Na Multidão
Luiz Alfredo Garcia-Roza será eternamente lembrado pelo grande psicanalista que foi. Seus livros sobre psicanálise continuam sendo referência no mundo acadêmico. No entanto, foi na literatura policial que ele atinge o reconhecimento como escritor fora das muralhas da Universidade. Criador do delegado Espinosa, tem em sua bagagem literária dezenas de romances policiais e sempre foi considerado um dos grandes mestres da literatura policial brasileira. Infelizmente, no último dia 16 de abril de 2020, veio a falecer.
O que sempre admirei em Luiz Alfredo Garcia-Roza era sua elegância tanto na sua postura pessoal como na sua escrita. Eu não conheço nenhum personagem semelhante a Espinosa na literatura policial clássica. O delegado de Garcia-Roza não é nenhum super-herói que dá socos, rápido no gatilho, exímio lutador e sem nenhuma sofisticação. Espinosa é um investigador que sempre procurou fazer o seu trabalho da melhor forma possível, evitando trocas de tiros. É um homem comum, cheio de dúvidas e angústias, sofre a solidão dos relacionamentos amorosos, se relaciona muito mal com os avanços da tecnologia e ao mesmo tempo tem uma grande responsabilidade como titular da décima segunda DP, em Copacabana. Ele conhece a corrupção que ronda a delegacia e sabe em quem pode e em quem não pode confiar, tenta manter o equilíbrio no meio de um ambiente perigoso na estrutura da polícia.
O delegado Espinosa, nas palavras do próprio autor, é uma homenagem ao filósofo, pois, apesar de ser um burocrata ligado à polícia, é um sujeito íntegro. O personagem, de alguma maneira, diz que é possível ser íntegro, mesmo estando na polícia.
As ruas de Copacabana, bairro onde Luiz Alfredo Garcia-Roza nasceu em 1936, e os problemas que atingem a cidade estão em cada página de seus livros, mas tudo é apenas usado como pano de fundo para a criação de suas tramas. Para aqueles que não o conhecem, o autor segue uma cartilha em que procura os demônios assassinos dentro de cada personagem. E por isso os psicopatas assassinos e os psicopatas sexuais emergem de uma forma literária causando um impacto no leitor. A loucura e a racionalidade estão permanentemente se desafiando.
Mas aqui vale uma observação: a racionalidade da loucura e a loucura da racionalidade estão juntas aqui. São uma expressão literária. É a matéria-prima do autor, que vem dos mitos e das tragédias gregas, da literatura e da psicanálise, onde transita tão bem.
O delegado Espinosa é o retrato do indivíduo solitário. Vive sozinho, num apartamento que herdou no Bairro Peixoto, cheio de recordações e marcas que remetem ao passado, dos parentes que lá viveram. A geladeira, cheia de restos de comida, marca a sua falta de convívio. Sem ter com quem dividir a refeição, sua geladeira está sempre cheia de comida congelada, que ele incrementa com quibes e esfihas comprados sempre na mesma lanchonete do bairro.
“Pelo que se lembrava da noite anterior, a única coisa que havia na geladeira era metade de uma lasanha cujo sabor não estava nos melhores. O reforço árabe não era para ser acrescentado à meia lasanha, mas para substituí-la, e também para quebrar a monotonia dos dias seguidos comendo massa congelada. Vinha pensando ultimamente em eliminar o jantar. Apenas isso. Decretar o fim do jantar. Por consequência, decretar o fim das massas congeladas. Passaria a fazer um lanche: café com leite, pão preto, queijo, presunto, geleia... Mais leve, mais sadio, menos engordativo, mais adequado ao clima tropical (embora não soubesse dizer por quê), menos trabalhoso (não tinha certeza), enfim um estilo mais americano e europeu de refeição noturna (achava). Enquanto andava, examinou a ideia.” (pg17, pg 18)
Seu apartamento é onde ele cultiva os seus hábitos e sua solidão, reforçando sua personalidade, a sua história e o seu passado. Até os eletrodomésticos quebrados e os defeitos são resolvidos no fim de semana. Tudo está no mesmo lugar. Sua torradeira que só doura um pão de cada vez. Mas nada sai do lugar. Ele se apega aos objetos, como se eles fossem parte de sua personalidade.
