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A Revolução dos Bichos

Alguns livros eu já deveria ter lido há muito tempo. “A revolução dos bichos”, de George Orwell, é um deles. Hoje me sinto maduro para dizer o seguinte: nada mais atual do que esse livro. As pessoas que já leram provavelmente dirão que esse livro é um livro datado do fracasso da Revolução Russa, como iremos falar daqui a pouco. Mas quando eu vejo uma Venezuela e o “triunfo” do socialismo (estou sendo irônico, é claro!) de Maduro, não restam dúvidas de que estamos lidando exatamente com a mesma história de “A revolução dos bichos”. Isso sem falar de Jair “Messias”, que se colocou como paladino da luta anticorrupção e está envolvido até o pescoço com ela. Curioso que seu viés ideológico, em um primeiro momento, tinha Hugo Chávez (ditador venezuelano) como referência política.

Enquanto Orwell passava cada vez mais tempo com os problemas da Inglaterra, ele se convenceu de que o único remédio para o problema da pobreza estava no socialismo, uma filosofia política e econômica argumentando que, somente quando o Estado controla os meios de produção e distribuição, todos os membros de uma nação compartilharão seus lucros e recompensas. Ao contrário do capitalismo, a filosofia de que os meios de produção e distribuição de uma nação devem ser de propriedade e controle privados, o socialismo argumenta que apenas a regulamentação governamental da economia de uma nação pode fechar a lacuna entre ricos e pobres. Embora ele não fosse um anticapitalista virulento, Orwell achava que somente com a introdução gradual de ideias e práticas socialistas na vida britânica os pobres acabariam participando dos frutos da prosperidade de sua nação.

A sua conversão ao socialismo se deu quando observava o tratamento dado à classe trabalhadora industrial e a negligência e a opressão em que viviam. Depois de lutar contra o fascismo e se aliar ao POUM (partido operário unificado marxista) espanhol e de ter escapado por um milagre da traição do partido comunista (ligado a Stalin) espanhol, que entregou todos os partidários dessa organização de esquerda (POUM) aos franquistas, resolveu explorar questões políticas em seus escritos.

No prefácio aa edição ucraniana, George Orwell fala sobre a Revolução espanhola:

“Nos primeiros estágios da guerra, os estrangeiros viviam praticamente desinformados das lutas internas entre vários partidos políticos que apoiavam o governo. Devido a uma série de acidentes, entrei não para as Brigadas Internacionais, como a maioria dos estrangeiros, mas para as milícias do POUM – os trostskistas espanhóis.

Assim, em meados de 1937, quando os comunistas obtiveram o controle (ou o controle parcial) do governo espanhol e começaram a perseguir os trotskistas, eu e minha mulher nos vimos no meio às vítimas. Tivemos muita sorte de conseguir deixar a Espanha com vida, e de não ter sido presos uma vez sequer. Muitos de nossos amigos foram fuzilados, outros passaram longo tempo na cadeia ou simplesmente desapareceram.

Essas caçadas humanas ocorriam na Espanha ao mesmo tempo que os grandes expurgos na URSS, e eram uma espécie de complemento a eles. Tanto na Espanha como na Rússia, a natureza das acusações (a saber, conspirações com os fascistas) era a mesma, e no que diz respeito à Espanha, tenho todos os motivos para julgar que fossem falsas. Vivenciar tudo isso foi uma lição valiosa: ensinou-me como é fácil para a propaganda totalitária controlar a opinião de pessoas educadas em países democráticos.” (pg 142, pg 142)

Seu desprezo e medo do totalitarismo – em que o partido no poder tem total controle sobre todos os aspectos da vida das pessoas – foram temas em grande parte de sua produção literária.

Orwell examinou o socialismo em várias de suas obras de não ficção, mas foi forçado, devido às circunstâncias, a escrever “A revolução dos bichos” para criticar uma crença predominante – e falsa – de que a Revolução Russa de 1917 foi um passo em direção ao socialismo para milhões de russos pobres e oprimidos. Orwell sentiu que a ascensão brutal de Stalin ao poder não era apenas bárbara, mas uma traição aos princípios socialistas pelos quais Lênin e Trotsky e Orwell haviam se revoltado.

Hoje pode parecer um tanto óbvio, mas na época de sua publicação esse ataque à União Soviética batia de frente com muitos comunistas britânicos que queriam acreditar que a Rússia estava se movendo em direção a uma verdadeira república socialista. O fato de a Rússia estar lutando com a Inglaterra contra Hitler também tornou as suas reflexões desagradáveis para os pensadores de esquerda.

Ainda assim, ele achava que a URSS não estava progredindo em direção ao socialismo, mas ao totalitarismo. Orwell ficou impressionado com os sinais claros da transformação da URSS em uma sociedade hierárquica, na qual os governantes não esboçavam o menor sinal para desistir de seu poder dominante. Para isso a destruição do mito soviético era essencial para o renascimento do movimento socialista.

