A Saga dos cães perdidos
Confesso a vocês que conheci o professor Ciro Marcondes Filho graças a um blog que eu sigo chamado “cinegnose”, que, aliás, eu recomendo muito. O dono do blog chama-se Wilson Roberto Vieira Ferreira, que sempre fez menção ao seu mestre com muita admiração. E foi daí que, numa das citações feitas pelo seu aluno, se não me falha a memória, o nome de Ciro veio à tona e eu resolvi ler o livro de que falaremos hoje: “Jornalismo: a saga dos cães perdidos”. Ciro Marcondes Filho descreve e analisa cuidadosamente o desafio que é permanecer em uma atividade cada vez mais fragmentada nas teias de novos meios de comunicação e informação, afastando-se de sua forma original.
Ciro Marcondes Filho nos apresenta as etapas por que passou o jornalismo desde a sua origem. Os impasses colocados diante do jornalismo contemporâneo. É uma saga desse importante grupo humano armado de canetas, papel e uma máquina de escrever e, mais recentemente, do computador, que, nos últimos duzentos anos, provocou verdadeiras revoluções na maneira de ver, sentir e vivenciar o mundo e mostra que, apesar de terem perdido o faro investigativo, a coragem de tudo desvendar. Os cães estão por aí.
Vamos ao livro?
A cacofonia das redes sociais e o advento das chamadas “fake news” só fez aumentar a dificuldade de se encontrar sólidas referências para conceituar a atividade profissional no mundo contemporâneo. Podemos dizer que o jornalismo tem sofrido muito com o bombardeio de informações – e muitas vezes não sabemos ao certo em quem acreditar. O livro foi publicado no ano 2000, mas tem uma atualidade que tranquilamente ainda pode ser lido ainda hoje em dia.
No entanto, tudo isso tem uma história. A história do jornalismo começa, ou melhor, se confunde com o espírito da modernidade. O nascimento da burguesia e a vitória da Revolução Francesa deve muito ao jornalismo. É o seu filho legítimo. A Revolução Francesa, símbolo da queda de regimes monárquicos e do poder aristocrático, foi também, ao mesmo tempo, a conquista do direito à informação. Ao criticar, ao publicizar informações a respeito das autoridades criticando e iluminando o povo, que até então estava subordinado ao poder dos monarcas, da Igreja e Universidade, podemos dizer que o jornalismo refletia a atmosfera presente nos novos tempos.
A luta pelos direitos humanos, preconizada pela Revolução Francesa, a força impulsionadora do jornalismo, ajudou a desvendar os fatos e os acontecimentos anteriormente escondidos. A desconstrução do poder da Igreja e da Universidade foram também fatores decisivos para o aparecimento do jornalismo. Aliado a isso, não podemos ignorar a importância da Revolução Protestante, que ajudou a ruir as bases religiosas, colocando em crise o poder estatal. O monopólio do saber não estava mais nas mãos do monarca, da Igreja e da Universidade. Agora, o conhecimento estava destinado a circular livremente, e o jornalista tornou-se o agente responsável a levar as informações interessantes a toda a sociedade.
Ao desmoronar esse poder, entra em colapso igualmente o seu monopólio do segredo. A época burguesa inverte o processo, ou seja, agora tudo deve ser exposto, superexposto, ostensivamente mostrado. É nesse contexto que surge o mito da transparência, que tem ligações estreitas com o iluminismo.
A primeira fase do jornalismo foi marcada, como o nome já diz, pelo desejo da “iluminação”. Nada poderia ser encoberto a partir daquele momento. É nesse período que surge a ebulição do jornalismo político-literário – os jornais potencializavam as ideias, programas políticos partidários, suas páginas serviam de suporte para os revolucionários.
A profissionalização do jornalismo faz parte de sua evolução, que passa a ter uma força própria e autônoma. No primeiro momento, todos os jornais obedeciam a fins pedagógicos, ou seja, interessavam-se em moldar consciências e a formação política da sociedade em detrimento dos interesses econômicos. Podemos dizer que, por volta de 1789, o jornalismo cumpre o seu papel, que vai até a metade do século XIX.
Com o tempo, o jornalismo vai mudando, passando a uma outra fase. Sentimentos nacionalistas e socialistas impulsionam os jornais populares. Através de campanhas operárias, os donos de jornais começam a operar seguindo um modelo de negócio. No início, o jornalismo era uma atividade que começava com as discussões políticas, discussões literárias, tudo de forma bem anárquica, até enveredar para a empresa capitalista. O romantismo de outrora será substituído por uma máquina de produção de notícias e de lucros. É daí que os jornais sensacionalistas aparecem. Concomitante a isso, com as inovações tecnológicas nos processos de produção do jornal, a empresa jornalística precisou aumentar sua capacidade de autossustentação – é o início da publicidade e da publicação de notícias que agradassem ao público. Para se manter no mercado, era necessário ter que vender muito. A ideia romântica do jornalismo como valor pedagógico dá espaço aos valores do mercado.
