Carta aos escroques da Islamofobia que fazem o jogo dos racistas. Manifesto do diretor do Charlie Hebdo
O problema de ter muito livro em casa é que a gente não sabe o que tem. E por uma grande coincidência, após o atentado contra a sede da produtora do grupo Porta dos Fundos na madrugada de 24 de dezembro de 2019, quando dois coquetéis molotovs foram lançados por um grupo que se apresentou na internet como integralista, do qual felizmente ninguém saiu ferido, aconteceu de eu encontrar o livro de que falaremos hoje. O nome do livro é: “Carta aos Escroques da islamofobia que fazem o jogo dos racistas”.
O livro é uma defesa apaixonada da liberdade de expressão escrita por Stéphane Charbonnier, jornalista assassinado em 7 de janeiro de 2015 quando dois homens armados invadiram os escritórios do jornal satírico francês Charlie Hebdo. Tiraram a vida de doze homens e mulheres, mas antes queriam um homem chamado "Charb". Era ele o grande alvo.
Antes de falar sobre esse livro, eu gostaria de contar algo que sofri na pele. Como alguns de vocês provavelmente sabem, eu pertenci a uma banda chamada “Inimigos do Rei”. O nome a princípio causou um enorme furor. Éramos uma banda em que o humor era a nossa arma. O nome já começou causando um problema com Roberto Carlos (o Rei). Isso foi mais ou menos sanado através das entrevistas que dávamos. A segunda consequência foi a mais grave e silenciosa. Foram os Evangélicos que, através dos seus cultos, falavam que éramos os Inimigos de Deus (O Rei). A origem do nome “Inimigos do Rei” está na palavra “Rei”, que é um acróstico que significa Rancor Endêmico Improdutivo. (REI). Fomos enxovalhados nos cultos da Universal do Reino de Deus e da Assembleia de Deus.
Várias pessoas que assistiram ao nosso show, descumprindo as ordens dos pastores, viram que não se tratava de nada disso. Era uma perseguição fútil, aliás, como todos eles sempre foram. Um bando de fúteis que faturam em nome de Deus. Mais tarde graças à ironia do destino, lançaram uma campanha: “Os amigos do REI”, ou seja, os amigos do Rancor Endêmico Improdutivo (do R.E.I.). Exatamente como eles são.
Outro ponto que eu gostaria de abordar é o tratamento que as religiões dão aos ateus. É preciso ter muita valentia para alguém dizer que é ateu, publicamente nos dias de hoje. Os ateus são vistos como pessoas sem moral, sem escrúpulos, pessoas ligadas ao demônio e coisas do gênero. A origem desse tipo de perseguição se dá principalmente nos grupos fundamentalistas. O livro “Cartas aos escroques da islamofobia que fazem o jogo dos Racistas” nos fala exatamente sobre isso. O autor é conhecido por seu pseudônimo, Stéphane Charbonnier. Ele foi editor-chefe de Charlie Hebdo, um crítico franco do fundamentalismo religioso e um renomado cartunista político. No passado, ele recebeu ameaças de morte e até ganhou um lugar na "Lista dos Mais Desejados" da Al Qaeda.
Assim como os ateus no Brasil também sofrem. Infelizmente, os inimigos de Charb conseguiram silenciá-lo em 7 de janeiro de 2015. Mas uma dessas coisas do destino fez com que Charb, antes de morrer, terminasse um livro em 5 de janeiro do mesmo ano, ou seja, dois dias antes de seu assassinato. O livro não é apenas uma crítica, mas uma carta aberta eloquente na defesa da liberdade de expressão. Suas palavras são tão poderosas e ao mesmo tempo provocantes quanto na arte de satirizar. Esse livro aborda sobre raça, religião, a voz das minorias e maiorias étnicas em uma sociedade pluralista e, acima de tudo, atinge redutos do Partido Socialista Francês; da extrema direita católica; do Islã enquanto religião; de setores do judaísmo enquanto religião; da mídia televisiva e impressa; das instituições, associações e pessoas que empreendem uma cruzada enraivecida contra a liberdade de expressão sob a justificativa de que estão defendendo contra os muçulmanos. E fala sobre os surpreendentes desafios que estão sendo enfrentados em nossos tempos difíceis.
