Solar
Existem personagens desagradáveis em determinados livros que nos causam repulsa. No livro “Solar”, de Ian McEwan, Michael Beard, físico e vencedor do prêmio Nobel, é um desses tipos que se juntam à galeria de anti-heróis detestáveis.
Personagens desagradáveis trazem sempre uma marca em suas personalidades. E essa marca traz o riso do autor embutido neles. Podemos encontrar outros tipos desagradáveis na literatura, mas é bom que se diga que a vida nos apresenta muitas figuras desagradáveis que, quando mantemos o distanciamento necessário, provocam em nós a mesma sensação, o riso.
McEwan escolheu prender os leitores sob o olhar de Beard (apesar de a história ser contada na terceira pessoa). A história é claustrofóbica, pois nos encontramos presos dentro do apartamento imundo de Beard em Londres ou, pior ainda, dentro de sua mente nojenta, que constantemente fabrica racionalizações para justificar seu comportamento ultrajante.
Ficamos sabendo que Beard ganhou o Prêmio Nobel por um trabalho feito há muito tempo, e que desde então aproveitou sua reputação dando palestras e aulas, indo a conferências e simpósios. Porém, após alcançar o prêmio máximo da academia sueca, ele se encontra intelectualmente estagnado. Não faz nenhum trabalho sério durante duas décadas; ao invés disso, gasta suas energias mantendo uma vida amorosa agitada: dúzias de casos e cinco casamentos, (e) nenhum dos quais resultando em filhos, para o seu alívio.
No livro, o anti-herói foi premiado pela teoria chamada “Conflação Beard-Einstein”, que o levou ao sucesso. Seu porte físico e características pessoais podem ser resumidos da seguinte maneira: um homem baixo, gordo, de grandes apetites corporais e pouca autodisciplina, consome comida, mulheres e bebidas sem dar muita atenção às consequências.
Certa vez, Beard é convidado para uma hilária expedição ao Ártico, o que rende alguns momentos divertidos: como o horror sentido por ele ao entrar numa roupa de esqui; os desafios de urinar no Ártico, especialmente quando seu pênis fica preso no zíper de sua roupa; ou ao sofrer queimaduras e ser quase comido por um urso polar, por exemplo. Mas o melhor mesmo é a maneira como McEwan habilmente contrasta os ideais elevados dos viajantes com o egoísmo de Beard.
Na volta desta viagem ele encontra Aldous em sua casa. É assim que descobrimos que Patrice também tem um amante: Tom Aldous – um jovem físico do centro de pesquisa do governo onde Beard trabalha. Embora Aldous admita ter um caso com sua mulher Patrice, ele tenta persuadir Beard a ser sensato sobre a situação argumentando que eles deveriam deixar a rivalidade romântica de lado pelo bem da ciência e se tornar parceiros na busca por uma fonte de energia renovável. Tom Aldous é um homem sincero e simpático, preocupado com o aquecimento global, que tenta convencer o cínico e misantropo Beard a partilhar de sua preocupação, vestido com o roupão do mesmo após uma noite de sexo com a ex-mulher dele.
É nesse momento que o mestre McEwan revela que um simples acaso – uma brincadeira fora de hora, uma frase mal colocada, um mau humor, ou estar no lugar certo na hora errada, ou seja, fatores que não são possíveis de controlar, como um simples tropeção – pode acabar com a sua vida, ou o contrário, salvá-la. Em muitos de seus livros o autor explora eventos como esses. Para não deixar o leitor com água na boca saciarei só essa curiosidade, o restante fica para que se descubra em outros momentos.
Como eu estava dizendo, Tom Aldous – um admirador de Beard – convencia o nosso ganhador do Nobel a uma parceria na busca por fontes renováveis de energia. Mas o inesperado aconteceu, Tom Aldous tropeçou no tapete de urso polar na sala de estar, bateu com a cabeça na quina da mesa de vidro e morreu. E aí? Como ficamos? Como Beard vai se safar dessa?
Veremos que, durante o livro, ele não vai apenas trair cinco esposas e inúmeras namoradas, e enviar um inocente à prisão, ele vai também roubar os planos de outro cientista para impedir o aquecimento global e, com isso, tentará revertê-los em uma grande máquina de fazer dinheiro. Ou seja, o personagem acaba por incorporar tudo o que originalmente causou a crise da mudança climática: ganância, negligência e uma recusa teimosa em refletir sobre as consequências ou o futuro.
No entanto, o acaso o leva a uma aventura na pesquisa por energia solar. Ele se torna um especialista acidental sobre mudanças climáticas antropogênicas através de suas experiências como físico e de seu oportunismo, ao roubar idéias alheias. Beard agora se engaja em um programa de criar fotossíntese artificial.
Se o autor fala sobre mudança climática, mostra um tapete de urso polar em casa e alguém morre tropeçando nele, certamente depois disso Beard vai descobrir a solução para todos os eventos das alterações climáticas.
A fotossíntese artificial, a luz solar, a separação das moléculas de hidrogênio das de oxigênio, tudo isso pode ser usado para acionar células de combustível e fornecer energia limpa e barata. Toda essa tecnologia revolucionária se baseia no trabalho de Tom Aldous, embora Beard obviamente não dê os créditos ao jovem; ele quer que todos pensem que ele, o ganhador do prêmio Nobel, veio ao socorro de um mundo prestes a sofrer com o desastre do aquecimento global. A terra será salva, assim como sua carreira e sua conta bancária também, graças a uma usina de fotossíntese criada no Novo México.
Um narcisista de carteirinha, Beard não tem problemas em fazer a transição do físico desinteressado para o Messias da energia limpa. Em uma conferência repleta de empresários céticos, McEwan nos diz: “Agora a estupidez planetária era o seu negócio”.
O livro “Solar” adota um viés satírico quando trata do assunto mudança climática, e o resultado não tem nada de heroico. McEwan faz uma comédia solar – utilizando humor negro do lado escuro da lua. Ele não nos dá a vã esperança de que o planeta será salvo por um surto repentino de bom senso e virtude ambiental. Então, para evitar a asfixia do “bafo quente da civilização”, nós vamos ter que aproveitar a natureza humana com todo seu egoísmo e falsidade. Em outras palavras, nós vamos precisar de Michael Beard.
O livro vale muito a pena ser lido. O escritor mais uma vez com seu humor fino, seu humor “British”, nos revela a desesperança com a civilização.