“As manhãs de sábado sempre haviam tido um sabor especial para ele, porque aos sábados Espinosa não se limitava ao número de torradas nem em quantidades de geleia e de queijo, além de tomar duas xícaras grandes de café forte. Um problema que persistia a ponto de ter se tornado íntimo como um animal de estimação era o da torradeira que torrava as fatias de pão apenas de um lado, obrigando-o a realizar a operação em duas etapas para obter as duas fatias torradas dos dois lados. Era uma torradeira americana do tempo da Segunda Guerra Mundial, herdada dos pais, e que funcionava magnificamente bem até hoje, a não ser por esse pequeno incômodo de duas etapas” (pg 34, pg 35)
Bem, dito isso, vamos a história?
O enredo do livro “Na Multidão” não tem rodeios. Mantém o clima tradicional do suspense, só que nesse livro existe um diferencial: a personagem central está concentrada nas lembranças de Espinosa. A trama faz uma ligação entre um crime acontecido em Copacabana e as ligações com o passado de Espinosa, mas especificamente com a sua infância. É a própria lembrança de Espinosa que é posta em xeque. O crime tem ligações com o passado do delegado. Um reencontro com as lembranças de infância, que ganham uma dimensão trágica.
O livro “Na Multidão” começa dentro da Caixa Econômica, quando uma pensionista sai do atendimento depois de conversar com um dos caixas e vai direto para a 12º DP, onde quer falar com o delegado de plantão. Dona Laureta é o nome da pensionista. Naquele momento não havia ninguém, pois todos estavam em reunião, mas ela só queria falar com o delegado. Esperou alguns minutos e prometeu voltar para falar apenas com o delegado.
Pois bem, eram quase sete horas da noite após a reunião com a equipe de investigadores. Espinosa foi notificado pelos detetives de plantão que uma mulher que havia estado na delegacia morrera atropelada em um acidente. Dona Laureta morrera em circunstâncias suspeitas. Os detetives ouviram as testemunhas e algumas chegaram a dizer que ela havia sido empurrada, mas ninguém sabia dizer por quem. Outros achavam que foi apenas um acidente. Segundo o motorista:
“A única coisa que ele viu foi um vulto de cabelo branco e em seguida o baque de um corpo sendo atingido. Estava em estado de choque, repetindo o tempo todo que não tinha culpa” (pg 11)
Espinosa pediu ao detetive que refizesse o caminho por onde dona Laurete passou naquele dia. Pelos depoimentos, ela não demonstrava ansiedade nem medo. Era uma viúva que morava sozinha e se sustentava com a pensão deixada pelo marido. O detetive Welber ficou encarregado de conversar com os empregados do prédio onde dona Laurete morava, estes não suspeitaram de nada de anormal no comportamento dela. Quando os detetives chegaram de volta à delegacia, o delegado Espinosa pediu que Welber e Ramiro fossem à Caixa Econômica conversar com algum caixa e verificar a presença dela na câmera de segurança.
Sexta-feira era o dia de folga de Espinosa e era o dia do encontro com Irene, sua namorada. Só que ela chegou acompanhada de uma amiga de São Paulo chamada Vânia, que viera passar o fim de semana com a amiga. Só que Irene, em consideração à amiga, pediu a Espinosa que adiasse o encontro da sexta-feira. Sua namorada vinha de uma relação amorosa com uma amiga.
Espinosa não pode cobrar nada de Irene. Espinosa não sabe se ela pode ser considerada sua namorada. Eles se veem de tempos em tempos. Movidos por uma vontade, quando ela passa o fim de semana no Rio. Irene telefona para Espinosa, os dois marcam de se ver. Ela aparece na casa dele com sacolas recheadas de vinhos, pães e frios e desaparece quando a segunda-feira chega, sem promessas nem cobranças. Dona de um apetite sexual intenso, Irene é arquiteta e dez anos mais nova que Espinosa. A solidão, quando ela sai, volta ao apartamento.
E o adiamento do encontro não havia convencido Espinosa. Havia algo no ar? Bem, quando chegou o domingo à noite, Espinosa foi deixar a sua namorada na casa dela em Ipanema. Defrontou-se com o desaparecimento de Vânia. Sem deixar vestígios, ela desaparecera. Mas dias depois ela aparece no meio do nada, alegando que conhecera alguém e que esse alguém a convidou para um passeio de lancha em direção a Angra dos Reis.
