A Paixão Segundo G.H.
No dia 10 de dezembro de 1920, em Tchetchelnik, numa aldeia da Ucrânia, nascia Clarice Lispector. Seu nome original era Haia Lispector, a terceira filha do comerciante Pinkouss e de Mania Lispector. Quando Clarice nasceu. havia duas irmãs. Leia. de 9 anos, e Tania, de 5 anos. Clarice nasceu durante a viagem de emigração da família para o Brasil – os pais judeus tiveram que fugir devido à Revolução Bolchevique de 1917.
Quando chegaram ao Brasil, se estabeleceram primeiramente em Maceió, Alagoas, onde morava Zaina, irmã de sua irmã. Por uma questão de segurança, presumo, o pai resolveu mudar os nomes de todos, e Haia (nome original) virou Clarice.
Depois de algum tempo, a família mudou-se para a cidade do Recife, onde Clarice passou a sua infância em Boa Vista. Aprendeu o português rapidamente, tanto ler como escrever. E foi a partir desse domínio da língua que ela começou a escrever pequenos contos. Quando completou 12 anos de idade, a família mudou-se para o Rio de Janeiro, indo morar na Tijuca. Foi no Colégio Silvio Leite que ela terminou o ginasial. Em 1941, passou na Faculdade Nacional de Direito, e empregou-se como redatora na “Agência Nacional”. Trabalhou também para o jornal “A Noite” e em 1943 casou-se com o seu amigo de turma Maury Gurgel Valente.
Seu marido era um diplomata de carreira, fez a sua primeira viagem a Nápoles, na Itália, ingressou como voluntária na equipe de assistentes de enfermagens da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Morou na Suíça quando nasceu o seu primeiro filho Pedro. Foi a partir daí que Clarice começou a escrever contos. Mudou-se para a Inglaterra em 1954 e em 1954 mudou-se para Washington, onde teve seu segundo filho, Paulo.
Quando seu casamento acabou, desembarcou no Brasil com os seus dois filhos e começou a trabalhar no jornal “Correio da Manhã”, assumindo a coluna “Correio Feminino”. Em 1960, trabalhou no “Diário da Noite” com a coluna só para mulheres. Foi nesse período que ela ganhou o Prêmio Jabuti da Câmera Brasileira do Livro. Nesse ano, lançou “Laços de família”, um livro de contos. Em 1964, Clarice escreveu “Paixão Segundo G.H.”, o livro de que falaremos hoje.
Antes de ir ao assunto, quero dizer que acabei de comprar a biografia de Clarice Lispector escrita por Benjamin Moser, que em breve iremos resenhar por aqui, daí esses dados biográficos serem tão rápidos. Clarice Lispector está no mesmo patamar de gigantes da literatura, como Virgínia Woolf, Kafka e Alice Munro, disso nem se discute. Clarice Lispector, com toda a certeza, é uma escritora fora do comum. Ao reler “Paixão Segundo G.H.”, tive essa mesma sensação. A primeira vez que li estava esperando horas no aeroporto Tom Jobim e quando acabei de ler no avião, confesso que não sabia “se minha alma estava formada” para ler esse livro viajar na história e ao mesmo tempo no fluxo das frases da autora. Na segunda vez, achei a leitura ainda melhor, pois muitos detalhes haviam passado batidos por mim na primeira leitura.
A escrita de Clarice Lispector preserva muitas dessas características, tornando-a uma das mais importantes escritoras da literatura brasileira e uma das mais estudadas. A relação de Clarice com a escrita é muito forte, começou muito cedo e se fortaleceu graças a uma cultura erudita preservada pelo seu pai. Eu costumo me referir a ela como uma escritora soprada, uma voz que ela chama de seu núcleo que lhe dita os fluxos das frases e dos inúmeros pensamentos filosóficos e mesmo o pensamento físico, quando ela diz que o infinito é composto por finitudes.