A imprensa como negócio surgiu por volta de 1875, na França, Estados Unidos, e Inglaterra. Essa transformação inverteu o valor das notícias, pois agora os espaços destinados à propaganda ganham força e passam a ser prioridade. A tendência, como veremos até o final do século XX, é de fazer progressivamente um jornal como um amontoado de comunicações publicitárias permeados de notícias.
A terceira fase do jornalismo, segundo Ciro Marcondes Filho, é a fase niilista, o que para ele seria o fim da modernidade, em face de uma nova era. As guerras, os governos totalitários foram fatores que enfraqueceram o jornalismo. Mas a grande transformação é a formação dos monopólios, a fase de consolidação da imprensa negócio. A notícia como mercadoria vai recebendo cada vez mais investimento para melhorar sua aparência e sua vendabilidade: criam-se manchetes, os destaques, as reportagens, trabalha-se e investe-se muito mais na capa, no logotipo, nas chamadas primeiras páginas. Grandes conglomerados da indústria da imprensa. De acordo com Marcondes Filho:
“Aqui, o aumento fantástico da produção significou uma total reorientação da indústria jornalística no sentido de render lucros e se tornar economicamente autossustentável. Consequentemente, o jornalismo deixou de ser tão livre, descomprometido, espaço aberto a toda e qualquer manifestação dos agentes sociais, tornando-se produto “trabalhado”, voltado ao mercado, dependente dos gostos e do interesse de uma ampla massa de consumidores. A audácia e a criatividade jornalística perdem terreno em relação ao conformismo e à repetitividade mercadológica.” (pag. 32 e 33).
A quarta e última fase, segundo Ciro Marcondes Filho, é o jornalismo da era tecnológica, um processo que tem início na década de 1970. Aqui se acoplam dois processos. Primeiramente, a expansão da indústria da consciência no plano das estratégias de comunicação e persuasão dentro do noticiário e da informação; é a inflação de comunicados e de materiais impressos, que passaram a ser fornecidos aos jornais por agentes empresariais e públicos (assessoria de imprensa) e que se mistura e se confunde com a informação jornalística. O assessor de imprensa, ao que compete sua doutrina profissional, tem compromisso somente para com a versão de seu assessorado, não com os fatos.
No âmbito das relações entre comunicação e tecnologias, as novas tecnologias agem em dois planos: virtualizam o trabalho jornalístico impresso e interferem radicalmente nos conteúdos. A substituição do trabalho humano jornalista pelos sistemas de comunicação eletrônica, pelas redes, pelas formas interativas de criação, fornecimento e difusão de informação. Nesse período, as investigações jornalísticas são substituídas pela busca da informação, principalmente, por meio da internet e do telefone.
Nos anos 1970, ocorre a aceleração do desenvolvimento das tecnologias de comunicação, que invadem com todo o furor a vida social, da economia aos esportes, da biologia celular à astrofísica. A concorrência com a televisão exigiu que o jornalismo impresso se especializasse nas formas opinativas e interpretativas, deixando a abordagem puramente informativa a cargo do jornalismo televisivo.
O telejornal supera a imprensa escrita. Seguro Ciro Marcondes Filhos, os meios de comunicação falam de si mesmos, criam as notícias que de fato deveriam ser buscadas exteriormente. Com isso, mantêm-se num procedimento de se citarem mutuamente em si mesmas. A lógica da velocidade se refere tanto à rapidez com que cada emissora traz um fato ao público quanto ao ritmo de apresentações de notícias. O critério de qualidade não existe, todas são iguais.
O ritmo rápido da televisão é diferente: a troca ligeira de planos – como na publicidade – produz um “efeito de aceleração”, não captável de imediato pela percepção, mas que exige inconscientemente a fixação de minicenas, em minirrelatos, construindo narrativas rápidas em tempo recorde.
Outra consequência, que Ciro Marcondes aponta, devido à rapidez de todo o processo, é a superficialidade de todas as notícias.
“A rapidez exige decisões instantâneas, separação imediata de material, triagem de algumas informações básicas e emissão a ritmo blitzkrieg. Jornalistas tornam-se assim funcionário de uma linha de montagem acelerada em que rapidamente selecionam por padrões viciados e em geral imutáveis, sempre os mesmos enfoques, as mesmas caracterizações. Jornalismo se torna uma máquina de produzir sempre o mesmo, qualquer que seja o conteúdo do dia a dia” (pág. 81, pág 82).
