V de Vingança
Como eu havia prometido, “V de Vingança”, de Alan Moore, encontra-se resenhado aqui no site a partir de hoje. Agora posso dizer que li o livro e vi o filme. Existem algumas diferenças entre os quadrinhos e o filme. Mas só queria dizer que é uma leitura imperdível.
Quando “V de Vingança” foi lançado, os quadrinhos já eram um clássico para poucos. A história foi ambientada nos anos 1990. As irmãs Wachowski (de Matrix) adaptaram o roteiro dos quadrinhos para o cinema. Eu pessoalmente gostei tanto dos quadrinhos como do filme, apesar de existir diferenças na história. Alan Moore não gostou do roteiro e acabou saindo, abrindo inclusive mão dos créditos do filme.
Quando você lê os quadrinhos. você pode perceber algumas diferenças, como. por exemplo. o vocabulário. “V” tem um vocabulário poético, bem literário, mas seus objetivos são os mesmos, ou seja, matar qualquer um para alcançar os seus objetivos revolucionários. Uma outra diferença diz respeito à personagem Evey. Nos quadrinhos, ela serve como pano de fundo para “V”; no filme, no entanto, Natalie Portman se torna uma heroína. Ela ajuda a derrubar os podres poderes opressivos da Inglaterra que se tornou fascista. Nos quadrinhos essa relação não existe. “V” orienta Evey para se tornar a continuação do legado ideológico anarquista.
No filme “V de Vingança”, “V” torna-se um símbolo do povo. Sua mensagem alcançou o povo de Londres de várias maneiras, como, por exemplo, na cena final, uma multidão se reúne com máscaras de Guy Fawkes para ver o parlamento britânico destruído.
Nos quadrinhos, os personagens principais são o foco. “V”, Evey, o detetive Finch e os funcionários corruptos que ocupam páginas e páginas da história. No final, quando o povo decide agir, os quadrinhos se concentram mais na insurgência e na reação a Finch.
Tantos os quadrinhos como o filme são fantásticos. Se a história em quadrinhos foi ambientada na década de 1990 durante o período Thatcher, o filme mira o futuro. Natalie Portman ficou simplesmente deslumbrante nesse filme. Quem viu não tem dúvida alguma disso. Hugo Weaving (o agente Smith de Matrix) no filme “V de Vingança” está irreconhecível, pois encontra-se mascarado, só o reconhecemos através daquela dicção insana do ator, escondido na máscara de Guy Fawkes. Quem assistiu a Matrix sabe do que estou falando. Se no filme não vemos o rosto dele, vemos a expressão facial naquela máscara Fawkesiana pálida e sorridente, o que valoriza e muito o personagem.
Antes de entrarmos na história, vamos falar um pouco sobre o autor da obra: Alan Moore. Nasceu nos Reino Unido, filho de pais pobres, era um leitor voraz quando criança e mostrou talento para desenhar. Começou a mandar poemas para jornais locais. Nesse período, experimentou o LSD e, em 1970, foi expulso do colégio onde estudava. Após a sua expulsão, Moore trabalhou em vários empregos estranhos, incluindo limpeza de banheiros. Mas foi em 1978, quando enviou seus primeiros desenhos para a revista de música NME, que seu trabalho começou a ser visto de uma maneira mais atenta. Nos cincos anos seguintes começou a receber por isso. Em 1980 ele finalmente conseguiu vender uma ideia para uma história em quadrinhos, muitas vezes escrevendo histórias para personagens de outras pessoas.
Ficou conhecido como um escritor rápido e criativo com um forte senso visual e, ao todo, escreveu 50 histórias para 2000AD. Mas seu grande avanço na carreira veio em 1983, quando foi contratado pela DC Comics, a mais famosa empresa de quadrinhos americana, para reinventar “A Saga do Monstro”, uma velha e pouco popular história em quadrinhos. Alan Moore foi elogiado por desconstruir o personagem do Monstro do Pântano essencialmente escrevendo uma sátira dos próprios super-heróis dos quadrinhos. No entanto, o quadrinho mais conhecido de Moore é Watchmen, cuja resenha já consta aqui no site dos bons livros. A história foi lançada entre 1986 e 1987. Em 1989, Moore completou o seu trabalho em “V de Vingança”, um de seus trabalhos mais populares. Moore trabalhou muito e ganhou praticamente todos os prêmios dados em quadrinhos. E seu quadrinho “Watchmen” foi incluído pela revista Time como uma das cem melhores obras de ficção escritas no século XX.
O contexto histórico de “V de Vingança” alude a muitos eventos históricos sendo alguns mais importantes, como a Guerra Fria, os valores conservadores da era Reagan/Thatcher, e a epidemia da Aids. Na época em que Moore estava escrevendo “V de Vingança”, a Guerra Fria ainda era uma realidade e, em muitos aspectos, ainda estava em escalada. As duas superpotências nucleares na época, EUA e URSS, competiam pelo controle econômico e político do mundo. Uma das formas dessa disputa foi o armazenamento de mísseis nucleares.