Islamofobia é um termo que pode ser entendido de diferentes maneiras como medo ou medo ao Islã, mas cujo significado pode designar a noção de hostilidade generalizada ao Islã e mulçumanos. A primeira observação de Stéphane Charbonnier (conhecido como Charb) é sobre aqueles que militam contra a islamofobia. Segundo ele, não o fazem, na realidade, para defender os muçulmanos enquanto indivíduos, mas para defender a religião do profeta Maomé. Em outras palavras, o termo “islamofobia” sugere que é mais sério odiar o islamismo, ou seja, uma corrente de pensamento perfeitamente criticável, do que indivíduos muçulmanos.
Charb quer nos dizer o seguinte: que é crime discriminar alguém por causa de sua afiliação religiosa, mas criticar uma religião não é. O jornal sempre se comprometeu ao longo de sua existência com o antirracismo, só que agora esse mesmo antirracismo foi sendo substituído pela luta pela defesa e promoção de uma religião.
Islamofobia é o que, então? Não se pode mais criticar uma religião ou ser contra a forma que algumas pessoas praticam essa religião? É assim que este manifesto salutar tenta demonstrar que a palavra "islamofobia" satisfaz racistas, islamitas radicais e jornalistas preguiçosos.
Para Charb, o que existe é um racismo contra os emigrados e seus descendentes, especialmente aos que vieram do norte da África. Ao se usar o termo “islamofobia”, o racismo real ficaria diluído em um falso racismo, jEle aponta uma questão curiosa,
“se amanhã os muçulmanos na França se converterem ao catolicismo ou renunciarem a qualquer religião, isso não mudará nada no discurso dos racistas: esses estrangeiros ou franceses de origem estrangeira serão sempre apontados como responsáveis por todos os males”. (pg 14)
O sufixo “fobia” pode ser mal utilizado, por exemplo: homofobia. O que é a homofobia? Não é um ódio que certas pessoas podem sentir contra uma ideologia ou uma religião, mas realmente contra seres humanos. A homofobia não é condenável (nas palavras de Charb) porque seria uma “crítica” à homossexualidade, mas por expressar ódio aos homossexuais. Assim como a “negrofobia” não é uma crítica à ideologia negra, mas aos seres humanos negros.
Levando o sufixo “fobia” adiante, outro ponto que é abordado por Charb diz respeito aos crentes, independentemente de qualquer religião, imanes, padres, rabinos. Todos eles colocam o seu Deus como “o” melhor, o mais bacana, o mais justo, o mais milagroso, enfim... Charb pergunta: “Até que ponto eles não contribuem para outra fobia: a teofobia, ou seja, a fobia pela religião do outro?”.
Todo crente foi ensinado que a religião dele é a melhor do mundo. Melhor: a única verdadeira. Se o leitor do Corão entende que seu texto diz a verdade, o crente subentende o quê? Os demais textos são mentiras. O mesmo vale para o crente leitor da Bíblia. Nessa briga de qual palavra é a verdadeira, um muçulmano ou um cristão temem a possibilidade de que a maioria do rebanho (de ambas as religiões) possa ser convertida a uma falsa religião, ou seja, serem convertidos à religião da concorrência.
Não é de espantar que alguns setores da Igreja sejam islamófobos e que o muçulmano seja catolicófobo. Não gostar da religião do outro faz parte do cotidiano dos sacerdotes de todas as religiões. A pergunta é a seguinte: e quem não gosta de nenhuma religião, como fica? Os padres, os imanes e os rabinos têm o direito de ser islamófobos, judeófobo ou catolicófobos, sem que ninguém os recrimines. E os ateus, que não se identifica com nenhuma religião? Onde eles entram nessa história? Essa é a pergunta que Chab faz ao leitor.
Uma religião não existe sem crentes. Um crente fanático geralmente interpreta a bíblia ou o Corão literalmente. Como se lessem um manual de montagem de uma estante da Tok Stok, ou seja, é preciso seguir o manual (o livro sagrado, os textos fundadores) direitinho, como está escrito no papel das escrituras, sob a pena de ver o céu despencar em cima dos fiéis. Seguir literalmente as instruções, justifica a Al Qaeda. Para eles, é preciso matar um infiel. É preciso matar Charb e perseguir Salman Rushdie pelos seus “Versos Satânicos” e por aí vai. Pena de morte! Blasfemou? Morreu! Essa é a lei dos crentes que seguem o literalismo, a letra fria da lei de Deus. Pobre Deus, o que fazem com o seu nome.