A ideia de escrever “A revolução dos bichos” se deu quando viu um garoto de uma aldeia chicoteando um cavalo de carroça. Naquele momento, a inspiração baixou fazendo-o conjecturar a possibilidade de uma revolta desses animais, partindo da premissa da consciência de sua força, ou seja, como o governo de um estado totalitário explora as pessoas comuns. Nesse momento, a premissa do livro estava dada.

“Ao voltar da Espanha, pensei em denunciar o mito soviético, numa história que fosse fácil de compreender por qualquer pessoa e fácil de traduzir para outras línguas. No entanto, os detalhes concretos da história só me ocorreriam depois, na época em que morava numa cidadezinha, no dia em vi um menino de uns dez anos guiando por um caminho estreito um imenso cavalo de tiro que cobria a chicotadas cada vez que o animal tentava se desviar. Percebi então que, se aqueles animais adquirissem consciência de sua força, não teríamos o menor poder sobre eles, e que os animais são explorados pelos homens de modo muito semelhante à maneira como o proletariado é explorado pelos ricos.

A partir daí, decidi analisar a teoria de Marx do ponto de vista dos animais. Para eles, claro, o conceito de luta de classes entre seres humanos era pura ilusão, pois sempre que fosse necessário explorar os animais, os seres humanos se uniam contra eles: a verdadeira luta se dava entre os bichos e as pessoas. A partir desse ponto, não foi difícil elaborar o enredo. (pg145, pg146)

Agora Orwell tinha um plano para seu romance: tinha a intenção de ser duro e questionar a necessidade de um verdadeiro governo socialista, ou seja, a Revolução Russa não tinha nada de socialista e ameaçava a vontade das pessoas que se opunham a esse falso socialismo. Seu livro demonstra que os líderes da Revolução Russa (especialmente Stalin) haviam criado um sistema ainda pior que o anterior e que servisse de alarme para todos os leitores ingleses sobre os perigos do mito soviético.

Apesar dos problemas com editoras, o romance foi aceito por uma pequena editora, a Secker&Warburg, e acabou se transformando em um tremendo sucesso editorial, tanto na Inglaterra como nos EUA.

Não podemos dizer que o romance esteja apenas discutindo a Revolução Russa. O romance pede aos leitores que examinem as maneiras pelas quais os líderes políticos, com motivos aparentemente nobres e altruístas, podem trair os próprios ideais nos quais eles ostensivamente acreditam, bem como as maneiras pelas quais certos membros de uma nação podem se eleger para posições de grande poder e abusar de seus concidadãos sob o pretexto de ajudá-los. O objetivo político era apresentar um modelo socialista errado.

Antes de entrarmos na história, uma informação: “A revolução dos bichos” é anterior ao livro “1984” de George Orwell. Outro ponto importante: a história, que é uma fábula, ocorre em um período não especificado e é cheia de referências históricas, o que permite ao leitor identificar o período. Não é nenhum desatino supor que Orwell constrói essa fábula satírica baseada na Revolução Russa, no período que vai de 1917 a 1945. É importante lembrar que esse período representou o passado e o presente recentes no momento da redação, ou seja, na época em que esses eventos históricos tinham acabado de acontecer.    

Vamos ao livro?

A história tem como espaço central uma granja de animais. O Sr. Jones é dono da Granja do Solar, perto de Willingdon, na Inglaterra, onde todos os animais vivem. O Sr. Jones é o fazendeiro da granja. Homem austero e com um temperamento difícil, ele cuida dos bichos da fazenda, mas muitas vezes os explora e os deixa passarem fome. O velho porco chamado Major (um porco que já havia sido premiado em uma exposição) inicia um movimento, alegando que todos os animais que ali viviam eram escravos e pobres. Todos os animais concordam com as alegações e começam os preparativos para um levante contra o fazendeiro Jones.

Uma noite, todos os animais da fazenda do Sr. Jones se reúnem em um celeiro para ouvir o velho Major descrever um sonho que ele teve sobre um mundo em que todos os animais vivem livres da tirania de seus mestres humanos. O velho Major morre logo após a reunião, mas os animais − inspirados em sua filosofia do Animalismo − planejam uma rebelião contra Jones. 

Os princípios do Animalismo Suíno reduzem-se aos Sete Mandamentos, que são escritos do celeiro. Segundo eles, agora e sempre, os animais são obrigados a viver no "Pátio da Fazenda":

  1. Todas as duas pernas são inimigas.
  2. Todos de quatro patas ou com asas são amigos.
  3. Os animais não devem usar roupas.
  4. Os animais não devem dormir na cama.
  5. Os animais não devem beber álcool.
  6. Os animais não devem matar outros animais sem motivo.
  7. Todos os animais são iguais.

Dois porcos, Bola de Neve e Napoleão, mostram a sua competência e planejam essa perigosa empreitada. Quando Jones esquece de alimentar os animais, a revolução começa, e Jones e seus ajudantes são expulsos da granja. A Granja do Solar agora tem um novo nome: a Granja dos Bichos.

Inicialmente a rebelião é um sucesso: os animais completam a colheita e se reúnem todos os domingos para debater a nova política agrícola. Bem, na divisão do trabalho, cabiam aos porcos, por serem mais inteligentes, tornarem-se supervisores da fazenda. Napoleão, no entanto, prova ser um líder sedento de poder. Para isso, rouba o leite das vacas e várias maçãs para alimentar não apenas a si próprio, mas outros porcos.