Os orçamentos militares foram aumentados durante o período da Guerra Fria, que durou trinta anos. Havia um medo generalizado de uma guerra nuclear, que poderia facilmente destruir o planeta. A premissa de “V de Vingança” é de que essa guerra havia ocorrido.
Outro evento importante em “V de Vingança” é a ascensão do conservadorismo no Reino Unido e na América durante a década de 1980. Durante esse período, Reagan e Thatcher foram amplamente criticados por sua indiferença aos negros, feministas, homossexuais, socialistas e outros grupos demográficos cujas identidades se opunham aos valores morais tradicionais. O vírus da AIDS, a falta de dinheiro para pesquisas foi criticada nesse período. Moore leva o conservadorismo Reagan/Thatcher ao seu extremo ideológico com Norsefire. E o que vem a ser Norsefire? É um partido neofascista altamente conservador, supremacista, de uma origem fictícia nórdica que governa o Reino Unido. A organização prometeu estabilidade e restauração do Reino Unido após a guerra nuclear mundial entre EUA e URSS dizimar a Terra.
Um outro ponto aludido em “V de Vingança” é a Conspiração da Pólvora ocorrida em 1605. Um grupo de católicos radicais, incluindo Guy Fawkes, conspirou para assassinar o rei James I, explodindo o parlamento do governo inglês. Em novembro Fawkes foi preso e torturado por seu ato de traição. Ele cometeu suicídio antes que os soldados ingleses pudessem executá-lo. Esse ato de desobediência violenta de Fawkes encontrou um lugar na história inglesa: em novembro, os ingleses lançam fogos de artifício em reconhecimento à conspiração da pólvora.
Dito isso, vamos à história?
Através de sua história em quadrinhos “V de Vingança”, Alan Moore provoca seus leitores ao analisar tanto o fascismo quanto o anarquismo para determinar sua sociedade ideal. Através de atenção específica aos detalhes, Moore compartilha uma narrativa, que se concentra em seu personagem principal, “V”, levando o leitor a questionar suas ideias e a moralidade de “V”.
Estamos em 5 de novembro de 1997, e a Inglaterra é governada por um regime tirânico chamado Norsefire. Alan Moore tenta ilustrar a ditadura fascista como uma corporação composta por cinco instituições. O líder é “A Cabeça” (escritórios de governo), que governa a Inglaterra com mão de ferro, fazendo uso das instituições de seu governo. As outras organizações de vigilância são chamadas de “O OLHO” porque vigiam os cidadãos (vídeo-vigilância). O ramo dos detetives é chamado de “O Nariz” (o contraterrorismo). “O Dedo” (a aplicação da lei), “O Ouvido” (vigilância por telefone). A mídia controlada pelo Estado é conhecida como “A Boca”, espalhando propaganda pela sociedade.
O anarquista anônimo “V” usa uma máscara de Guy Fawkes para esconder sua identidade. E foi numa noite que uma garota chamada Evey se prepara para sair com um olhar preocupado. “A Voz do Destino” está no ar discutindo o clima, zonas de quarentena, racionamento de carne, uma rede de terroristas e a rainha Zara de 16 anos. Enquanto isso, V coloca suas luvas e máscara.
Evey sai para fazer um programa, isso mesmo, prostituição. Ela trabalha numa fábrica de munições, mas o que ela ganha é insuficiente para pagar suas despesas pessoais. Quando ela se oferece sexualmente de uma forma ingênua, algo acontece. Um homem mostra o distintivo e tenta estuprá-la. Ele faz parte de “O Dedo” (a polícia), ou seja, a aplicação da lei que a intercepta numa tocaia. Seus colegas se aproximam. “V” aparece. O oficial agarra o pulso de “V” e sua mão sai. “V” joga gás lacrimogênio nos policiais, agarra Evey e foge. A mão na verdade era falsa e escondia uma bomba, que explode matando um dos policiais. Os dois sobreviventes precisam encontrar “V”.
“V” leva Evey para o telhado, com as casas do parlamento ao fundo. “V” diz a Evey que é a celebração: o aniversário da Conspiração da Pólvora.
“Eu lembro, eu lembro do cinco de novembro que traição. Que artimanha. Por isso ninguém acanha o Dia da pólvora chegar.” (capítulo 1, pg 7)
O parlamento explode e “V” leva os créditos daquele atentado e todos ficam hipnotizados pelos fogos de artifício que explodem como se fosse uma festa. “V” diz a Evey para ir com ele para se preparar para o seu primeiro ato. Evey é levada para casa de “V” de olhos vendados. Ele se apresenta como “V” e mostra para Evey a sua casa, cheia de livros, música, arte, todos os livros banidos pelo governo, considerados subversivos.
Enquanto isso, o Líder recebe o relatório dos eventos daquela noite fatídica para os detentores dos podres poderes. Ele exige a cabeça do culpado. Ele fala com o líder de cada setor do Norsefire: Eric Finch (o Nariz), Derek Almond (o Dedo), Brian Etyheridge (Orelha) e Conrad Heyer (Olho). O líder exige que Finch localize o terrorista responsável pelo bombardeio e o mate. Prothero comunica através da rádio a “Voz do Destino” o ocorrido para toda a população.