O sentido de escritora soprada a que me refiro é o que define o poeta no sentido que Octávio Paz estabelece quando ele se refere a “uma outra voz” soprando no ouvido de Clarice Lispector que se materializa na linguagem. Em síntese, digo que Clarice Lispector faz alquimia nas palavras que expressa, algo que chega a ser mágico, uma poeta que sabe os segredos das palavras. A distinção entre o eu e a “massa de sensações” é o que move sua escrita, proporcionando-nos muitas vezes a sensação de vertigem. Sei que um crítico literário provavelmente não concordará com isso, mas é o que eu acho.
O romance já começa mostrando-se diferente pela dedicatória de Clarice Lispector. Ela, ao contrário da normalidade literária da época, resolve dedicar seu romance não a alguém específico, com quem teve fortes ligações. Escolhe, pois, dedicar a um leitor:
“A POSSÍVEIS LEITORES
Este livro é como um livro qualquer. Mas eu ficaria contente se fosse lido apenas por pessoas de alma já formada. Aquelas que sabem que a aproximação, do que quer que seja, se faz gradualmente e penosamente – atravessando inclusive o oposto daquilo que se vai aproximar. Aquelas pessoas que, só elas, entenderão bem devagar que este livro nada tira de ninguém. A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria.” (pág. 5)
Essa dedicatória nos mostra que Clarice Lispector nos dá uma pista de que ela se colocará num lugar de uma outra pessoa com o leitor, um alguém que, por meio da linguagem, viaje com ela no caminho de sua descoberta da individualidade. E é no leitor que G.H. se apoia e encontra refúgio. Desde o início de seu relato, G.H. se mostra solitária e em desespero por não ter apoio. É assim que ela inicia suas palavras:
“...Estou procurando, estou procurando. Estou tentando entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. Não confio no que me aconteceu. Aconteceu-me alguma coisa que eu, pelo fato de não saber viver, vivi uma outra?” (pág. 7)
Encontrar alguém que a ajude a compreender a dar sentido à experiência pela qual passou (e ainda encontra dentro dela) é fundamental para G.H. alcançar esse objetivo, que é dar sentido à sua existência. Ela tenta, mas não consegue guardar para si essa experiência de seu ser mais profundo. Ela precisa contar a alguém. Para isso, o livro é a comunicação possível para que sua experiência seja revelada.
O livro é sobre uma pessoa com as iniciais G.H. e conta o percurso de uma vida absolutamente previsível de uma mulher de classe média alta que, em meio às atividades domésticas higienizadas e arrumadas, se depara com uma repulsiva barata no seu apartamento de luxo. G.H. mergulha em seu passado pessoal mais recente e volta-se para a infância pobre e resolve camadas e camadas de civilizações soterradas, revelando a pré-história da terra e toda a vida que aí se desenvolveu. O encontro ocorre no quarto de Janair, sua empregada. Durante o percurso até chegar ao quarto vive um verdadeiro calvário interior e inicia-se uma perturbadora desconstrução do eu.
Em “Paixão segundo G.H.”, podemos claramente dizer que há um traço polissêmico, principalmente nas referências de tempo e espaço na medida que ganham uma multiplicidade de sentidos. A narração gravita em torno do personagem G.H. em um apartamento que no fundo é uma metáfora da peregrinação de ordem interior a partir de uma decisão rotineira de arrumá-lo.
“Levantei-me enfim da mesa do café, essa mulher. Não ter naquele dia nenhuma empregada, iria me dá o tipo de atividade que eu queria: o de arrumar. Sempre gostei de arrumar. Suponho que esta seja a minha única vocação verdadeira. Ordenando as coisas, eu crio e entendo ao mesmo tempo. Mas tendo aos poucos, por meio do dinheiro razoavelmente
Bem investido, enriquecido o suficiente, isso impediu-me de usar essa minha vocação: não pertencesse eu por dinheiro e por cultura à classe a que pertenço, e teria normalmente tido o emprego de arrumadeira numa grande casa de ricos, onde há muito que arrumar. Arrumar é achar a melhor forma. Tivesse eu tido emprega arrumadeira, e nem sequer teria precisado do amadorismo da escultura; se com minhas mãos eu tivesse podido largamente arrumar. Arrumar a forma?
