País do carnaval
Jorge Amado é um escritor que dispensa maiores apresentações. É um autor reconhecido pela sua vasta produção literária. O homem é um gênio da raça. Seus personagens ganharam e ainda ganham o imaginário de todos os leitores do Brasil e do mundo. Através de seus romances podemos dizer que ele inventou um Brasil diferente. Sua prosa é cativante. Um contador de histórias de primeira linha. Sua narrativa é simples, econômica carregada de uma ironia fina. Um homem que dedicou sua vida à literatura e, em certo período, à militância no Partido Comunista Brasileiro.
Quando abandonou a militância, dedicou-se (dito em suas próprias palavras) ao ofício que sabia fazer melhor: escrever. Nunca parou de produzir. Seu romance de estreia “O país do carnaval” foi uma obra que ganhou elogios enfáticos de críticos nada amigáveis, o que acabou catapultando-o para o cenário literário do Brasil da época, aos 18 anos de idade. O livro foi escrito em 1930 e publicado em 1931, foi traduzido para três línguas diferentes: espanhol, francês e italiano, além de ter sido editado em Portugal.
Jorge Amado acabou vendo sua primeira obra sendo queimada em praça pública em 1937 em Salvador, Bahia, durante o regime do Estado Novo. Paulo Rigger, o personagem central do livro, ao regressar ao Brasil, se sente um estranho no ninho; e curiosamente ele chega ao Brasil no dia do carnaval. Desembarca com Julie, sua amante francesa, com quem mantinha um tórrido romance em que o sexo prevalecia e falava mais alto. Na sua chegada, aparentemente sentiu-se integrado ao Brasil:
“Paulo Rigger compreendeu que era sábado de carnaval. Tomou um carro. E começou a rodar atrás de um auto de moças. Eram virtuosas filhas de um moralista exaltado. Rigger jogou na mais bonita delas um pouco de lança-perfume. O seio molhado parecia querer pular fora da blusa. Ela gargalhou de histérica. Foram dançar depois. E o aperto da sala e a dança que os juntava fazia-a desfalecer. Beijou-a muito. Apalpou-a muito. E notou que todos se beijavam e todos se apalpavam. Era o Carnaval... Vitória de todo o Instinto, reino da carne Paulo Rigger gritou: - Viva o Carnaval! E a virtuosa senhorita apertou-se mais a ele. Quando Paulo Rigger saiu, um grupo de mulatas sambava na rua. Cor de canela, seio quase à mostra, requebravam voluptuosas, num delírio. Paulo viu ali o sentimento da raça. Viu-se integrado a seu povo. Caiu no samba a berrar: - Dá nelas... Dá nela... Uma mulata gorda deu-lhe uma umbigada. Agarraram-se a dançar no passeio. Até os sujeitos que tocavam violão sambavam numa alegria doente de quem só tem três dias de liberdade. Os lábios da mulata entraram nos lábios de Paulo Rigger. Ele pensava em gritar: ‘Viva o Brasil! Viva o Brasil!’. Sentia-se integrado na alma do povo e não pensou que aquilo era somente durante o Carnaval quando todos, como ele fizera durante toda a sua vida, se entregavam aos instintos e faziam da carne o deus da humanidade...” (pg29)
E Julie, a namoradinha francesa? Se esbaldando na festa da carne. Paulo Rigger, filho de um rico produtor de cacau, volta ao Brasil depois de passar sete anos estudando direito em Paris. Sua volta marca suas dúvidas existenciais e acaba encontrando um grupo de intelectuais em Salvador que conviviam com os mesmos dilemas sobre amor, política, religião e filosofia. Dúvidas sobre os rumos do país.
Pedro Ticiano, o líder do grupo, é um cético, ateu e seus pensamentos e suas palavras eram como navalha, principalmente para os intelectuais conservadores locais. É um anti-herói de formação europeia, menospreza as ações políticas. Ricardo Reis, outro membro da trupe é um poeta piauiense, funcionário público e estudante de direito. O mulato Jerônimo Soares, é um homem ingênuo e desprovido de vaidades. José Lopes, o crítico dos críticos. A. Gomes é um jornalista que sonha com a riqueza e em fundar um jornal.
No livro “O país do carnaval”, Jorge Amado nos mostra um país de liberdade e desordem. Os personagens deste romance enfrentam conflitos existenciais, cada um tentando desvendar o sentido da própria vida e, assim, tentam entender o caldeirão cultural em que vivemos com um pouco de coerência e de incoerência.
Os personagens apresentam suas dúvidas e dificuldades cotidianas e suas tentativas de compreender os valores deste país. Expressa o clima intelectual da época, marcado pela ideia de crise e incerteza. Seria um livro de época? Creio que não. Quando vemos nos dias de hoje a crise e a incerteza em que vivemos, o primeiro pensamento que muitos vislumbram é o aeroporto. Há oitenta cinco anos este livro foi escrito. Podemos nos perguntar: o Brasil mudou? Sim, mudamos um pouco. Mas mantemos as mesmas contradições de séculos guardadas debaixo do tapete. O sonho do futuro sempre nos arrasta para o nosso passado imperfeito. Até quando?
O livro traz uma excelente reflexão, no posfácio de José Castello, para entendermos a obra em questão. Diz ele: “Seu primeiro romance é, em resumo, um amálgama das perguntas que o formaram como escritor. Uma espécie de rascunho do próprio Jorge Amado. Todo escritor escreve a partir das perguntas que consegue formular.”
“O país do carnaval” nos seus oitenta e cinco anos de existência permanece com as mesmas perguntas sem respostas. O que fazer com todas as incertezas e ausência de valores éticos presentes nos dias atuais? Uma coisa é certa: as respostas para essas questões não podem ser carnavalescas.
Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.