As palavras
Lembro-me quando Jean Paul Sartre morreu, em abril de 1980. Não foi um choque, pois sabíamos na época que sua saúde não estava muito boa. Lembro-me que, em 1980, morreram Cartola, Nelson Rodrigues, Vinícius de Moraes, John Lennon. Foi um ano de muitas perdas.
Jean Paul Sartre para mim sempre despertou um duplo sentimento. O primeiro sentimento, claro, como não poderia deixar de ser, era como o grande escritor que foi. O segundo sentimento era de uma terrível decepção quando ele assumiu o maoísmo na década de 1960. Sempre tive por Mao Tsé-Tung uma espécie de nojo. Foi o líder que, juntamente com Stalin, assumiu o lado canalha do marxismo. Na época eu era um trostskista. Sempre vi na figura tanto de Stalin como de Mao o que de pior existia na humanidade. Chego a dizer, sem medo de errar, que eles se equiparavam a Hitler. Dois assassinos.
Sartre chegou a renegar Stalin e o partido comunista da antiga URSS, quando reconheceu os campos de concentração e o expurgo após a sua morte, em 1953. Em 1956, as tropas soviéticas invadiram a Hungria, cuja reivindicação por parte dos húngaros era apenas incluir a democracia no socialismo. Sartre fez críticas veladas a essa invasão. Em 1968, mais uma vez as tropas soviéticas invadiram a Tchecoslováquia banindo Alexander Dubcek, líder do partido comunista tcheco na época, que iniciou as reformas democráticas que ficaram conhecidas como “Primavera de Praga”. Sartre rompe com o Moscou. Sua atuação na revolta estudantil na França o fez romper com PCF (partido comunista francês). E assumir o maoísmo.
Bem, graças ao maoísmo e a sua Revolução Cultural, milhões de vidas foram ceifadas na China. Seu objetivo era “preservar” o comunismo chinês, purgando os restos de elementos capitalistas e tradicionais da sociedade chinesa, como os Confucionistas, e impor o “pensamento de Mao Tsé-Tung” como ideologia dominante no PCC. E financiou o Khmer vermelho, que, influenciados pelas ideias de Sartre, matou todos os intelectuais cambojanos que viviam em Paris quando retornaram à capital Phnom Penh, ainda no aeroporto. Confesso a vocês que essa parte da história de Sartre me provoca um pouco de “náusea”.
Mas fiquemos com a parte criativa de Jean Paul Sartre, que se tornou mundialmente famoso por seus romances, por sua dramaturgia e pela filosofia. Sua principal contribuição como filósofo no século XX foi seu sistema existencialista, que é um conjunto de ideias que descreveram a liberdade, as responsabilidades dos humanos dentro de uma estrutura de dignidade humana. Ou seja, ele desenvolveu uma filosofia que se preocupava com a existência em todas as suas formas: social, política, religiosa e filosófica.
Todas as obras d Sartre, sejam romances, peças, ensaios ou grandes tratados filosóficos, foram meios pelos quais ele apresentou suas ideias. Ele alternava os gêneros literários mais para atender às suas demandas filosóficas do que para satisfazer qualquer propósito estético.
Jean Paul Sartre escreveu “As Palavras” (livro de que falaremos hoje), sua autobiografia, quando tinha 59 anos. Essa autobiografia abrange o período dos dez primeiros anos de sua vida. Essa autobiografia é comparada às “Confissões” (já resenhado aqui) de Jean Jacques Rousseau. Sem dúvida alguma. é uma obra-prima de autoanálise. Sartre explora como as palavras, a linguagem e os livros se conectam à experiência humana.
Na primeira parte de “As palavras”, intitulada “Ler”, Sartre afirma:
“Comecei a minha vida como hei de acabá-la, sem dúvida: no meio dos livros” (pg 26)
Mesmo não sabendo ler, reverenciava a biblioteca do seu avô, perdendo-se entre vários títulos, de temas diferentes uns dos outros e estilos literários. Sartre observava como seu avô trabalhava com os livros. Seu pai fazia livros, confeccionava livros. Sartre ficava deslumbrado ao ver aquele universo.
Mas não era algo fácil. Sartre conta a decepção seu avô com o seu editor quando recebia os direitos autorais. Foi quando descobriu na prática a exploração do homem sobre o homem, na relação do seu avô com o seu editor:
“Meu editor me assalta como numa floresta”. Eu descobria, estupefato, a exploração do homem pelo homem. Sem essa abominação, felizmente circunscrita, o mundo, no entanto, apresentar-se-ia bem feito: os patrões davam segundo suas capacidades aos operários segundo seus méritos. Por que era preciso que os editores, esses vampiros, o descompusessem, bebendo sangue do meu pobre avô? Meu respeito cresceu por aquele santo homem cujo devotamento não obtinha recompensa: fui preparado desde cedo a tratar o magistério como um sacerdócio e a literatura como uma paixão. (pg 29)
Foi nos livros que Sartre achou o seu porto seguro. Na leitura e no curso das coisas mundanas, a confiança que ele depositava na palavra escrita, quando atribuiu a ela o status de verdade absoluta.