O prazer sempre interdito de arrumar uma casa me era tão grande que, ainda sentada à mesa, eu já começara a ter prazer ao mero planejar. Olhara ao apartamento: por onde começar?” (pág. 29)
A partir do momento em que G.H., a caminho do quarto da empregada, transpõe a parte social do apartamento, a área de serviço funciona como algo que emite forças estranhas por todo o edifício. A personagem constata, então, uma paisagem desprovida de sentido humano
“Olhei para baixo: treze andares caíam do edifício. Eu não sabia que tudo aquilo já fazia parte do que ia acontecer [...] O bojo de meu edifício era como uma usina. A miniatura da grandeza de um panorama de gargantas e canyons: ali fumando, como se estivesse no pico de uma montanha, eu olhava a vista, provavelmente com o mesmo olhar inexpressivo de minhas fotografias” (pág. 30, pág. 31)
G.H. transpassa o corredor que possibilitará sua chegada ao quarto de empregada. Tal como um rito de passagem. Esse corredor funciona como o passo principal a ser dado pela protagonista para adentrar os espaços desconhecidos de si mesma.
“... O quarto parecia estar em nível incomparavelmente acima do próprio apartamento. Como um minarete. Começara então a minha impressão de minarete, solto acima de uma extensão ilimitada. Dessa impressão eu só percebia por enquanto meu desagrado físico.” (pág. 34)
Numa das paredes brancas do quarto, entretanto, há contornos a carvão de um homem, uma mulher e um cão, deixados pela empregada:
“Na parede caiada, contígua à porta - e por isso eu ainda não o tinha visto — estava quase em tamanho natural o contorno a carvão de um homem nu, de uma mulher nua, e de um cão que era mais nu do que um cão. Nos corpos não estavam desenhados o que a nudez revela vinha apenas de ausência de tudo o que cobre; eram contornos de uma nudez vazia. O traço era grosso, feito com ponta quebrada de carvão. Em alguns, feito de ponta quebrada de carvão. Em alguns trechos o risco se tornava duplo como se um traço fosse um tremor do outro. Um tremor seco de carvão seco. (pág. 34, pág. 35)”.
Desde que GH se desloca para o quarto de sua empregada, que se chama Janair, um novo mundo de completa renúncia e estranhamento se estabelece na vida da personagem, que é uma artista escultora de classe média alta que vive numa cobertura. E ela encontra no quarto da empregada três desenhos feitos a carvão na parede: três signos codificados na figura de um homem, uma mulher e um cachorro.
“Olhei o mural onde devia estar sendo retratada... Eu, o Homem. E quanto ao cachorro – seria este o epiteto que ela dava? Havia anos que eu só tinha sido julgada pelos meus pares e pelo próprio ambiente que eram, em suma, feitos de mim mesma e para mim mesma. Janair era a primeira pessoa realmente exterior de cujo olhar eu tomava consciência.” (pág. 36)
A presença da barata desencadeia uma desordem na interioridade de G.H. A essa altura, seus sentimentos e emoções desabam diante daquele ser que ela insiste em observar:
“Era uma cara sem contorno. As antenas saíam em bigodes dos lados da boca. A boca marrom era bem delineada. Os finos e longos bigodes mexiam-se lentos e secos. Seus olhos pretos facetados olhavam. Era uma barata tão velha como um peixe fossilizado. Era uma barata tão velha como salamandras e quimeras e grifos e leviatãs. Ela era antiga como uma lenda. Olhei a boca: lá estava a boca real. Eu nunca tinha visto a boca de uma barata. Eu na verdade – eu nunca tinha visto a boca de uma barata. Eu na verdade – eu nunca tinha mesmo visto uma barata. Só tivera repugnância pela sua antiga e sempre presente existência – mas nunca a defrontara, nem em pensamento” (pg51pg52)
No confronto que G.H. estabelece com a barata prevalece a sedução. Ela ultrapassa a constituição asquerosa como de adoração sagrada por parte da protagonista. E para isso ela convida o leitor a entrar dentro da obra. Uma linguagem está sendo estabelecida para que o leitor viva e sinta. Mas só os leitores de “alma formada” conseguirão decodificar a sua linguagem espiralada. Prova de que para Clarisse Lispector a vida precisa ser sentida e experimentada por meio da literatura.