Quando tudo parecia estar indo bem, Jones (o antigo dono da granja) tenta recuperar a sua granja. Graças às táticas do porco Bola de Neve, os animais acabam derrotando os antigos donos. Essa batalha ficou conhecida como a Batalha do Estábulo.

O inverno chega e Mimosa, uma égua vaidosa, dava desculpas esfarrapadas para evitar o trabalho. Acaba sendo atraída para fora da fazenda por outro humano. Enquanto isso, Bola de Neve começa a planejar um moinho de vento que forneceria eletricidade e, com isso, os animais teriam mais tempo de lazer, mas Napoleão se opõe veementemente a esse plano, alegando que a construção do moinho de vento lhes daria menos tempo para produzir alimentos.

Bem, o impasse estava criado. Foi em um domingo que os porcos colocam a proposta do moinho de vento em votação. Napoleão convoca uma matilha de cães ferozes, que perseguem Bola de Neve. A alegação gira em torno da lealdade:

“A lealdade e a obediência são mais importantes. E quanto à Batalha do Estábulo, acredito, tempo virá em que verificaremos que o papel de Bola de Neve foi muito exagerado. Disciplina, camaradas, disciplina férrea! Esse é o lema para os dias que correm. Um passo em falso, e o inimigo estará sobre nós. Por certo, camaradas, não quereis Jones de volta, hein?”

Uma vez mais, esse argumento era irrespondível. Sem dúvida alguma, os bichos não desejavam Jones de volta; e se a realidade dos debates dominicais podia ter essa consequência, então que cessassem os debates, sansão (o cavalo), que tivera tempo de pensar, expressou o sentimento geral: se o que diz o Camarada Napoleão, deve estar certo”. E daí por diante adotou a máxima ”Napoleão tem sempre razão”, acrescentando-a ao seu lema particular “Trabalhei mais ainda” (pg 49)

Bola de Neve é expulso da granja e Napoleão anuncia que não haverá mais debates aos domingos e nem nunca; ele também diz que o moinho de vento será construído, roubando a ideia do Bola de Neve. Ele usa Bola de Neve como bode expiatório e o culpa pelos sofrimentos dos animais da granja. Além disso, contrata um advogado, Sr. Whymper, e começa a negociar com todas as fazendas vizinhas, contrariando os princípios do Animalismo. Quando uma tempestade derruba o moinho recém-construído, quem Napoleão culpa? Exatamente ele, Bola de Neve. E ordena que eles reconstruam o moinho.

O apetite de Napoleão pelo poder aumenta a ponto de ele se tornar um ditador totalitário, forçando “confissões” de animais inocentes e fazendo com que cães os matem na frente de toda a granja. Napoleão e os outros porcos se mudam para a casa de Jones (o antigo dono da fazenda) e começam a dormir em camas. Enquanto isso, os animais recebem cada vez menos comida, enquanto os porcos estão cada vez mais gordos.

Os princípios do Animalismo sofrem outra derrota quando Napoleão começa a negociar com Jones. Frederick, um vizinho, compra uma pilha de madeira com notas falsas. Frederick e seus homens explodem o moinho e acabam sendo derrotados. Os sete Mandamentos do Animalismo vão sendo revisados, pois são quebrados pelos porcos. Por exemplo: “Nenhum animal pode beber álcool” é alterado para “Nenhum animal deve beber em excesso”.

Bem, à medida que os anos passam, a Granja dos Bichos expande seus limites. Napoleão compra terras do vizinho, Pikington. A vida dos outros animais é dura (exceto a dos porcos). Eventualmente, os porcos começam a andar sobre as patas traseiras e assumem outras qualidades de seus antigos opressores humanos. Os sete mandamentos acabam sendo reduzidos a uma lei: “tTodos os animais são iguais, mas uns são melhores que os outros”. A história termina com Pinkington, dono da granja Foxwood, bebendo na casa de Jones. E Napoleão muda o nome da granja para a “Granja do Solar”. Os outros animais assistem à cena do lado de fora da janela e não conseguem distinguir os porcos dos humanos.

Vale a pena ler o posfácio de Cristopher Hitchens, onde ele detalha a história por um viés bem incisivo da tirania, dando outros exemplos de Revoluções Traídas. Aliás, eu comprei a biografia escrita por ele de George Orwell, que em breve estará por aqui, assim que eu terminar a leitura de outros livros do autor não conhecidos pelo grande público.

“A revolução dos bichos”, de George Orwell, continua atualíssimo, pois fala de como as esperanças revolucionárias muitas vezes transformam-se em tragédias humanitárias. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.


Data: 23 junho 2020 (Atualizado: 23 de junho de 2020) | Tags: Romance, Política


< 1984 Bufo & Spallanzani >
A Revolução dos Bichos
autor: George Orwell
editora: Companhia das Letras
tradutor: Heitor Aquino Ferreira
gênero: Política;,Romance;

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