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A Volta ao lar

A definição “teatro do absurdo” foi popularizada pelo estudo de Martin Esslin. Na verdade, Martin Esslin derivou sua expressão de Albert Camus, que escreveu sobre o sentimento absurdo que o homem experimenta ao tentar dar um sentido ou um propósito à sua existência em um mundo que desmente qualquer ideia de racionalidade e de lógica. A peça “Volta ao Lar”, de Harold Pinter, nos mostra uma visão de mundo em que o propósito da existência humana e a incapacidade de comunicação entre os seres humanos estão condenados ao fracasso.

O enredo e os diálogos dessa peça não se desenvolvem seguindo um padrão lógico e sequencial. Tais diálogos foram uma reação às formas dramáticas e às convenções teatrais anteriores e também aos acontecimentos teatrais chamados de realistas. Para o Teatro do Absurdo esses eventos diziam respeito à vida após a Segunda Guerra Mundial, período durante o qual muitos começaram a questionar o sentido da vida.

É importante perceber uma coisa importante: a linguagem real dos seres humanos, quando isolada do palco, sublinha o absurdo das aspirações humanas e torna-se cômica e patética, pois marca os estágios da incapacidade dos seres humanos de se comunicar entre eles. Uma confusão insustentável levando ao nonsense, que nada mais é do que buscar sentido na falta de sentido. A consciência dessa falta de propósito em tudo que fazemos produz aquilo que Camus chamava de “angústia metafísica”.

A palavra “absurdo” descreve seu significado como fora de harmonia dentro de um contexto musical. Uma desvalorização da linguagem. Podemos dizer que, na música clássica, Schoenberg, em meados de 1930, rompe com o sistema tradicional da harmonia tradicional. O teatro do absurdo é a composição dodecafônica, que tem como base a série escolhida livremente.

Se retomarmos a obra Poética aristotélica (resenhada aqui no site), observaremos que a tragédia era ali definida como uma representação dramática composta pelo encadeamento de pequenas situações regidas pela lógica e que formam um conjunto, delineando um início, um desenvolvimento e um fim. Os personagens trágicos provocam na plateia um efeito catártico na medida em que garantem o movimento sequencial, culminando com o desfecho e a resolução da trama.

Bem, feita a introdução vamos à peça? O tema desta peça centra-se nos papéis e interações de homens e mulheres. A casa é só de homens, presidida por um patriarca chamado Max. Uma casa onde reina a disfuncionalidade masculina. Um açougueiro que se gaba de sua juventude tosca e lança insultos contra o seu irmão e os seus filhos. Max (o pai) às vezes lança mão da agressão física para afirmar que é o chefe da casa.

O comportamento de Max em relação às mulheres, incluindo sua falecida esposa Jessie e sua nora Ruth, baseia-se em seus papéis em relação aos homens e à família. Max refere-se a ambas as mulheres em termos depreciativos – vadias e cadelas –, mas elogia a beleza, a maternidade, a habilidade culinária e outros traços tradicionalmente femininos. Os filhos de Max incorporam outras maneiras de ser masculino. Leny, o cafetão, aprecia atos violentos. Na primeira conversa que Lenny estabelece com Ruth, que é a esposa do seu irmão mais velho, faz o seguinte comentário:

Lenny: Eu te digo porquê. (pausa ligeira) Uma noite, não faz muito tempo, uma noite, no cais do porto, eu estava sozinho embaixo de uma arcada, olhando os homens naquele movimento todo de navios, tira e bota as coisas pra dentro e pra fora, quando uma determinada senhora chegou perto de mim e me fez uma determinada proposta. Esta dita senhora há dias me procurava pra um determinado fim. Mas tinha perdido a pista de meu paradeiro. Contudo, o fato é que afinal as nossas linhas se cruzaram e ela então aproveitou o ensejo para determinada proposta. Bem, a proposta em questão estava perfeitamente em ordem e normalmente eu teria concordado em executá-la. Não sei se fui – claro eu teria concordado com a proposta na rotina normal dos acontecimentos. Mas sucede que a tal senhora estava caindo de podre. De modo que eu me recusei. Aí a senhora em questão se tornou muito insistente e começou a tomar liberdades comigo aproveitando a meia escuridão da arcada. Liberdades essas que, sob nenhuma hipótese, ninguém admitiria que eu fosse obrigado a tolerar, as coisas sendo como eram e aí eu acertei um nela que nem te conto. Aliás, a minha intenção na hora era acabar de uma vez com ela, sabe, matá-la, e a verdade é que, as coisas sendo como são, eu não ia ter dificuldade em matar a mulher, não ia ser nada demais. O chofer da mulher, quem é quem havia me localizado pra ela, tinha entrado num botequim da esquina pra tomar um negócio, o que acabava de deixar eu e a senhora sozinhos, você vê, ali embaixo da arcada, olhando os vapores todos soltando o vapor, sem ninguém por perto, tudo tranquilo na Frente Ocidental, ela ali em pé, encostada no muro, quer dizer, em pé, escorregando muro abaixo, porque o soco que eu dei tinha arriado ela. Bem, para resumir, estava tudo a meu favor, prum assassinato. Não precisa me lembrar do chofer, porque ele nunca ia dizer nada. Era um velho amigo da família. Mas no fim eu pensei que... Ahnnn! Por que me meter numa chateação enorme?... você sabe, dar um sumiço no cadáver e tudo isso, mais aquele estado de suspense em que se fica. Mandei mais um direto no nariz dela, acertei uns dois no estômago e resolvi deixar pra lá. (pg 68)