Charb lança uma provocação: encarregar-se da defesa de Deus não seria uma espécie de orgulho? A pergunta que fica é a seguinte: será que essas pessoas acreditam realmente em Deus? Lembro-me da declaração do pai de Malala, (também vítima dos clérigos muçulmanos paquistaneses), que disse após a tentativa de assassinato de sua própria filha: “Deus aqui não está em jogo. O que está em jogo é um projeto de poder”. Em outras palavras: Deus é apenas um detalhe, e aqueles que não aderirem ao meu projeto de poder, serão punidos como infiéis.
Charb faz uma crítica à grande mídia sob o termo “islamofobia”, que, segundo ele, não deveria alcançar esse sucesso delirante. Para ele foi algo além de uma negligência, foi um interesse comercial. Não há nenhuma motivação antirracista, apenas popularizar o nome. E o motivo é muito simples. Um terrorista provoca medo. E o medo vende bem. O Islamismo que dá medo vende muito bem, pois se tornou o único islamismo visível aos olhos do grande público. O Islamismo que a mídia alimenta os seus consumidores é o islamismo radical.
E quando a caricatura desse islamismo dito radical é descrita por humoristas, isso suscita franco protesto entre as associações que perseguem a islamofobia. Quando o jornal Charlie Hebdo desenhou o profeta dos muçulmanos com um turbante sob a forma de bomba, se tornou célebre porque seus detratores viram naquilo um insulto para todos os muçulmanos.
Colocar adereços no profeta dos crentes radicais com uma bomba deu a entender que todos os seus fiéis eram terroristas. No entanto, outra interpretação era possível (desde que fosse mais bem interpretada), mas interessava menos à mídia. E qual seria a outra interpretação? Simples. Eis como os terroristas fazem do islamismo, eis como os terroristas que invocam o profeta o veem.
A grande mídia viu nessa publicação o motivo, segundo Charb, a cólera de fachada de alguns grupos, uma vez que os microfones e as câmeras cercavam os representantes dessas associações e os jornalistas os pressionavam a se pronunciar sobre o caráter blasfematório dos desenhos, afinal era preciso que essas pessoas reagissem. Era preciso mostrar os fiéis irritados, os quais eram verdadeiramente os defensores da fé. Afinal, se a televisão decide que se trata de uma provocação, existe sempre um idiota para se considerar provocado. Se a imprensa chamar de escândalos, haverá os escandalizados. É assim que a coisa toda funciona.
Segundo Charb, os muçulmanos mais radicais compensam sua inferioridade numérica com um intenso ativismo militante. Todos caem nessa armadilha. Porque eles se acham muçulmanos-raiz, enquanto os outros, ou seja, os mais brandos e racionais, são os muçulmanos, que poderíamos chamar aqui no Brasil de “nutela”.
Os jornalistas do Charles Hebdo ainda acreditam que nem todos os muçulmanos são intolerantes à ironia. Zombar dessa reação desproporcional de um punhado de muçulmanos encolerizados, assim como o excesso de midiatização do evento, e tudo isso em formas de traços e caricatura de lápis publicados em um jornal francês vendido exclusivamente em bancas de jornal, era “botar lenha na fogueira”.
Quando a mídia publicou essa simples caricatura, os resultados chegaram a todo o mundo. Embaixadas foram ameaçadas, turistas foram ameaçados, escolas francesas no estrangeiro foram ameaçadas. O subtexto de tudo isso era: Charles Hebdo justificava a existência da Al-Qaeda e dos seguidores do islamismo. Desenhos classificados de islamófobos legitimavam a ação dos assassinos. A provocação vinha do Charlie Hebdo, era normal esperar reações violentas, esse era o discurso da época.
Bem, respeitar o islamismo é uma coisa. Ter medo do islamismo é uma forma de não respeitá-lo. Respeitar o islamismo não é confundi-lo com terrorismo islâmico. Quando se mostra uma charge de um terrorista islâmico de uma forma grotesca, isso não significa que você é um islamofóbico. Bem, se for, isso equivale a dizer que todos os muçulmanos são terroristas ou solidários com estes últimos.
Charb cita a capa do Charles Hebdo de 2006, em que um barbudo de turbante segura a cabeça entre as mãos. Está furioso ou chorando, as duas coisas, talvez, e diz: “É duro ser amado por babacas...”. O título do desenho esclarece: “Maomé arrasado pelos fundamentalistas”. Maomé se queixa dos fundamentalistas. A consequência dessa publicação foi que Charles Hebdo será violentamente criticado por ter dado a entender que todos os fiéis do profeta do islamismo eram babacas. Graças a uma remontagem para retirar-lhe o sentido, feito por espertalhões de setores da mídia e dos políticos franceses.
