O compromisso
O romance “O Compromisso”, da escritora Herta Müller, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2009, recentemente traduzido para o português pela Editora Globo, é um boa sugestão de leitura para aqueles que procuram uma literatura com “algo mais”. A tradução de Lya Luft é primorosa. Seu domínio da língua alemã assim como da língua portuguesa não permite que haja perda de sua densidade original.
Mas antes de falar sobre o romance é necessário citar dois personagens ocultos e sinistros que permeiam toda a trama: o partido comunista romeno e a Securitate (polícia secreta) - que foram os pilares de sustentação de um regime de extrema violência onde o livro é ambientado.
Com a morte de Gheorghiu-Dej, em Março de 1965, que era um grande líder da nação Romena, surge o alpinista político Nicolau Ceausescu. Ele escala a burocracia do partido e torna-se o líder máximo do PCR e, em 1967, chega à presidência do Conselho do Estado, convertendo-se rapidamente numa figura popular, graças a sua política independente em relação a União Soviética.
Meu primeiro contato com esse ditador, deu-se no movimento estudantil na década de 70, no qual participei ativamente, e quando vi pela primeira vez um livro escrito por ele com quase mil páginas em castelhano, falando sobre sua visão socialista do mundo. Não li é óbvio. Era um livro que fazia mais sentido ser utilizado como alteres em aulas de ginástica localizada devido a seu peso, a seu estofo intelectual.
Feita essa introdução, vamos à obra de Herta Müller. Dentro de um país onde o controle era tudo, a escritora desenvolve seus personagens dando destaque ao lado “torto” de cada um deles. Explico: trata-se de pessoas que tentam acertar em suas escolhas, porém, por motivos diversos acabam por ter suas vidas desestruturadas, num período político pontuado pela violência e coação. A protagonista narra suas reminiscências de infância, onde passado e presente se intercalam a todo instante, dando vivacidade ao romance. Um universo denso e psicologicamente confessional.
Não pretendo contar a história, mas entre as desventuras e aspirações vivenciadas neste romance, nossa narradora, neste cenário sombrio, sonhava com uma vida que combinasse com seus cabelos curtos. Sonhava viver no país para onde eram enviadas a produção de roupas da fabrica onde trabalhava. Sonhava com um lado ocidental belo e livre. E enfiava bilhetes, nas roupas, com os seguintes dizeres: “- case comigo, ti aspeto”, sempre assinados com nome e endereço. Tal sonho rendeu-lhe uma denuncia e, mais uma vez, através de uma bilhete plantado em seu nome “Saudações da Ditadura”, sua vida se desvirtua e através desse fato, origina-se: “O Compromisso”.
Passa a ser convocada com frequência às 10h, em ponto, as segundas, quartas, quintas e sábados para depor. O trajeto de bonde não dura mais do que uma hora e meia. O major Albu a recebe sempre com perguntas incriminatórias, um personagem feito sob medida para conduzir interrogatórios.
Este compromisso torna-se o refrão dessa história. O tic-tac do despertador é o compromisso, compromisso, compromisso... O condutor do bonde leva esse refrão até o local e, a cada ida, os personagens que entram e saem do vagão soam como paisagens humanas sem sentido. Assim como a quantidade de paralelepípedo, sarrafos, postes de telégrafos, janelas de um ponto a outro estão todos anotados em sua memória até chegar ao local.
Nesse cenário, suas amizades também eram igualmente tortas. Sua amiga Lili era a única que conseguia acompanhar o fio de seus pensamentos emaranhados. E vice e versa. O fim de sua amiga retrata o grau de asfixia de uma geração confinada.
Seu segundo casamento também era torto. Moravam em uma torre inclinada. Paul, seu segundo marido, dono de um mercado de pulgas, vendia clandestinamente antenas para transmitir programas de TV da Iugoslávia e da Hungria. Sua motocicleta Java e seu espírito torto, e o compromisso com a bebida contrastava com a do seu pai; que fazia parte da família operária para uso da propaganda oficial. Seu pai tinha seu retrato de melhor operário na placa de honra no Parque do Povo. Paul preferia os esquilos do parque, ao retrato estampado do seu pai na praça.
Em uma Romênia aparentemente planificada, emergem caminhos tortuosos feitos por personagens igualmente também “tortos”. Personagens que não aceitam as regras, preferem navegar pelas excessões. Optam pelos caminhos tortuosos, seguem a grandes retas sempre no intuito de dobrar na próxima esquina.
O tempo não para, "compromisso, compromisso, compromisso...". Tempo que desliza no fio da navalha, no ponteiros do relógio que fazem os nervos ressoarem no bonde da rua - até o próximo compromisso. Livraço. Eu recomendo.