“Foi nos livros que encontrei o universo: assimilado, classificado, rotulado, pensado e ainda temível; confundi a desordem de minhas experiências livrescas com o curso aventuroso dos acontecimentos reais. Daí veio esse idealismo de que gastei trinta anos para me desfazer”( pg 33)
Na primeira oportunidade de escapar do tédio característico dos círculos sociais, Sartre descreve o seu mergulho no oceano literário que para ele era sinônimo de vida, de vertigem e, até mesmo, de inumanidade:
“Nossos visitantes despediam-se, eu ficava só, evadia-me deste cemitério banal, ia juntar-me à vida, à loucura nos livros. Bastava-me abrir um deles para redescobrir esse pensamento inumano, inquieto, cujas pompas e trevas ultrapassavam meu entendimento, que saltava de uma ideia à outra, tão depressa que eu largava a presa cem vezes por página, deixando-a escapulir, aturdido, perdido. Eu assistia a acontecimentos que meu avô julgaria certamente inverossímeis e que, não obstante, possuíam a deslumbrante verdade das coisas escritas”. (pg. 33)
A escrita de “As Palavras”, foi o grande adeus de Sartre à literatura. Livros e palavras desempenharam, como já foi mencionado acima, um papel importante na na vida de Sartre, e ele acreditava que eles definiam sua própria existência. “As Palavras” são sua tentativa de se afastar da escrita. Para isso, a volta à infância tinha um papel importante.
O livro é composto de duas seções: “Leitura” e “Escrita”. Sartre começa descrevendo brevemente a história de sua família. Ele então passa para a sua primeira infância e como ele era recluso. Ele era muito jovem quando desenvolveu um medo avassalador da morte e lutou contra o sentimento de inutilidade.
Sartre cultivou sua precocidade desde muito cedo; tendo aprendido o valor e as recompensas do bom comportamento, ele rapidamente viu como poderia manipular pessoas e situações em seu próprio benefício. Seu avô o encorajou a cultivar alguns valores, como a generosidade dos outros, comportando-se sempre como criança modelo. Ele ia à igreja aos domingos para ouvir boa música tocada por um conhecido organista; momentos de alta espiritualidade o encantavam e ele fingia orar. Sartre disse mais tarde que teve sorte de ter perdido seu pai, que provavelmente o teria esmagado, instigando um superego forte:
“Não há bom pai, é a regra; que não se faça disso agravo aos homens e sim ao laço de paternidade que apodreceu. Fazer filhos, não há coisa melhor, tê-los, que iniquidade! Houvesse vivido, meu pai ter-se-ia deitado sobre mim com todo o seu comprimento e ter-me-ia esmagado” (pg 14)
Seu avô, paciente e solícito, encorajou o menino a explorar o mundo do pensamento e a desenvolver sua individualidade. O relacionamento deles era muito próximo: Charles Schweitzer apareceu para a criança como um patriarca semelhante a Deus Pai, e o senhor idoso adorava seu neto. Se o relacionamento deles envolvia certo grau de encenação, nenhum dos dois desejava sair de seu papel.
Devido à solidão e à rejeição que sofria por outros colegas, Sartre era uma criança incomumente autoconsciente. Extremamente constrangido, ele achava que as pessoas o julgavam o tempo todo. Era recluso e introvertido, preferia sua própria companhia a brincar com os amigos. Palavras e livros eram sua fonte de companheirismo.
Desde muito jovem, ele sentiu que a vida é uma performance, ou seja, utilizamos vários disfarces e que é muito fácil nos esquecermos quem realmente somos. Quando criança, Sartre desempenhou vários papéis, mas nenhum deles refletia seu verdadeiro eu. Por exemplo, algumas pessoas só o conheciam como o famoso neto de Charles Schweitzer, um professor filósofo parente de um grande médico. Outros só o conheciam como filho, ou estudante, ou um menino tímido que não falava muito. Ninguém conhecia o verdadeiro Sartre – nem mesmo o próprio Sartre.
No livro, Sartre deixa claro que ama sua família. Eles o estimavam e ele os amava em troca. Todos fizeram Sartre se sentir especial, embora tenha certeza de que merecia elogios. Ele sabe que, em algum momento ao longo dos anos, a linha entre a representação teatral e a realidade se confundiu. Ele parou de tratar a leitura como um trabalho, tornando-se apaixonado por ela. Sartre conclui que é tarde demais para saber ao certo quem ele realmente é, mas os livros desempenharam um papel monumental na formação de seu verdadeiro eu. Ele nunca conseguia se separar das palavras.
No mesmo ano em que “As Palavras” foi publicado, Sartre recebeu o Prêmio Nobel de Literatura, mas recusou o prêmio devido às suas crenças pessoais e morais.
Sem dúvida alguma, Jean Paul Sartre foi uma personalidade, um grande intelectual e foi um dos maiores filósofos franceses. Apesar de suas opções políticas terem sido questionáveis, a resposta pode estar na própria filosofia sartreana, quando diz que a “liberdade é existência, e nela a existência precede a essência”. Isso significa que o que fazemos, como agimos em nossas vidas determina nossas “qualidades” aparentes. Não é que alguém diga a verdade porque ela é honesta, mas ela se define como honesta ao dizer a verdade repetidamente.
Somos as nossas escolhas. Nossas ilusões e imaginações sobre nós mesmos, sobre o que poderíamos ter sido, nada mais são do que autoengano. Nossas escolhas acontecem dentro de circunstâncias inevitáveis, somos produtos dela.
“As Palavras”, de Jean Paul Sartre, é um livraço que merece um lugar de HONRA na sua estante.