Foi o que aconteceu com o artista marroquino Mounir Fatmi:
“Apresentava sua obra Technologia, um vídeo projetado sobre o Point-Neuf daquela cidade (Toulouse), no qual apareciam versículos do Corão. Pelo fato de “textos sagrados”, suratas do Corão, terem sido projetados (acidentalmente ao que parece) sobre o piso da ponte, um grupúsculo que se afirmava muçulmano protestou, sob o pretexto de pisotear versículos do texto sagrado era insultuoso para com sua religião. Uma transeunte, aliás, teria sido espancada por haver caminhado em cima deles. Um imane interveio para restabelecer a calma, e umas dez viaturas de polícia tomaram a posição nas proximidades do sacrilégio” (pg 69)
O artista ficou espantadíssimo, pois a instalação representava a sua herança árabe-mulçumana. Mounir Fatmi teve medo de que sua obra não fosse compreendida. Nesse caso não se trata de dissertar sobre se determinado desenho é de bom gosto ou de mau gosto. Os censores não querem saber de jeito nenhum dessa coisa chamada liberdade de expressão, de jeito nenhum. Charb conclui que a autocensura está se tornando uma arte primordial na França. A sensação é que só os imanes e os fiéis podem evocar o Corão. Acreditar nisso é fazer o jogo dos radicais.
Bem, se você pensa que somente o Islã é criticado pelo jornal Charlie Hebdo, fique tranquilo. A ala direita da Igreja que vê nos islamismo “uma falsa religião” e uma concorrência inaceitável tentam pegar carona no conceito de islamofobia. omo? Simples: uma associação de católicos fundamentalistas, que por muito tempo esteve perto do partido de Le Pen (Front Nacional) chamado “Aliança Geral contra o Racismo e pelo respeito da Identidade francesa e cristãs” (AGRIF), que luta contra o racismo antibranco e anticristão. Essa associação acusou o jornal Charlie Hebdo de racismo antifrancês. Embora, ao contrário, a existência de Deus, os comunistas de Marx, Engels e Lênin, entre outros, duvidavam da existência de Deus. Mas se eu duvidar da validade dos escritos e dos discursos deles, isso não faz de mim um comunistófobo. Enfeitar Marx e Lênin, ou, seja lá quem for com um nariz de palhaço, não é nem mais nem menos ultrajante e escandaloso do que enfeitar Maomé com o mesmo penduricalho.
Antes de finalizar, não posso deixar de mencionar o ocorrido com o grupo Porta dos Fundos, sobre o filme A Primeira Tentação de Cristo, que retrata Jesus Cristo como um homossexual que se envolve com Lúcifer; na versão, Maria trai José com Deus.
A questão homossexual na igreja é um fato, não só na Igreja católica, mas nas demais igrejas protestantes, no mundo, em todas as religiões. Certa vez o Papa Francisco falou aos jornalistas sobre a homossexualidade citando explicitamente o Catecismo da Igreja doutrinal do Magistério da Igreja. Entre outras coisas, disse: " Se uma pessoa é gay e procura Jesus, e tem boa vontade, quem sou eu para julgá-la? O Catecismo diz que não devemos marginalizar essas pessoas por isso. Elas devem ser integradas à sociedade”.
Cito uma resposta que eu dei a um grande amigo evangélico quando perguntou para mim se eu achava justo o filme do Porta dos Fundos. Eu disse para ele o seguinte: “Se você não gostou, tudo bem. Quer responder a isso? Reúna uma galera engraçada e faça humor sobre o humor dos caras. Todos nós ficaremos mais inteligentes assim”.
Para finalizar, Stéphane Charbonnier, o Charb, levanta algumas perguntas para a reflexão:
Por que os crentes recorrem à Justiça dos homens para nos punir, se a justiça Divina o fará, e bem mais severamente do que qualquer juiz? Quem é afinal esse Deus, que afirmam todo-poderoso, mas que precisa de advogados para nos processar? Será que Deus não se ofende, ao constatar que aquele a quem até então considerava como um bom crente recorreu à Justiça, e não à oração?
“Ao atacarem na justiça os blasfemadores, as associações comunitaristas só provam uma coisa: elas não acreditam em Deus. Ou então são favoráveis à dupla punição, o que é particularmente perverso”. O que é blasfemar senão exercitar o pensamento crítico sobre uma religião?
Fico por aqui. Indico “A carta aos Escroques da islamofobia que fazem o Jogo dos racistas”, de Stéphane Charbonnier, como um livro que merece um lugar na sua estante.