O clima está tenso. No dia seguinte, “V” se veste com uma fantasia de vaudeville para enfrentar Prothero. “V” faz Prothero se lembrar sobre o seu passado. Ele era um guarda sádico da prisão de Larkhill, um lugar que era um campo de concentração. “V” diz a ele que era “o homem da Sala V em 1993”, uma verdade que aterroriza Prothero, o deixa louco. A Inglaterra começa a perder a confiança na mídia.
O Líder admite ser um fascista e rejeita toda a conversa sobre liberdade e direitos. Seu único amor é o Computador “A Voz do Destino”. A tensão aumenta depois que “V” vai para Old Bailey (um famoso ponto turístico de Londres) e detona o Tribunal Criminal Central da Inglaterra, matando três líderes do Partido Fascista.
Quando “V” volta, Evey quer ajudá-lo e ao mesmo tempo lhe agradecer por ter salvo a vida dela. “V” veste Evey de prostituta e a envia para a sua próxima vítima: o bispo Anthony Liliman. Liliman faz sexo com prostitutas infantis – um fato que muitos funcionários do governo sabem, mas toleram. Sozinho com Evey, Liliman tenta seduzi-la. Evey abre a janela e “V” pula para dentro. E o força a receber a Sagrada Comunhão – Lilliman, aterrorizado, aceita comungar. Só que a hóstia continha cianureto. Finalmente, V mata a Dra. Surridge através de injeção letal.
Ao investigar o diário da Dra Surridge, o detetive Finch (do departamento “O Nariz”) descobre que “V” era um preso do quarto V (5 no algarismo romano) em Larkhill, um campo de concentração. E o único sobrevivente havia sido “V”. Finch percebe que “V” arrancou as páginas do diário para esconder sua verdadeira identidade; e “V” matou todos que trabalhavam no campo e tinham conhecimento de sua identidade. O diário mostra que “V” escapou do campo de concentração atacando os guardas com produtos químicos.
Em 23 de fevereiro de 1996, “V” transmite na rádio, pedindo aos cidadãos que assumam o controle de suas vidas e parem de apoiar líderes que não trabalham em seu benefício:
“Nós tivemos uma sucessão de malversadores, larápios e lunáticos tomando um cem números de decisões catastróficas. Isso é inegável. Mas que os elegeu? Você! Você indicou essas pessoas você deu a elas o poder para tomar em seu lugar! Embora eu admita que qualquer um esteja sujeito a se equivocar cometer os mesmos erros fatais séculos após séculos, parece uma atitude deliberada. Você encorajou esses incompetentes que transformaram sua vida profissional num inferno. Aceitou suas ordens insensatas sem questionar. Sempre permitiu que enchessem o seu espaço de trabalho com máquinas perigosas. Você podia ter detido essa gente.” (pág. 7 parte 2)
Seu comentário anarquista provoca um choque moral na comunidade e em sua liderança. Ao mesmo tempo, a relação entre “V” e Evey começa a se desenvolver, e, a certa altura, ela está convencida de que “V” é seu pai, mas está enganada. Após uma discussão sobre a moral de “V”, ela é abandonada sozinha. Até que ela conhece Gordon Dietrich, por quem se apaixona. Gordon Dietrich acaba sendo assassinado por um criminoso chamado Harper. Ela acaba sendo presa, acusada de outro assassinato e é sequestrada. Colocada numa prisão numa cela escura, seu cabelo é raspado, ela é torturada na prisão. Evey é libertada quando percebe que sua prisão foi um teste estabelecido por “V”. A partir dessa prisão, ela estabelece uma conexão com o anarquismo.
No dia 5 de novembro de 1998, “V” detona bombas na Jordan Tower (“A Boca”) e na Post Office Tower (sede de “O Olho”), matando Etheridge, o chefe de “A Orelha”. Foi quando “V” recebe um tiro do detetive Finch, e morre nos braços de Evey. Ela decide não revelar a identidade de “V”, mostrando a ambiguidade do personagem. Evey dá a “V” um “funeral Viking” que ele sempre quis. Evey continua o trabalho de “V”. Finch, o assassino de “V”, desiste de reestabelecer a ordem e termina o romance caminhando sozinho. Esse simbolismo gráfico ajuda o leitor a ver os efeitos da anarquia. O restante do romance tem imagens semelhantes, o que nos permite analisar os principais conceitos da história.
O conflito entre o fascismo e o anarquismo é examinado nesse quadrinho com muita originalidade. As histórias justapostas de “V”, Finch e Evey são cruciais para entendermos a moralidade na cultura social. “V” tenta trazer a liberdade ao mundo através da destruição criativa. A história de esperança e desespero de Evey, permite que o leitor se relacione mais com esse personagem. A busca de Finch, o detetive, para desenterrar a identidade de “V” permite ao leitor analisar a moralidade das ações de “V” e entender o governo como uma instituição funcional de um corpo humano composto por “A Cabeça”, “O Olho”, “O Ouvido”, “O Nariz”, “A Boca” “O Dedo”.
Indico “V de Vingança”, de Alan Moore, um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.