O homem que amava os cachorros
“O homem que amava os cachorros” é um livro que fixa, ou seja, faz você pensar nele quando acaba de ler. O título é um artifício literário através do qual o autor tenta vincular os destinos dos três personagens principais: o escritor cubano Ivan, o líder revolucionário russo Leon Trotski e seu assassino, Ramon Mercader, que tinham em comum o apego aos cães. Leonardo Padura mistura fatos históricos com uma engenhosa criação artística.
A história gira em torno de um personagem fictício, Ivan Cárdenas Maturell, que em sua juventude era um escritor cubano promissor, até que um dia entrou em choque com os censores do partido comunista, que declararam uma de suas histórias contrarrevolucionárias. Cuba naquele momento era totalmente financiada pela URSS, e vivia seu momento de glória revolucionária. Sua carreira ficou estagnada por causa de uma camada de burocratas carreiristas que o condenaram. E ele é forçado a ganhar sua existência miserável como revisor de uma revista veterinária.
No início do romance encontramos Iván no funeral de sua esposa. Um homem desiludido e amargo vivendo em uma cabana em ruínas cujo telhado está prestes a desabar. Seu único consolo é seu cão de estimação. Ao sentir o peso da perda de sua mulher para um câncer, ele começa a olhar sua vida passada e recorda um momento de uma coincidência extraordinária.
Uma tarde em 1977, enquanto passeava em uma praia, ele encontra um estrangeiro misterioso andando com dois Borzóis russos – uma raça desconhecida na ilha. A partir desse interesse comum sobre cães, começam uma conversa em que o homem que amava os cachorros se apresenta como Jaime Lopez, um espanhol idoso que vive em Havana.
Jaime Lopez fala sobre Ramon Mercader com tantas minúcias, através de revelações graduais, que uma história extraordinária começa a aparecer. As dúvidas começam a desabrochar. Qual a necessidade de contar essa história? Qual o impulso que move esse homem a evocar o passado contendo a história de Mercader? Seria Jaime Lopez o famoso Ramon Mercader? Bem, algo une Ivan, Mercader e Trotski. E o que será? Os três amavam cachorros. Apenas isso.
O que chama a atenção é a habilidade do escritor em amarrar os acontecimentos tanto da vida de Ivan, em Cuba, como dos primeiros anos de Mercader na Espanha e na França e o exílio de Trotski. A vida do revolucionário é muito bem documentada, e a sensação que nos dá é que estamos lendo uma biografia real, quando se trata exatamente do oposto, ou seja, de uma ficção. Digo isso, pois a forma como Padura traça a vida de Trotski, seguindo de perto a Revolução de Outubro, a Guerra Civil, a luta da oposição de esquerda contra a burocracia stalinista, seus longos anos de exílio na Turquia, França, Noruega e finalmente no México, nos mostra que esses personagens não foram feitos de papelão, encontradas na literatura popular, mas estão linkados a grandes processos históricos e jamais poderiam ser compreendidos fora deles.
Outra coisa que me chamou a atenção: o livro é um trabalho feito em camadas que entrelaçam várias vertentes relacionadas, mas distintas. A primeira é a história de Ivan Cárdenas Maturell. A segunda, a vida de Trotski, de Mercader, a Guerra Civil Espanhola, o funcionamento da implacável GPU de Stalin (que foi transformada na KGB no período pós-Stalin). E a terceira camada contempla o problema do stalinismo e da burocracia em Cuba. Iván personifica uma geração de intelectuais que lutaram pela revolução cubana, trabalharam e fizeram sacrifícios e acabaram decepcionados com o stalinismo, que distorceu todos os ideais revolucionários, transformando a Revolução de Outubro em uma caricatura grotesca.
Como em uma história de detetive, só que seguindo toda uma linha de investigação histórica, Iván consegue refazer peça por peça o quebra-cabeça que ao longo da trama vai se encaixando. Embora estejamos lidando com uma peça de ficção, a habilidade com que Padura reconstrói a imagem de Mercader é um dos pontos altos do romance. De uma família burguesa da Catalunha, teve uma infância perturbada e sob a influência de uma mãe totalmente desequilibrada, Claridad, que se torna uma fanática stalinista. Ramon se junta ao Partido Comunista e luta na Guerra Civil Espanhola, quando é recrutado pela GPU, a polícia secreta de Stalin, com a benção entusiástica de sua mãe.