Claro que isso não convenceu Espinosa. Irene teria tido uma recaída por Vânia? Esse foi a primeira coisa pensada por Espinosa. Mas os questionamentos de Espinosa iam mais além quando ele levantou o seguinte ponto:
“Ela não foi passear de barco. Ela saiu ao meio-dia de sábado e voltou à meia-noite de domingo sem dizer nada, sem deixar um bilhete com o porteiro, sem dar um telefonema. Não acredito que, mesmo num veleiro inventado, capaz de ir do Rio a Angra e voltar nesse espaço de tempo, não houvesse um celular, ou que do próprio barco não dispusesse de outro meio de comunicação. Não ter nos avisado de nada foi uma forma de nos deixar preocupados e de nos punir por termos passado o fim de semana juntos, sem ela. Resolveu punir você, por não ter ficado com ela; e a mim, por ser o responsável por você não ter ficado com ela; e a nós dois, estragando o nosso fim de semana. Além de vingativa é irresponsável.” (pg 59)
O que passa na sua cabeça, caríssimo leitor? Espinosa está com razão? Bem, não posso ficar me alongando nesse episódio, pois seria um flagrante de spoiler. Algo que é considerado crime para alguns tipos de leitores. E eu respeito muito isso. Paro por aqui.
Bem, enquanto isso, as investigações da morte de dona Laurete continuam: na câmera de segurança da Caixa Econômica Federal é detectada uma conversa de dona Laurete com um funcionário. O nome desse funcionário: Hugo Breno.
Hugo Breno era um solitário, um excelente funcionário, mas que não se relacionava com os colegas de trabalho exceto quando o assunto era de caráter profissional. Sua vida era considerada perfeita para alguém que vivia sozinho, e uma rotina quase monástica. Sim, algumas garotas de programas, vez ou outra, frequentavam a sua casa para atender às suas necessidades biológicas, exigências que eram também compensadas por meio da ginástica. Não fumava nem bebia.
Mas havia algo que o motivou a fazer concurso para a Caixa, e o motivo tinha um nome. Era Espinosa, que havia feito concurso para polícia. Ambos se conheciam do Bairro Peixoto desde os tempos de infância.
Uma coisa ficava clara na câmera de segurança do banco é que Hugo e dona Laurete tiveram uma discussão em que o sorriso e a atenção não faziam parte daquilo que todos viram. A conclusão era óbvia: sigam Hugo Breno.
Uma das características de Hugo era o seu prazer em se misturar à multidão, ver seu ego diluído na matéria em movimento. Algumas coisas foram descobertas sobre a vida de Hugo. Sua mãe morrera de um ataque cardíaco, e conhecia dona Laurete, elas trocavam confidências. Quais seriam essas confidências? Bem, já estamos chegando perto do fim, não? Nem de longe. Enquanto o inspeto Ramiro e o detetive Welber seguem os passos do suspeito no meio da multidão, uma senhora é encontrada morta num quarto em Botafogo. Lanço uma dúvida minha para vocês: seria dona Laurete a vovozinha ou lobo mau dessa história toda?
Espinosa estava convencido de que precisava conversar com Hugo. Algo em suas reminiscências o perturbava. Marcou um encontro com ele em um hotel no bairro Peixoto. Esse encontro seria privado, sem anotações e sem gravador de escuta. Nada! Papo reto. Olho no olho.
Quando conversam, um novo personagem surge. Desta vez de uma incursão à infância, quando falam acerca da morte de uma menina ocorrida quarenta anos antes. Hugo se referia à morte de uma menina de onze anos que batera com a cabeça na escada e falecera. Um acidente? Uma morte cometida pelos meninos, mas ele era o mais velho da turma. As águas do inconsciente começam a se agitar. A memória precisa ser ágil para relembrar e não se deixar naufragar. Era preciso investigar, buscar as evidências do passado. E ao mesmo tempo o presente não apresentava evidências que apontasse Hugo como um criminoso. Qual o caminho a seguir? Nem sempre é fácil provar que alguém é criminoso, nem sempre é fácil provar que alguém é louco.
Fico por aqui, e fiquem certos de que mais obras desse autor maravilhoso vai aparecer muito neste espaço. Recomendo “Na Multidão”, de Luiz Alfredo Garcia-Roza, um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.