Fedra
A edição de “Fedra” (a peça de que falarei hoje), de Racine, vem com prefácio de Millôr Fernandes. Segundo Millôr (que também traduziu Fedra), esse prefácio foi escrito logo após a apresentação teatral em 1986. Com aquele humor fino, que sempre foi a sua característica, ele começa explicando sobre a decisão dessa montagem de Fedra, que ele atribui a Fernanda Montenegro, mas não tem certeza, pois, segundo o nosso tradutor, ele nunca tem certeza de nada. Na sua versão dos fatos, Fernanda Montenegro conversou com Boal, e este, entusiasmado com a “obra imortal de Racine”, pediu a Millôr que traduzisse. Mas Millôr impôs uma condição: a peça seria iconoclasta, ou seja, abandonaria a forma rimada e alexandrina, compensando a perda da rima com o “sentido exato das falas, mantendo a correspondência poética e dramática por parte dos atores e maior recepção por parte do público”. E foi assim a história dessa tradução.
E Millôr Fernandes conclui sobre a história de Fedra, de Racine, no prefácio:
“ Mas, ao fim e ao cabo, penso que a história de Fedra é mais do que um amor tabu que luta contra a proibição moral e social. É a história paleontológica do próprio incesto, cuja explicação só encontro na origem da linguagem humana. Inventadas as palavras (entre elas pai, mãe, filho, filha, irmã) estava automaticamente inventado o incesto. Assim a culpa de Fedra não só não pode ser admitida nem perdoada – não pode também, fundamentalmente, ser pronunciada. A tragédia toda se desenvolve no caminhar linguístico ansioso, mortal, mas irresistível, rodeios e circunlóquios, fugindo ao estigma da palavra indizível, até explodir no escândalo e no crime, na catástrofe catártica do nome maldito: “Hipólito!” (pg 4)
Antes de falarmos sobre Fedra, vamos fazer uma brevíssima biografia de Jean Racine. Nasceu em La Fertè-Milon, no norte da França. Ficou órfão aos três anos de idade e passou sua infância com os avós. Seus anos de formação educacional foram passados no colégio Port-Royal, colégio este que tinha os melhores professores e estudiosos de latim e grego da França. O colégio era católico, dominado por jansenistas. O jansenismo surge como uma reação contra a moral mundana e o otimismo humanista dos jesuítas. Inspirados no pensamento de Santo Agostinho sobre a graça, esse movimento teve importantes repercussões políticas e literárias na França do século XVII. A questão fundamental reside no fato de definir se a graça é ou não determinante para a salvação do homem. Santo Agostinho, em suas reflexões, nos diz que o pecado original se estende a toda a humanidade. A reforma protestante e o jansenismo se apropriam dessas reflexões de Santo Agostinho sobre o pecado original para desenvolverem os seus próprios dogmas. A salvação (se ela vier) será obtida pela misericórdia de Deus.
Podemos notar que essa escola (jansenismo) exerceu uma forte influência em Fedra. Mas deixemos para mais adiante. Quando saiu da escola, Racine foi para Paris e começou a escrever para o teatro tornando-se amigo de La Fontaine, Moliére, entre outros.
Sua vida de sucesso nos palcos durou treze anos, um sucesso ininterrupto. Foi logo reconhecido como um dos melhores dramaturgos da época e desfrutou da fama e dos favores de belas mulheres, mas também patrocínio do próprio rei. Seus antigos professores o condenaram. Racine respondia com comédias, sátiras e tragédias.
No entanto, sua carreira foi abruptamente interrompida. Deixou os palcos, deixou Paris. Acabou se reconciliando com os jansenistas. Sua última peça veio a pedido de um amigo de Luís XV para que escrevesse peças religiosas e cumpriu a promessa escrevendo Esther.
Durante seus últimos anos, Racine ficou esquecido pelo mundo literário, e sua morte passou despercebida pelo grande público em Port-Royal. Essa escola (Port-Royal) desapareceu seis anos depois sob a acusação de heresia.
Vamos à peça?
Racine é um poeta cujos textos produzidos estão localizados no período do classicismo. Na verdade, ele absorveu os autores clássicos para o seu mundo, no qual os deuses eram tanto abstrações convenientes como realidades vivas. Uma coisa que precisa ser dita é que outros dramaturgos franceses retrataram Fedra, mas Racine não se esqueceu de suas raízes jansenistas. Todos os personagens de uma maneira ou de outra cometeram erros. Cometeram erros por causa dos fundamentos do pecado original (Santo Agostinho), ou seja, nascemos com o pecado dentro de nós. Ele é congênito e hereditário. Racine conta a história de Fedra baseado nos erros humanos.
