O Cemitério de Praga
“Se os mundos ficcionais são tão confortáveis, por que não tentar ler o mundo real como ficção?”; “Ou, se os mundos ficcionais são tão pequenos e ilusoriamente confortáveis, por que não tentar criar mundos ficcionais tão complexos, contraditórios e provocantes como o mundo real?” – se pergunta Umberto Eco, no capítulo 6, de “Seis Passeios no Bosque da Ficção”.
“O Cemitério de Praga”, novo romance do autor publicado há um ano na Europa e na América do Sul, já é um best-seller na Itália, Espanha, Argentina e México. Numa espécie de apêndice no final do livro, chamado “inúteis esclarecimentos eruditos”, Eco nos diz que os personagens principais dessa história são pessoas que de fato existiram, sendo apenas o protagonista uma ficção. Trata-se de uma colagem com personalidades reais como Alexandre Dumas, Victor Hugo, Garibaldi, Giuseppe Mazzini, Cavour, Sigmund Freud e muitos outros menos conhecidos.
Os principais acontecimentos históricos relatados no livro – incluindo a unificação da Itália, os “Protocolos dos sábios de Sião”, o caso Dreyfus e a guerra franco-prussiana – formam o pano de fundo da carreira de um falsificador que começa a escrever um diário para reconstruir a sua memória falha. Simone Simonini é o escritor principal do diário, a primeira voz, que recebe a colaboração do Abade Dalla Piccol. Simone Simonini é uma figura que sofre de transtorno dissociativo de identidade.
A segunda é uma voz mais confiável cuja procedência não é discernível. Eco tenta criar dessa vez um personagem o mais desprezível possível. Tanto que o livro começa com um discurso retórico contra tudo e contra todos. Então, se você for judeu, alemão, francês, italiano ou gay, as páginas de abertura poderão ofendê-lo, e muito. Os estereótipos preconceituosos de Simonini ou do Abade Dalla Piccola vão sendo jogados, e o leitor começa a perceber o caráter verdadeiramente deformado do protagonista. É no antissemitismo que aparece seu veneno mais forte. E aqui o leitor se vê dentro da história, correndo o risco de se tornar cúmplice de Simonini. “Só que o ódio aquece o meu coração", diz ele.
As inversões de papel entre o mundo real e o ficcional funcionam no livro de forma inocente e agradável, embora possam ser assustadoramente perigosas, como no caso dos Sábios de Sião”. Estes “Protocolos” deram sustentação “documental” para o (reforço do) antissemitismo europeu do início do século XX (era o livro de cabeceira de Hitler, sendo citado inclusive em “Minha luta”, por exemplo).
Em seu livro “Seis passeios pelos bosques da ficção” (1994), Umberto Eco faz uma brilhante demonstração de como os “Protocolos dos Sábios do Sião”, que denunciavam um suposto complô judeu para dominar o mundo, são originários das várias versões deturpadas de cenas de romances rocambolescos como O Judeu Errante, de Eugene Sue, e Joseph Balsamo, de Alexandre Dumas, tendo, no entanto, se tornado “verdadeiros” para os incautos. “Cemitério de Praga” mostra, assim, o caráter fabricado e artificial dos fatos históricos, que chegam a despontar como mentiras muitas vezes repetidas.
Simonini, reconhecido por sua habilidade na falsificação de documentos, precisa mostrar serviço aos seus empregadores do governo. Então, chega à conclusão que, se denunciar um complô, sua reputação aumentará bastante: “O que torna fidedigno um informante da polícia?”, ele se pergunta. “A descoberta de um complô. Portanto, ele deveria organizar um complô para poder denunciá-lo”. Apesar de ficcional, o protagonista reserva semelhanças com muitos personagens reais tanto do passado como do presente.
O livro está recheado de histórias de assassinatos e reviravoltas, temperadas com eventos históricos vistos dos bastidores, e revelações indiscretas acerca dos hábitos de famosos (Garibaldi, Napoleão, Victor Hugo). Há também conspirações sob um pano de fundo de esgotos cheios de cadáveres, abades esfaqueados, navios que explodem em regiões vulcânicas em plena erupção, missas negras, e por aí vai.
A sucessão de idas e vindas da narrativa deixa o leitor um pouco atordoado: hipnose, histeria, magnetismo, teorias da conspiração, tudo junto em uma narrativa muito acelerada, mas com acontecimentos vertiginosamente encadeados. Os maçons se misturam aos satanistas, que por sua vez são confrontados com os anarquistas, os antissemitas, os mesmeristas e os jesuítas, tudo isso costurado pela perspectiva de um diário bastante peculiar de um homem — Simonini, por delírios esquizofrênicos, nos quais se imagina ser outro homem, o abade Dalla Piccola que, eventualmente, também registra sua visão dos fatos em outro diário.
O fato de existirem falsificadores de história é um dado preocupante. Se pensarmos que tudo isso pode estar acontecendo nesse exato momento vai fazer com que muitos leitores venham a pensar: “eles estão entre nós...” E o pior, muitos sofrem da tendência de acreditar em tudo o que é dito. Por isso é que o autor nos conta a impressionante história baseado nas citações explícitas de fontes ficcionais que muitas pessoas assumem como verdadeiras.
A paixão de Eco por folhetins, pelo lixo cultural e, claro, pela ignorância humana capaz de acreditar em qualquer coisa, está contida no romance “Cemitério de Praga”. Temos, então, toda a atmosfera de um folhetim: disfarces, conspirações, fomentação da opinião pública contra um determinado inimigo (jesuítas, maçons, comunistas, mas em especial os judeus, cada vez mais).
O título do livro se refere à cena primordial, envolta em romance. Um encontro de rabinos representando as doze tribos de Israel no referido cemitério onde eles conspiram a dominação do mundo pelas finanças, a ruína do cristianismo e dos valores ocidentais, e para completar, o tiro de misericórdia, a dominação global.
O poder incrível e duradouro dos “Protocolos” nos diz Hannah Arendt, tem pouco a ver com a mente de seus falsários, mas tudo a ver com a avidez de seus consumidores. E assim a história humana se repete como disse certa vez Marx, na primeira vez, como tragédia, na segunda como farsa. Umberto Eco nos oferece um romance robusto e inteligente que vale a pena ser lido. Um romance que denuncia os falsários e provoca os consumidores. Um livraço.