Desejo
Existem pessoas que nascem para uma coisa. O destino, a história de vida tornam-se elementos primordiais para se definir um caminho a ser seguido. Se Eugene O’Neill escolhesse a profissão de piloto de caça, seria abatido no ar por alguma metralhadora inimiga. Claro que falo isso apenas para dizer que Eugene O’Neill nasceu para ser dramaturgo. Eugene O’Neill nasceu em Nova York, adivinhem onde? Em um hotel na Broadway em 1888. Quando falamos em Broadway, ligamos logo ao teatro. Filho de James O’Neill e Mary Ellen Quinlan O’Neill, imigrantes irlandeses, eram artistas de teatro.
Seu pai, James O’Neill, era um ator de renome. Sempre optou por peças comerciais. No ano em que Eugéne O’Neill nasceu, ele estava interpretando o Conde de Monte Cristo, de Alexandre Dumas, uma peça que tinha um enorme apelo popular. Mas tudo na vida tem um preço. Por razões de sobrevivência, sua arte interpretativa ficou restrita a um nicho, e de lá não saiu. Segundo alguns biógrafos, James O’Neill subiu no palco mais de seis mil vezes para interpretar o personagem Edmond Dantès, por mais de vinte anos.
A mãe de Eugene O’Neill, Mary Ellen Quinlan O’Neill, era filha de comerciantes. Teve um grande sonho que não conseguiu realizar na vida: ser pianista. Filha de imigrantes irlandeses teve uma vida confortável até se encontrar com seu futuro marido James. Mas um escândalo provocado pela amante de seu marido, a qual reivindicava a paternidade de seu filho a James a devastou. Morreu tuberculosa.
Eugene O’Neill tinha um irmão mais velho, James O’Neill Jr. Dono de um humor e de um cinismo desconcertantes, exerceu um papel central na vida de Eugene O’Neil. A começar pelos poetas malditos. A morte de sua mãe acabou exercendo um papel enorme em sua vida.
Mas foi aos dezessete anos que Eugene O’Neill foi admitido na Universidade de Princenton, onde acaba sendo expulso por não aguentar o ambiente convencional e o esnobismo reinante antes de completar o seu primeiro ano. O motivo da expulsão foi uma garrafa lançada na janela da casa de Woodrow Wilson, que mais tarde veio a ser o presidente dos Estados Unidos da América. Dependentes do pai, eram vistos como dois fracassados na vida. Eugene O’Neill tinha algo que fugia totalmente do convencional. Seu aprendizado se deu na rua, ou seja, fora dos meios institucionais. Nas noites junto com o irmão Jamie e conhecendo as livrarias de Manhattan, acabou abraçando a causa anarquista em um primeiro momento. Conheceu Proudhon, Zola, Mirabeau, Bernard Shaw, Oscar Wilde, Nietzsche.
Acabou indo para Honduras, depois foi para Argentina, conseguiu um emprego, mas não conseguiu ficar por longo tempo, Quando completou 23 anos, numa situação quase miserável, Eugene O’Neill juntou-se à família, sendo socorrido pelo pai outra vez. Só que dessa vez com uma condição: teria que trabalhar para o pai na peça, com um papel secundário na peça “O Conde de Monte Cristo”.
Quando acabou a temporada, resolveu (graças aos contatos do pai) trabalhar como repórter. Tinha uma coluna onde escrevia crônicas provocativas, humorísticas, inspiradas em seus autores favoritos. Foi ali que escreveu a sua primeira grande obra-prima: “Longa jornada noite adentro”. Essa peça foi um divisor de águas em sua brilhante carreira. Mas vamos ficar por aqui.
A obra de que falaremos hoje é outra, chama-se: “Desejo”. Falaremos de algumas obras desse grande autor, mas vamos focar nessa em especial. A peça é baseada em temas gregos de incesto, infanticídio. Ele enquadrou a sua história no contexto desse conflito em sua própria família. A história é de um pai lascivo, um filho fraco e uma esposa adúltera, e um infanticídio. A princípio, a peça não foi bem recebida. Houve um certo desprezo da peça pelas convenções da Broadway.
A peça tinha tudo para ser um dramalhão. Só que não. Quando você lê a forma como Eugene O’Neill conduz as palavras, a história, você sente algo poderoso em cada cena. Não foi à toa que ela foi aclamada como uma das grandes peças contemporâneas do século XX. A visão de mundo do autor está completamente impregnada por um sentimento trágico da vida. “Desejo” é uma peça rica em simbolismo e poesia. Foi considerada precursora dos movimentos de vanguarda no teatro americano.