Temos Lenny, o cafetão, e um outro irmão, Joey, que assume o papel de bruto, trabalha na construção civil – atlético, pouco inteligente e rápido para satisfazer os seus desejos mais primitivos. Ele não prejudica as mulheres, mas não tá nem aí quando elas dizem “não” ao sexo. Sam é o menos “masculino” de todos, ele tem com as mulheres um comportamento ambivalente. E o irmão de Max, de 63 anos, é um chofer, que, segundo ele, é o melhor do ramo. Suporta as zombarias de todos os outros. Seria o mais passivo, podemos dizer assim.

Bem, temos Teddy, o filho mais velho de Max, marido de Ruth. Ele lutou na Segunda Guerra Mundial. Foi morar na América, onde mora com a sua família e têm três filhos. Trabalha como professor de filosofia em uma universidade. Ele afirma amar sua família, mas também expressa um certo desprezo em relação a eles. Era o filho preferido da mãe, Jessie, de acordo com Sam, mas ela já morreu. Teddy é um cara lógico e prático. Não tem emoção, que pouco faz para interferir no comportamento da esposa com o irmão Lenny. Ele a deixa a contragosto para voltar para América, um lugar que ele ama por sua limpeza e ordem.

Nesse hospício cheio de vícios masculinos, rola uma competição para ver quem vai assumir o cargo de macho alfa. Ruth, em um primeiro momento, é tratada como “prostituta” pelos homens da casa. Mas, quando Teddy revela que ela é a sua esposa, o discurso muda, ou seja, ela é considerada a esposa, portanto, merece ser respeitada. Ela é esposa, mãe e amante... e depois novamente prostituta. Os papéis em constante mutação. A presença dela repercute na vida de todos, pela falta da presença de uma mulher na casa. Joey precisa mais de uma mãe do que de uma amante. Ruth se torna maternal – embora seu tom maternal seja algo desconfortavelmente freudiano –, acariciando seus cabelos enquanto eles se abraçam e se acariciam como amantes. Para Lenny, ela se torna sedutora dominante, baseada na exploração sexual que ela não aceita, para equilibrar seu próprio domínio sobre as mulheres.

A entrada de Ruth dentro da casa modifica a rotina e as estruturas de poder. Ela avança diretamente em direção aos dois irmãos de seu marido e exerce seu domínio sobre os homens, mas mantém o controle da tensão sexual que se forma entre eles.

“(ela desce a escada vestida. Entra na sala. Sorri para o grupo, senta. Silêncio)

Teddy: Ruth... a família está convidando pra ficar aqui, mais algum tempo. Como uma espécie de hóspede. Se você gosta da ideia eu não me importo. Organizamos tudo direitinho lá em casa, não vai haver nenhuma dificuldade... até você voltar.

 Ruth: Que simpático da parte deles (pausa)

Max: É um convite feito de todo o coração.

Ruth: É muita bondade de vocês.

Max: Ora... seria um prazer (pausa)

Ruth: Mas eu ia dar muito trabalho

Max: Trabalho? Você não está falando sério. Que trabalho? Olha vou te dizer uma coisa. Depois que Jessie morreu, hein Sam, não teve mais mulher nenhuma nesta casa. Nem uma. Aqui dentro nem uma. E vou te dizer por quê. É que a memória da mãe deles era tão preciosa que qualquer outra mulher a teria... conspurcado. Mas você... Ruth... você não é só simpática e bonita, como é parenta. Você é nosso sangue, agora. Pertence a família. (pausa)

Ruth: Estou comovida.

