperei, meu amado; leve-me com você. Nesse instante, trouxeram-lhe o telegrama; ele o leu, empalideceu, sussurrou algumas palavras ao oficial mais jovem e, dirigindo-me um olhar enigmático, deixou o salão” (pg 8)
Após essas confissões, sua esposa se levanta, beija Fridolin e sugere que eles sempre compartilhem essas experiências sexuais. Fridolin secretamente acha que foi um erro contar a Albertine sobre fantasias eróticas anteriores. Momentos depois, Fridolin é chamado para socorrer um paciente muito mal de saúde. Ele sai de casa às pressas. Mas, quando Fridolin entra no quarto, ele já estava morto: Marianne, a filha de 26 anos que cuida do pai há anos, está sentada inconsolável na cama do pai. Quando ela vê Fridolin, ela fala coisas triviais. Subitamente ela faz uma declaração de amor escancarada por Fridolin, que sempre suspeitou que ela fosse apaixonada por ele. Ele a ajuda e dá um beijo em sua testa, e secretamente pergunta se o morto estaria observando toda a cena. Os parentes chegam para o velório. Não há indícios de que isso seja um sonho.
Pois bem, Fridolin não se sente à vontade de voltar para casa. Ele anda pelas ruas estreitas iluminadas por lâmpadas de gás quando é surpreendido por um grupo de estudantes que o conhece e o desafia. Um deles quer brigar com ele. Mas ele pensa nas consequências caso viesse a topar uma briga com aquele rapaz e resolve seguir. Ele chega a um beco escuro e encontra uma prostituta de 17 anos, chamada Mizzi, o leva para casa. Fridolin ouve suas palavras. Mizzi, que talvez sempre sonhasse que alguém fizesse isso por ela, ou seja, escutá-la, fica impressionada e não aceita o dinheiro. Quando ele lhe dá um beijo de despedida, ela se sente lisonjeada.
Ele entra em uma cafeteria e recebe os jornais. Lá encontra Nachtigall, um ex-colega polonês que havia abandonado a faculdade de medicina e agora está batalhando como músico. Os dois conversam até que Nachtigall o convida para ir a uma festa particular. Ele iria tocar num baile à fantasia onde mulheres nuas também estariam presentes. No entanto, ele teria que usar uma venda nos olhos, para não saber onde essa festa ocorreria. Ele desperta o interesse de Fridolin, que lhe pede que o apresente à sociedade. Mas Fridolin precisa de uma fantasia. Algumas fantasias são mostradas, e ele escolhe a de monge e uma máscara. Ele sobe numa carruagem e segue em direção à festa.
O baile secreto por si só não tem nada a ver com Fridolin, mas ele logo se torna o centro das atenções. A senha para entrar no baile era “Dinamarca”, para sua surpresa, foi o lugar de sua fantasia de férias. Há algo de ritualístico no baile. Algumas mulheres estão nuas, mas mascaradas, e se juntam aos homens, que estão fantasiados. Fridolin, de acordo com a narração, não leva nada tão a sério e vê-se como alvo de piadas. Até que surge uma mulher e o avisa que ele está em perigo. Ela menciona a morte recente de uma mulher, fato que se tornou conhecido pelos jornais. Ele não leva nada daquilo a sério. Até que a mulher que disse que ele estava correndo perigo foi descoberta por ter dito a ele. E um fato estranho acontece:
“Os demais mascarados acorreram todos, as portas de ambos lados se fecharam. Em seu hábito de monge, Fridolin estava sozinho em meio a coloridos cavaleiros.
“Tire a máscara!”, foram logo gritando alguns. Como se para proteger-se, Fridolin mantinha os braços estendidos à frente. Ser o único com o rosto descoberto em meio a tantos mascarados ter-lhe-ia parecido mil vezes pior do que se ver subitamente nu entre pessoas vestidas. Com voz firme, disse: “ Se algum dos cavalheiros sente-se ofendido em sua honra com minha presença, estou pronto a oferecer-lhe a reparação de forma habitual. A máscara contudo, somente a retiro se todos os senhores fizerem o mesmo, cavalheiros”.
“Não se trata de reparação”, disse o cavaleiro vestido de vermelho, até então silente. “Trata-se de expiação”.
“Tire a máscara!”, ordenou novamente um outro, com uma voz mais aguda e insolente que lembrou a Fridolin o tom de um comando oficial. “O que o espera, queremos dizê-lo na sua cara, e não para uma máscara.”
Não vou despi-la, respondeu Fridolin o tom ainda mais incisivo. “E ai de quem ousar tocar-me.”