“Desejo” é uma história que se passa na “Nova Inglaterra”. Eugene O’Neill combina habilmente seus temas e influências mais poderosos – tragédia grega, relações pai-filho, a busca por um deus mãe, as lutas entre os impulsos práticos e sensuais. Além disso, a peça também trata sobre Édipo, uma condição que o autor utiliza numa clara referência a Freud em sua interpretação sobre seu famoso conceito complexo de Édipo, em que o filho sente o desejo inconsciente de matar o pai para querer a exclusividade da mãe. Para buscar essa história, ele resgata Hipólito de Eurípedes, Fedra de Racine e Édipo de Sófocles. Podemos dizer que “Desejo” é uma versão judaico-cristã da tragédia grega.
No início do Primeiro Ato, O’Neill cria um tom sombrio ao descrever o ambiente onde toda a história irá transcorrer:
“A ação da peça se desenrola dentro e fora da casa dos Cabot, numa fazenda em Nova Inglaterra, no ano de 1850. O lado sul da casa dá para um muro de pedra que tem ao centro uma cancela de madeira abrindo para a estrada. A casa está bem conservada, embora precise de pintura. Suas paredes são de um cinzento esmaecido, e o verde das janelas está desbotado. A cada lado da casa dois olmos enormes. Os seus galhos descem até abaixo do telhado – parecem proteger e, ao mesmo tempo, subjugar. É sinistro o seu aspecto paternal de ciumenta absorção. Os olmos adquiriram, no seu íntimo contato com os homens da fazenda, uma aparência humana. Eles se inclinam opressivamente sobre a casa. São como mulheres exaustas descansando os peitos, as mãos e os cabelos em cima do telhado. Quando chove, as suas lágrimas caem monotonamente e vêm apodrecer na terra. Um caminho, passando pelo ângulo direito da casa, parte da cancela para atingir a porta da frente. Neste lado existe um pequeno alpendre. A parede dá de frente para o público, tem suas janelas no andar superior e duas maiores no andar inferior. As de cima são: a do quarto do pai e a do quarto dos filhos; à esquerda, no andar térreo, acha-se a cozinha; e, à direita, a sala de visitas, cujas persianas estão sempre cerradas.” (Primeiro Ato)
Eben Cabot é um jovem de 25 anos, boa aparência. Ele está observando o pôr do sol quando sai da casa e toca o sino. Hora do jantar. Seus irmãos de parte de pai, Pedro e Simão, ambos com quase 30 anos, estão trabalhando pesado, mas ficam vendo a beleza daquele pôr do sol magnífico. Ambos discutem a fazenda. Todos esperam a morte do pai, já com os seus 75 anos, para pegar a herança (que é a fazenda). O pai, que se chama Cabot, se gaba dizendo que vai viver mais 25 anos e que a fazenda não ficará para ninguém, pois todos morrerão antes dele. Sentia-se (na velha máxima de Nelson Rodrigues) “com uma saúde de vaca premiada”.
Eben (o meio irmão mais novo), ouvindo a discussão lá fora entre Pedro e Simão sobre a perspectiva da fazenda, chama eles para jantar. No meio do jantar, Eben afirma que seu pai, Cabot, assassinou sua mãe por trabalhar muito duro na fazenda. Eben culpa também os seus meios-irmãos por não protegerem sua mãe. A conversa segue, e os irmãos refletem sobre a ausência do pai. Já fazia um mês que o pai havia partido de charrete e ainda não tinha voltado. Eben vai visitar uma mulher chamada Minnie, que está perto dos quarenta anos de idade. Era uma mulher promíscua. Todos (inclusive o pai) já tiveram relações sexuais com ela. Furioso dispara o seguinte sentimento:
“Ela só me interessou porque é cheia de corpo, porque é quente. E porque antes era dele agora é minha! E ela não é tão ruim assim! Há no mundo gente pior. Espere só pela vaca que casou com o velho! Aposto que é muito pior que Minnie!” (pg 45)
Eben acorda Pedro e Simão com notícias da aldeia de que seu pai havia se casado novamente. Essa seria a terceira mulher, pois as outras duas faleceram. Os irmãos amaldiçoam a nova mulher amargamente, pois, a partir daquele momento, tudo irá para a nova mulher do pai. Pedro e Simão prometem ir embora para a Califórnia atrás de ouro.
Eben promete a cada um deles 300 dólares das economias de sua mãe se eles abrirem mão de suas ações na fazenda. Dinheiro que lhe permitirá viajar de barco para Califórnia. Os irmãos topam e vão embora. Eben fica feliz. Se sente mais dono da fazenda.