Max: Claro que você deve estar comovida. Eu estou. (pausa)

Teddy: Mas, Ruth, preciso te dizer... que você vai ter que dar uma ajudazinha, se ficar. Digo financeiramente. A situação de papai não é lá muito brilhante, agora.

Ruth: (para Max) Ah, que pena!

Max: não é nada, Ruth. O que você teria era que me ajudar era uma coisa à toa. Só um dinheirinho de vez em quando. Coisa pouca. Bobagem. Só enquanto esperamos Joey entrar pro ranking do primeiro time de boxe, não demora. Quando Joey estiver no alto, bem... (pausa)

Teddy: ou pode voltar pra casa comigo.

Lenny: Te arranjamos um apartamento (pausa)

Ruth: um apartamento?

Lenny: É um apartamento.

Ruth: Onde?

Lenny: Na cidade (pausa.) Mas você vai morar conosco.

Max: Claro que vai. O teu lugar é aqui no seio da família.

Lenny: O apartamento lá, você ocupa algumas horas durante a noite, só isso.

Max: Apenas algumas horas durante a noite, só isso, só isso.

Lenny: Pra ganhar dinheiro necessário pra te manter aqui. (pausa)

Ruth: Quantos cômodos tem o tal apartamento?

Lenny: Poucos

Ruth: Eu quero pelo menos dois quartos, uma sala e banheiro.

Você não precisa de dois quartos, uma sala e um banheiro.

Max: banheiro precisa

Lenny: Mas o resto, dois quartos e uma sala?

Ruth: Ah, preciso mesmo.

Lenny: Um quarto e uma sala não dá?

Ruth: Não dá, não. (pausa) Eu quero um quarto de vestir, um living e um quarto de dormir. (pausa)

Lenny: Tá bem, eu te arranjo um apartamento com isso tudo.

Ruth: com esses cômodos todos assim direitinho mobiliado?

Lenny: Você vai ver.

Ruth: uma empregada só pra mim.

Lenny: Natural (pausa) Em suma nós te financiamos no começo e quando estiver estabelecida você nos paga as prestações

Ruth: Ah, não, de maneira alguma – isso não.

Lenny: Mas como?

Ruth: vocês teriam que aceitar todas as despesas iniciais como um investimento de capital. (pausa)

Lenny: Percebo. Tá certo.

Ruth: Fornecem também o meu guarda-roupa, naturalmente.

Lenny: Fornecemos tudo. Tudo que você precisar.

Ruth: Hiii! Eu preciso de tanta coisa. E, e não tiver tudo o que preciso, eu não fico contente, não é mesmo?

Lenny: Vai ter tudo.

Ruth: Então vou ver tudo que preciso e faço um relatório para vocês assinarem na presença de testemunhas.

Lenny: Naturalmente.

Ruth: Todos os aspectos do acordo e as condições da minha manutenção e respectiva prestação de serviços terão que ficar bem claros no contato, para mútua satisfação.

Lenny: Mas é evidente (pausa)

Ruth: Quer saber de uma coisa – é um acordo e pode funcionar muito bem.” (pg 126, pg 127, pg 128, pg 129, pg 130)

A autoridade de Ruth mantém o controle da tensão sexual que se forma entre eles. Quando Lenny se encontra com Ruth pela primeira vez, ela o convida para o seu colo e diz lhe dia para se deitar no chão enquanto ela derrama água em sua garganta. Acostumado a ser agressor nas interações com as mulheres, ele se surpreende com a rapidez com que ela ganha poder na situação. Em seu relacionamento com Joey, Ruth se envolve com jogos de amor, mas nunca lhe dá satisfação da relação sexual – novamente estabelecendo e mantendo o domínio da tensão sexual. Mesmo quando a família começa a planejar que ela se torne uma prostituta, dona de casa e brinquedo sexual para uso próprio, ela rapidamente vira a situação exigindo um contrato e um grande apartamento só para ela.

Teddy resolve voltar para a América junto com seus três filhos sem sua esposa. No entanto, enquanto Ruth se senta, com os seus sogros prostrados a seus pés, está claro quem agora detém o poder nessa casa, mas o futuro não fica claro para todos.

Fico por aqui. Indico a leitura da peça “A Volta ao Lar”, de Harold Pinter. Detalhe: na minha edição aparece a encenação feita no Brasil, com Fernanda Montenegro, Ziembinski, Sérgio Brito e Cecil Thiré. Esse livro merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 28 maio 2021 (Atualizado: 28 de maio de 2021) | Tags: Teatro


< O Rei Lear da Estepe As palavras >
A Volta ao lar
autor: Harold Pinter
editora: Editora Peixoto Neto
tradutor: Millôr Fernandes
gênero: Teatro;

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