Racine, mesmo que tenha se mudado durante sua vida de Port-Royal (onde aprendeu a doutrina jansenista), sempre manteve em seu trabalho essa noção de fatalidade (específica dos jansenistas), segundo a qual o homem permanece prisioneiro de um destino que ele não controla e cuja fonte final permanece divina. Fedra, que é descendente de Júpiter e do Sol, é amaldiçoada pelos deuses – e de Vênus em particular – e deve expiar uma falta que é anterior a ela.
O que faz Fedra dizer a Enone (sua confidente):
“Ó sol nobre e glorioso autor de uma triste família, Tu, de quem minha mãe se orgulhava de ser filha, E que estás tão rubro talvez por me ver neste estado, Eu venho contemplar pela última vez!” (pg 20)
Ela sabe que nenhuma ação pode mudar um destino dominado pelos deuses:
“Já prolonguei demais minha existência culpada” (pg 23)
Fedra é, portanto, uma tragédia que gradualmente se desenvolve a partir de um momento inicial irreversível. Nesse sentido, podemos caracterizá-la como uma tragédia do destino. Para desenvolver esse drama, Racine utiliza todas as nuances da paleta dos sentimentos. Como, por exemplo, o amor nascente, o amor delicado que une Arícia e Hipólito. Hipólito acredita que Fedra o odeia. Quando ele vai aos seus aposentos para se despedir, pois sua partida tem como objetivo achar o que restou de seu pai Teseu (o rei), se estabelece o seguinte diálogo:
Fedra
Dizem que uma partida súbita te afasta de nós, senhor. Venho juntar minhas lágrimas às tuas dores. E em nome de meu filho te explicar meus temores. Ele não tem pai, mas está longe o dia. Em que deverá assistir à minha morte. Sua infância já é ameaçada por mil inimigos; Só tu és capaz de prover sua defesa. Mas um remorso secreto agita o meu espírito, Pois devo ter fechado teus ouvidos a seus gritos. Temo que castigues em meu filho, com uma cólera justa, Os erros execráveis que sua mãe cometeu.
Hipólito
Não tenho, senhora, sentimentos tão baixos
Fedra
Se me odiasse, não poderia me queixar, senhor, Pois me viste sempre interessada em te prejudicar; Como poderias ler fundo do meu coração? Fiz tudo o que podia para me tornar tua inimiga; Não queria que vivesses onde eu mesmo vivia. Em público ou em segredo lutei sem descansar. Pra colocar um oceano entre nós; cheguei mesmo a punir, por lei especial, Quem ousasse pronunciar teu nome em minha presença. Contudo, se a pena deve corresponder ao crime, Se teu ódio deve igualar ao meu ódio, Jamais uma mulher foi tão digna de piedade, E totalmente indigna, senhor de sua inimizade.
Hipólito
Uma mãe ciumenta raramente abre mão, Dos direitos dos filhos pro filho de outra esposa. Eu sei isso, senhora; ciúmes importunos. São os frutos mais comuns de um novo matrimônio. Qualquer outra teria por mim iguais suspeitas. E teria me feito sofrer, talvez mais privações. (pg 42, pg 43; pg 44)
A suposta morte de Teseu simboliza aqui a ausência da razão, fazendo com que aflorem os desejos ilegítimos (Fedra por Hipólito e entre este e Arícia) até então controlados. Ela não odeia Hipólito, ela o ama.
Aqui cabe uma observação para o leitor entender melhor essa história: quando Fedra chegou à Grécia como noiva de Teseu, ela se apaixonou por Hipólito à primeira vista. Em vão ela diz que tentou afastá-lo de sua mente. Ela orou a Vênus por alívio e fez sacrifícios por ela sem sucesso. Cada vez que ela olhava para Teseu, ela via em seu rosto as feições de Hipólito. Finalmente, ela baniu Hipólito de sua presença. No entanto, ela logo descobriu que não poderia banir seu amor por ele. Então, ela desejou a morte como a única maneira de terminar seu amor malfadado.
Fedra conta a Enone um terrível segredo:
“... Eu o evitava sempre em toda parte, mas, para minha miséria, Eu o encontrava sempre nas feições do pai. Contra mim mesma me revoltei. E arranjei coragem para persegui-lo. Para banir o inimigo que eu idolatrava. Fantasiei o ódio de uma madrasta injusta; E com gritos constantes exigi seu exílio, Arrancando-o do peito e dos braços do pai. Eu respirava, enfim; depois que foi embora. Tive dias tranquilos. Voltei a inocência. Submissa a meu marido. Ocultas as minhas penas, Dediquei-me aos frutos do enlace fatal. Precauções inúteis!; o destino é cruel! Conduzida a Tresena por meu próprio esposo, Revi ali o inimigo que tinha expatriado; Minha ferida, ainda viva recomeçou a sangrar, Não é mais de um ardor escondido no peito: É Vênus, desta vez, Vênus inteira, Que salta em minhas veias. Agora o meu crime já me enche de horror, Sinto ódio da vida e abomino o amor; Eu queria morrer para salvar a minha honra...” (pg 28)
O que chama a atenção é como Racine descreve essa paixão como um mal que afeta a mente e o corpo do personagem, um mal que às vezes resulta em um estado de extrema depressão, às vezes, uma exaltação alucinada, sem solução fácil, a mudança perpétua da vontade. Uma paixão beirando a doença que nos dias de hoje seria curada por um bom Rivotril. Um quadro de paixão em alto grau e, para sermos mais precisos, na pintura de uma paixão de Fedra. O excesso de uma bile negra misturada ao sangue causando desordens desses humores, depressão, choro e suspiro, desejo de morrer.