Ramon testemunha os crimes da GPU na Espanha, como as perseguições aos anarquistas e simpatizantes do POUM (Partido operário de Unificação Marxista), cujo líder, Andeu Nin, foi assassinado pela polícia secreta de Stalin. Finalmente, ele é enviado a Moscou para ser treinado como um assassino da GPU. Os métodos dessa polícia secreta são relatos monstruosos e com detalhes sórdidos. Ramon Mercader, através de treinamentos brutais conduzidos por seus superiores, é transformado em um robô obediente, pronto para realizar qualquer missão de qualquer espécie. Enquanto estava em Moscou, presenciou os expurgos notórios, em que Stalin liquidou todos os líderes do partido de Lênin, forçando-os a confessar crimes grotescos contra a Revolução, além de liquidar os comunistas estrangeiros.
O coração do livro é um relato histórico levemente ficcionado de Trotski a partir do dia em que ele foi expulso da União Soviética até o dia em que foi assassinado por ordem de Stalin. Padura descreve sua luta permanente para manter, no exílio, uma oposição ao “grande líder”, que desde o início da Revolução sempre o considerou um medíocre. Trostski é mencionado com simpatia, mas ao mesmo tempo o autor revela certa cumplicidade de Trotski com tudo aquilo que foi criado após a Revolução de Outubro: por exemplo, sua atuação frente aos marinheiros de Kronstadt, que foram esmagados de uma forma impiedosa, e cujas reivindicações coincidiam com as deles no
exílio, ou seja, democracia. Essa reflexão é mostrada no livro sob a forma de uma autocrítica vinda das reminiscências de sua práxis revolucionária. O livro mostra sua coragem, sua tenacidade, uma enorme inteligência, uma enorme predisposição a resistir às mortes dos seus filhos e a sua obstinada luta para salvar sua versão da revolução.
“Liev Davidovitch sempre pensara que as vidas de um, de dez, de cem, de mil homens podem e até devem ser devoradas se o turbilhão social assim o exigir para atingir seus fins transformadores, pois o sacrifício individual é muitas vezes a lenha que se queima na pira da revolução”(pg73)
Na medida em que as páginas vão sendo lidas, Padura nos apresenta uma reconstrução muito convincente da relação de Mercarder com Sylvia Ageloff, uma assistente de Trotski que morava nos EUA, a mulher que foi seduzida por Mercader e que apresentou à família Trotski como seu companheiro. Nosso autor penetra na mente do assassino desnudando seu estado psicológico e seus conflitos interiores nos dias que antecederam o assassinato. Mas, ao recobrar o sentido de sua missão, como um animal diante de sua presa, fica cada vez mais perto do seu alvo.
Mercader forja um interesse pelas ideias de Trotski, e produz um artigo sobre a situação política na Europa. Tudo muito inocente. Um dia de verão, ele aparece vestido com uma capa de chuva na casa de Trotski no México, onde este vivia exilado. A segurança da casa não percebe, e o crime acontece. No dia 20 de agosto, o agente de Stalin assassina o líder da Revolução e fundador do Exército vermelho.
Após anos na cadeia no México, Mercader retorna para uma União Soviética totalmente diferente, os crimes de Stalin foram expostos. Seus antigos chefes agora amargam punições pelos trabalhos sujos que fizeram em nome de Stalin. Chegam à conclusão que todos os ideais se transformaram numa delegacia de polícia dedicada a proteger o poder. Todos seus amigos que tinham lutado e matado reconfortavam-se com imersões dolorosas nos fossos escuros por onde vagavam suas almas perdidas. Isso quando Brejnev, em 1968, se preparava para invadir a Checoslováquia. O que restou? Um cansaço histórico, uma utopia pervertida.
Em seu momento mais duro criticando os ideais revolucionários, Padura faz Iván escrever seu testamento nessa história, em que diz o seguinte:
“Essa foi a nossa sina coletiva, e que Trotski vá para puta que o pariu se, com seu fanatismo de obcecado e seu complexo de ser histórico, não acreditava que existissem as tragédias pessoais, mas apenas as mudanças de etapas sociais e supra-humanas. E as pessoas? Será que algum deles pensou alguma vez nas pessoas?” (pg584).
Essa é uma pergunta dirigida a Fidel Castro também. “O Homem que Amava os Cachorros” é um romance escrito contra as ideologias, contra as fantasias revolucionárias ou messiânicas. É um romance, como Iván nos faz perceber, contra esse sistema político admirado por metade do mundo, cujo legado deixado foi apenas um sentimento: o medo. Um livro sensacional que merece um lugar em sua estante.