O leitor, nesse romance, é convidado a experimentar a vida que o texto sugere, “segure a mão” e siga e assuma a responsabilidade de dizer a G.H. quem ela é, a história da própria Clarice.
“Dar a mão a alguém foi que esperei da alegria. Muitas vezes antes de adormecer – nessa pequena luta por não perder a consciência e entrar no mundo maior – muitas vezes, antes de ter a coragem de ir para a grandeza do sono, finjo que alguém está me dando a mão e então eu vou para a enorme ausência de forma que é o sono. E quando mesmo assim não tenho coragem, então eu sonho.” (pg14)
Um outro ponto que é inevitável é fazer uma conexão entre “A Metamorfose”, de Franz Kafka, e a “Paixão Segundo G.H.”.
Existem diferenças enormes entre as duas obras. Gregor Samsa vive uma metamorfose alheia à sua vontade, enquanto G.H. sofre uma metamorfose interna, voluntária. São duas linguagens diferentes. Kafka é sucinto, enxuto, narrado na terceira pessoa. Gregor não observa um inseto, ele é um inseto. Clarice busca o infinito através dos fluxos de consciência e seu livro é escrito em primeira pessoa e faz livres associações que levam à tensão e ao movimento. Existem duas baratas aqui. A de Kafka é usada para mostrar a desumanização de Gregor Samsa e em Clarice ela é tomada como a humanização de G.H.
“No fundo somos tão, tão felizes, pois não há uma forma única de entrar em contato com a vida, há inclusive as formas negativas! Inclusive as dolorosas, inclusive as quase impossíveis — e tudo isso, tudo isso antes de morrer, tudo isso mesmo enquanto estamos acordados! E há também às vezes a exasperação do atonal eu sou uma alegria profunda: atonal exasperado é voo se alçando – a natureza é o atonal exasperado, foi assim que os mundos se formaram: o atonal exasperou-se.” (pg 137)
Em “A Paixão segundo G.H.”, Clarice Lispector revela os seus segredos através do desdobramento dos vários “eus” que compõem a sua vida. E Clarice pede a mão para sentir segurança de todo leitor, a segurança necessária para enfrentar a desconfortante viagem ao centro de si mesmo. É com a mão do leitor que ela se apoiará na “terceira perna” e a alteridade é um processo de alegria. A linguagem se apresenta como uma poderosa arma para discutir essas questões.
“Fico tão assustada quando percebo que durante horas perdi minha formação humana. Não sei se terei uma outra para substituir a perdida. Sei que precisarei tomar cuidado para não usar sub-repticiamente uma nova terceira perna que em mim renasce fácil como capim, e a essa perna protetora chamar de ‘uma verdade”. (pg 10)
A literatura assume um papel importante como sendo o outro capaz de retribuir ao autor a visão de si. O autor se depara através da escrita para obter de si uma imagem. O leitor e autora se unem e se constroem através do único elo que os une: a literatura.
Como Clarice nos diz: “A mim, por exemplo, o personagem G.H. foi dando pouco a pouco uma alegria difícil; mas chama-se alegria”.
“A Paixão Segundo G.H.”, de Clarice Lispector, merece um lugar de HONRA na sua estante.