A televisão incorpora componentes das tecnologias virtuais, o tempo zero, a velocidade da luz, a instantaneidade entre produção e emissão de um fato. Paul Virilio (citado por Ciro) acredita que o imediato seja uma nova forma de dominação, pois dificilmente o rápido poderá ser democratizado.
“A urgência poderá assassinar a democracia”, diz Paul Virilio, atribuindo à compulsão, ao ligeiro, ao instantâneo e imediato, a mesma tendência antes atribuída ao poder único, à autocracia: a seleção natural não dos melhores, não dos mais capazes, mas dos mais rápidos, segregando automaticamente os mais lentos, os menos competitivos, os mais reflexivos. Platão (citado por Ciro) dizia que na urgência não se pode pensar. A rapidez está associada à emoção, e ambas, aos atos irracionais. Todos os fatos que ocorrem sob o ritmo da reação instantânea, impensada, automática, contêm uma carga explosiva. Basta vermos, nas redes sociais, a quantidade de irracionalidade que nos são mostradas vez ou outra nos feeds de notícias.
As consequências da informatização da atividade é que a vida dos jornalistas ficou mais difícil. O trabalho aumentou, o contingente foi reduzido, as responsabilidades mais individuais. Chantageados pelo fantasma do desemprego, os jornalistas de posição intermediária na empresa e os precários (frilas-repórter, redatores, focas) perdem rapidamente de vista o fascínio da profissão.
A crise das ideologias no século XX desmoronou as bases filosóficas desse debate: não havendo mais projetos políticos, o liberalismo foi absorvido pelo capitalismo monopolista, depois pelo neocapitalismo e o socialismo foi decompondo com a queda do Muro. Não há mais confronto entre socialismo e capitalismo, e em seu lugar instala-se uma nova forma de se fazer economia que chamamos de neoliberalismo, padrão único para todos os países sob o princípio da globalização. A filosofia do neoliberalismo não deixa saídas, ou seja, ou aceita-se a realidade única planetária ou a barbárie.
Para finalizar esta resenha, gostaria de entrar em um outro ponto abordado por Ciro Marcondes Filho: é sobre a desinformação por força do excesso, que ocorre de várias maneiras. Em primeiro lugar, o bombardeio informativo narcotiza o receptor, para torná-lo indiferente à própria notícia. Em segundo, pelo mimetismo: quando um jornal, uma emissora de rádio ou televisão dão a mesma notícia, numa reação orquestrada. Quanto mais os media falam sobre a mesma notícia, tanto mais verdadeira ela se parece. Em terceiro lugar, quando o aparelho informacional se precariza ao fornecer afirmações totalizantes tipo (pegando os exemplos dados pelo próprio Ciro) “todas as mulheres do mundo...”, “cada brasileiro tem isso ou aquilo”, “todos os telespectadores concordam”. Trata-se da cilada da incompletude de Godel, que diz que, se algo não pode ser provado, não significa que seja falso, pois tudo pode ser provado. Traduzindo para informação, se eu tomo os casos, eu deverei necessariamente incorrer numa imperfeição; eu só terei certeza do que falo se me ocupar com um número restrito deles.
A última cilada da informação dá conta de que, com a força da velocidade de circulação de notícias, do grande número de fontes e das facilidades de sua inserção – mesmo por não profissionais – nas redes de comunicação, tudo ganha “valor de verdade”, por um determinado tempo, mesmos os rumores disseminados aleatoriamente. Um fato insignificante pode ampliar-se de forma imprevisível, gerando ocorrências desastrosas. A Internet, por exemplo, é suporte de sistema anônimo de milhões de entradas que amplificam, em progressão geométrica incalculável, pequenos fatos não comprovados, ou mesmo histórias falsas. A amplitude das redes gera novos problemas para o jornalismo.
Fico por aqui. Apenas finalizo dizendo que “A saga dos cães perdidos” permite ao leitor que se interessa por jornalismo entender os impasses colocados diante do jornalismo contemporâneo. O livro faz uma reconstituição da saga desse importante grupo humano que nos últimos duzentos anos provocou verdadeiras revoluções na maneira de ver, sentir e vivenciar o mundo e mostra que, apesar de terem perdido o faro investigativo, a fúria desbravadora e a coragem de tudo desvendar, os cães estão por aí.
“A saga dos cães perdidos”, de Ciro Marcondes Filho, é um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.