Até que subitamente aparece o pai com a esposa. Os olhares de Eben e Abbie (o nome da esposa do pai) se encontram. Os dois, na ausência do pai, estabelecem diálogos duros e violentos sobre o futuro da fazenda. Abbie diz que ela é a verdadeira dona, enquanto Eben diz que o dono é ele. Nessa disputa, Abbie tenta convencer o marido de que ela tem mais direitos sobre a fazenda. Ela se senta ao lado do marido e exige uma resposta. Cabot diz que a fazenda precisa de um filho. Abbie diz que é ela, e não a fazenda que precisa de um filho. Nesse diálogo ela direciona a Eben. Cabot conta a história. Ela tenta disfarçar e não ouve sua história. Ele promete um filho a Abbie e se emociona. Os dois têm uma discussão. Perturbado, Cabot resolve ir dormir com suas vacas.
Abbie sabe que o filho estabelece com ela uma certa cumplicidade sexual, uma paixão cega, mas que o ódio era a melhor maneira de esconder aquele sentimento. Com a saída do pai, Abbie vai até o quarto de Eben. Eles se beijam apaixonadamente, mas Eben a rejeita empurrando. Eles discutem sobre a fazenda. Eben chora consternado por sua falecida mãe. Eles discutem. E Abbie resolve entrar no quarto de mãe de Eben:
“Poucos minutos depois. Vê-se o interior da sala. Uma sala severa, abafada como um túmulo em que a família toda estivesse enterrada viva. Abbie está sentada no sofá. Acendeu todas as velas e a sala mostra-se em todas as feiuras que escondia. Uma transformação operou-se na mulher. Ela agora atemorizada, como que pronta para fugir. A porta se abre e Eben aparece. Seu rosto traduz confusa obsessão... Fica olhando para ela com os braços caídos, pés nús e chapéu na mão. (pg 105)”
Eben sente o espírito de sua mãe, cujos restos mortais foram mostrados naquele quarto após a sua morte. Eben diz que sua mãe odiaria ser substituída por Abbie, mas Abbie diz que sua mãe iria adorar ver os dois juntos. Ela o abraça com uma mistura de luxúria e amor de mãe. Eles prometem devoção mútua:
“Eu canto para você! Eu morro por você! (A despeito de seu avassalador desejo por ele há um sincero amor maternal nos seus gestos e na sua voz. Uma horrível mistura de sensualidade e de amor maternal) Não chore, Eben! Eu ficarei no lugar de sua mãe! Serei tudo o que ela foi para você! Um beijo, Eben! (puxa a cabeça dele. Ele esboça um desesperado gesto de resistência. Ela é toda meiguice.) Não tenha receio! Será um beijo puro, Eben! Igual lhe daria sua mãe. E você também me beija como se fosse como se fosse meu filho, meu menino. Um beijo Eben! (Beijam-se de um modo contido. De repente o desvairamento da paixão a subjuga. Ela o beija com luxúria cada vez mais, e ele a abraça para retribuir esses beijos. Subitamente, como na cena do quarto, ele se desvencilha violentamente e se põe de pé. Treme da cabeça aos pés num estranho estado de terror. Abbie estende para ele os braços numa súplica fremente) Não me deixe Eben! Não vê que não basta eu querer você como mãe? Que é preciso mais, muito mais, mil vezes mais para que eu fique satisfeita e você também?
(como se falasse para alguém no quarto)
Não! Não! Qual é a tua vontade? O que estais querendo dizer?
Abbie responde:
Ela está dizendo para você gostar mais de mim. Ela sabe que eu gosto de você e que serei boa para você. Também não sente isso? Ela está dizendo para você me amar!...
Eben ( responde)]
Hum... Eu sinto que ela... talvez... mas não posso entender por quê... se foi você quem veio roubar o lugar dela... na casa dela?...
Eben
(o rosto subitamente iluminado por um sorriso de triunfo)
Agora! Agora compreendo por quê! É uma vingança contra ele! Depois disso ela vai poder dormir tranquilamente no seu túmulo!
Abie
(Impetuosamente)
Vingança dela contra ele! Vingança dele contra mim – e de mim contra você – e de você contra mim – vingança de nós contra ele – vingança de Deus contra todos! Que importa? Eu te amo, Eben! Deus sabe que te amo. (pg 109, pg 110, pg 11)”
Bem, o filho nasce. O pai será quem? Acho que a pergunta torna-se um pouco óbvia. No entanto, o desfecho eu não vou contar, mas fiquem certo de que irá se surpreender e muito. Nas palavras de Magalhães Junior, que faz o prefácio da peça: “Nas mãos de outro dramaturgo, de menos talento e gosto, não teria passado de dramalhão”. Mas Eugene O’Neill fez uma obra-prima.
Este será um ano em que vou ler muitas peças teatrais de autores de todas as escolas. Clássica, moderna, enfim... A única coisa que posso dizer aqui é que “Desejo”, de Eugene O’Neil, merece um lugar de honra na sua estante.