Quando a serva de Fedra anuncia a morte do marido Teseu, poderia haver uma luta pelo poder. Poderia haver uma luta fatricida em que Hipólito, Arícia e um dos filhos biológicos de Fedra reivindicariam o trono. Enone aconselha Fedra a contar a Hipólito seu amor por ele e a apoiar a reivindicação ao trono. Se ela não o fizer, seu medo é que Hipólito possa organizar uma rebelião e reivindicar o trono.
Aquela tensão precisava ser contornada. Quem será aquele que será sacrificado para a normalização de tudo? Fedra se declara para Hipólito:
Fedra:
...”A viúva de Teseu se atreve a amar Hipólito! Não podes deixar vivo esse monstro espantoso; Eis meu coração; aqui deves ferir. Ansioso de expiar a sua culpa, Ekle bate feliz esperando o teu golpe. Fere! Ou, se achas meu coração indigno de teus golpes, Se teu ódio me nega um suplício tão doce, Se não queres manchar tuas mãos com um sangue tão vil. Poupa teu braço e me dá a tua espada” (pg 47)
Essas palavras refletem de uma maneira intensa na cabeça de Hipólito, que simplesmente desaparece de cena. Vendo que o amor de Hipólito não foi correspondido, Fedra recebe um conselho de Enone. Vendo-se rejeitada, aconselha Fedra a tomar o poder, e Fedra responde:
Fedra
Eu, reinar! Governar um estado, eu, cuja a débil razão já não governa imensa? Eu, moribunda?! Eu?! (pg 51)
Hipólito está rendido aos encantos de uma outra mulher. E sua paixão o devora. Seu nome é Arícia. Ela foi proibida de se relacionar com qualquer homem. E o motivo de tal proibição era para pôr fim à sua estirpe. No entanto, dona de uma beleza sem igual, ao ver Hipólito, se apaixona. Os dois estão apaixonados um pelo outro. Ao amar Arícia, ele despreza Fedra, que é tomada por uma dor imensa.
No meio desse turbilhão de conflitos, Teseu retorna a Tresena. Está cansado e sente que existe algo estranho. Algo havia mudado, mas não sabia muito bem o que estava acontecendo. O filho recebe o pai de uma maneira fria, Fedra não veio abraçá-lo. É o momento perfeito para que Enone esperava para tentar salvar Fedra. Ela vai até o rei e diz que seu filho estava tentando casar-se com Fedra:
Enone
Fedra tentava somente um pai infortunado: Envergonhada com o ataque do amante insensato. Temendo o fogo delituoso que percebeu em seus olhos. Fedra preferiu a morte, senhor, e sua mão assassina. Ia extinguir de seus olhos a luz inocente. Eu a vi erguendo o braço corri por sua vida. Sozinha, por teu amor, consegui preservá-la: E por lamentar ao mesmo tempo tua dor e suas ânsias, É que sirvo, meu senhor, de interprete das lágrimas (pg 64)
Teseu chama o filho, achando que seria advertido por estar apaixonado por Arícia. É surpreendido pela acusação que acabara de ouvir de Enone. Hipólito se defende, mas não convence Teseu. Precisa fazer justiça. E resolve condenar o filho ao desterro, e roga que Netuno o castigue severamente. Hipólito morre. Os pedidos de Teseu haviam sido atendidos por Netuno, mas só que já era tarde demais.
Quando Fedra soube o que Enone fizera, expulsa sua fiel confidente do palácio. Logo em seguida, Fedra se mata para evitar ver o Rei. Foi a partir desse momento que Teseu soube através de Arícia toda a verdade.
Estamos lidando nessa tragédia com sentimentos elementares e corrosivos que compõem (nas palavras de Millôr) a paleontologia dos sentimentos humanos. A paixão de Fedra por Hipólito é avassaladora, ela tem consciência disso. Teseu, seu marido, deixa a raiva o dominar e sabe que invoca imprudentemente a maldição de Netuno. Hipólito intencionalmente desobedece ao seu pai e é encorajado por Arícia a propor casamento. A servidão de Enone por Fedra excede os limites morais.
Eu fico por aqui. Para aqueles que gostam das tragédias clássicas, Fedra, de Racine, é uma interpretação original de Hipólito de Eurípedes. Um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.