Auto-de-fé
O Livro "Auto de Fé" não é um livro fácil. É um livro árduo que exige um esforço intelectual e, mais do que isso, uma boa dose de perseverança para que o leitor saiba percorrer os labirintos simbólicos no qual o livro está inserido.
Para aqueles que não conhecem a obra e gostariam de saber do que se trata, diremos que Auto de Fé conta as peripécias de um erudito, Peter Kien, um sinólogo, cuja vida é dedicada à exegese e tradução de textos de sábios chineses.
Ele tem apenas uma paixão: a paixão pelos livros. Essa obsessão o impede e ofusca em ver o mundo que o cerca. Em sua “casa-biblioteca” há apenas uma mesa de trabalho, uma cadeira e um divã, o estritamente necessário para trabalhar e descansar (mas descansar unicamente com o fim de trabalhar melhor!) - e nada mais. O seu apartamento é uma imensa biblioteca constituída por 25 mil volumes. Ele vive na mais absoluta austeridade e ,fora a importância que dá aos livros - tudo não passa de uma imensa superficialidade.
Formatar de uma forma consistente todos os episódios que o compõem exige um algo mais. Se pegarmos isoladamente os fatos desse livro, como:as banalidades domésticas de uma governanta somadas às reflexões extravagantes de um neurótico orientalista; a brutalidade sórdida de um porteiro às façanhas de um anão corcunda e criminoso, poderemos montar um quadro de fácil entendimento.
Podemos até mesmo dizer que Peter Kien só vê aquilo que o interessa. Nesse sentido, guarda algumas semelhanças com Cervantes. Certo dia o nosso herói Peter Kien conhece Thérèse, uma senhora que vem arrumar de vez em quando seu apartamento. Pelo cuidado e asseio com que trata seus livros, ele imagina poder tomá-la como sua senhora Kien. Ter uma mulher em sua casa certamente daria a seus livros mais “conforto”. Mais adiante veremos uma nova situação em que Thérèse manifesta o desejo em ter mais móveis em casa, algo além da escrivaninha, da cadeira e do divã, as ela deseja ter uma cama para dormir, por exemplo. Nós, os leitores, a princípio, nos compadecemos de sua miséria no casamento. Continuando o percurso do livro irrompem os seus desejos, dentre os quais o sexual, para desespero de Peter Kien. Daí em diante a história do casal será marcada pelo desencontro e desespero, com alguns requintes de crueldade. Outros personagens dão o tom sinistro do mundo exterior ao qual Kien se recusa a ver. Fischerle, o anão, amante de xadrez que vive nos botequins freqüentados pela escória da cidade buscando aplicar golpes. Fischerle, diante do desamparo que percebe em Peter Kien para lidar com a violência de Thérèse, finge querer protegê-lo. Sonha em ir para os Estados Unidos, onde se tornaria campeão de xadrez e milionário.
Para concretizar seus intentos inventa formas de se apossar do dinheiro de seu pretenso amigo. A engenhosidade desse escroque não tem limites: Peter, em sua paixão pelos livros, não admitia que as pessoas penhorassem seus livros sob qualquer pretexto. Fischerle combina com seus amigos de botequim para que sob, seu comando, cada um deles fosse à casa de penhores com um pacote que nada continha, dizendo se tratarem de livros que seriam penhorados por valores insignificantes. Certamente que Peter, ao ver alguém se desfazer de livros por preços tão irrisórios, iria comprá-los e por fortunas, não apenas para dar-lhes o valor que têm e merecem ter, mas como também para que seus donos os mantivessem consigo.
Existe ainda um outro sinistro personagem, Benedikt Pfaff, o porteiro, em casa de quem Peter Kien se refugiará.Um velho da polícia que só sabe expressar-se através da violência: é a sua maneira de amar ou odiar, como descobriram sua esposa e filha - ambas assassinadas por ele.
Tudo se dá e se passa na sarjeta do mundo e aquilo que não afeta diretamente seu trabalho, “esses tolos que jamais seriam capazes de reconhecer a importância dos meus livros e do meu trabalho”, como poderia muito facilmente dizer Peter Kien, é tratado com recusa, desconsideração, desdém e desprezo.
O Auto da Fé é um mundo estilhaçado – “um mundo sem cabeça”, “uma cabeça sem mundo” e “um mundo em sua cabeça”. São eventos e pessoas que não respondem a uma lógica racional. Os ambientes insalubres fazem parte de uma alegoria ideológica e moral.
Peter Kien, o sinólogo, que domina vários idiomas provenientes do Oriente assim como várias línguas do Ocidente, não é levado a sério por seus contemporâneos. O motivo desse descrédito é que dentro de sua imensa sabedoria existe um muro que o separa do mundo. É por isso que ele se recusa a ensinar. O conhecimento de Peter Kien não é algo a ser compartilhado. Nunca foi capaz de ver a cidade onde viveu ou as pessoas ao seu redor.
O tecido social que envolve todos os personagens estão necrosados por toda a sorte de ressentimentos e preconceitos. As guerras travadas são todas simultâneas.
O livro Auto da Fé parece um replay de uma sociedade que está madura para cair nos braços da insensatez e da intolerância. Porém, não pretende discutir apenas uma alegoria política e vai além. A crueldade e a banalidade, a morbidade e a extravagância denotam criaturas não aceitáveis pelo leitor. São personagens concebidos para intrigas e para o escambo, servem para intrigar o leitor e não para comovê-lo. Não há traços de sentimentalismo, mas de frieza cerebral. A realidade ficcional obscurece a fronteira entre os fatos objetivos e os desejos, e os desejos e a vida tornam-se uma liga fantástica que sugere algo próximo ao expressionismo. Destas pinturas do expressionismo alemão que revelam o pesadelo do real.
Cenários fantasmagórico onde os demônios destroem o coletivo, invadem as subjetividades encurraladas e recebem a cidadania de “demônios humanos”. Homens e mulheres permanecem escondidos em sua privacidade e apenas ocasionalmente mediados em atos e gestos simbólicos, mostram-se sem disfarces, e, não importa o quão forte são os absurdos, esse desconforto é a verdade perturbadora que resplandece das páginas do romance Auto da Fé. Esses demônios que causam os delírios e apocalipses sociais são obras por nós forjadas.