De súbito, um braço tentou agarrar-lhe o rosto, como se visasse a arrancar-lhe a máscara, quando, então, uma das portas se abriu, e uma das mulheres − Fridolin não poderia alimentar qualquer dúvida sobre qual delas − surgiu em trajes de freira, tal e qual ela a vira pela primeira vez. Atrás dela, no salão superiluminado, podiam-se ver as outras, mudas, um bando espavorido. A porta, no entanto, fechou-se de novo.
“Soltem-no”, disse a freira. “Estou pronta a resgatá-lo” (pg 52)
Depois de toda a tensão descrita, essa mulher pede para ele saia, mas Fridolin estava intoxicado por aquele corpo. Mas de nada valeu sua resistência, pois acaba empurrado para fora pelos seguranças daquele ambiente com o aviso de não contar a ninguém sobre a festa e o encontro. Ele é mandado de volta para a cidade na mesma carruagem que o trouxe. Quando ele chega em casa por volta das quatro da manhã, ele se pergunta se tudo não era um sonho.
Quando chega em casa, Fridolin entra furtivamente em seu escritório, onde se despe de sua fantasia de monge e a deixa no armário. Albertine está dormindo. Ela acorda e conta o seu sonho, um sonho erótico. Um oficial dinamarquês deitou-se com ela em um cenário atemporal, sentia-se relaxada, enquanto mais casais apareciam. Ela se sentia sonhando (como de fato estava sonhando dentro de um sonho).
O oficial dinamarquês deitou-se no prado com Albertine. Lá eles permaneceram em um quarto atemporal, enquanto mais e mais casais apareciam no caminho. No relato do sonho de Albertine, a presença de Fridolin não era bem-vinda. Contava os seus sonhos de olhos fechados como se estivesse ainda dormindo. Ele sentiu um imenso ódio por ela, uma mulher traiçoeira e infiel. Mas ao mesmo tempo, por mais que estivesse disposto a odiá-la, sentia uma imensa ternura. Ele a beija, e mesmo dormindo ela sentia com alegria a presença daquele beijo.
Na manhã seguinte, Fridolin vai visitar o amigo músico Nachtigal em sua pobre pensão, mas o porteiro diz que ele chegou de manhã com dois senhores, fez as malas e se dirigiu à estação de trem. Ele não foi voluntariamente. Fridolin devolve o capuz de monge à loja. Ele tenta ir à casa onde tudo aconteceu, mas é impedido pelo porteiro com uma carta, avisando que, caso ele persista com a investigação, coisas ruins podem acontecer. Ele mais tarde lê nos jornais que uma Baronesa D havia sido morta. Ele suspeita que ela deve ter sido a beleza que encontrou no baile de máscaras, e descobre que dois homens a levaram por volta das quatro da manhã ao necrotério. Só que, quando ele vai procurá-la, ele não pode identificá-la claramente, já que o rosto dela na festa estava coberto pela máscara.
Confuso, ele volta para casa e encontra a máscara que estava usando na noite anterior ao lado de Albertine em seu travesseiro. Ele conta com remorso sobre os eventos da noite passada. Albertine diz que os dois finalmente acordaram de um sonho. A manhã seguinte, como sempre, começa às sete horas com seu filho rindo.
“Breve Romance de Sonho”, de Arthur Shnitzler, se concentra em fantasias eróticas. Os dois personagens principais, Fridolin e Albertine, têm essas fantasias e desafiam a tentação, inconscientemente em um sonho (Albertine) ou muito próximo da realidade (Fridolin). A conclusão conciliatória mostra que a respectiva busca pelo estranho erótico pode provocar um movimento de purificação.
Arthur Schnitzler divide a novela nas áreas de vigília e sonho, mas na verdade não há uma separação. Mesmo estando acordado à noite, ele se pergunta se é um sonho tudo aquilo que vive. “Breve Romance de Sonho” é um romance psicológico, que se concentra nos desejos e fantasias interiores de um casal. E a fidelidade ou a infidelidade faz parte dessa história. Não nos causa perplexidade que Sigmund Freud, o fundador da psicanálise, tenha publicado em 1900, seu livro épico “A Interpretação dos Sonhos”. Uma das ideias contidas no livro é que os sonhos não são de forma alguma absurdos ou rastreadores de doenças mentais, mas em certa medida marcam a chave do inconsciente. Segundo Freud, os sonhos são realizações ocultas do desejo que transformam a psique em símbolos e, às vezes, em imagens grotescas. Instintos e desejos reprimidos na natureza quase sempre sexual de Freud podem se manifestar em sonhos.
“Breve Romance de Sonho”, de Arthur Scnitzler, merece um lugar de honra na sua estante.