A Falecida
A peça teatral “A falecida”, de Nelson Rodrigues, foi escrita e encenada pela primeira vez em 1953, pela Companhia Dramática Nacional, sob o patrocínio do Serviço Nacional de Teatro. Ela surgiu dez anos após o estrondoso sucesso da peça “Vestido de Noiva”, do mesmo autor, que marcou uma grande inflexão no teatro moderno brasileiro. Severas críticas tecidas à época da estreia da peça demarcaram o território, as ousadias rodriguianas foram duramente rechaçadas.
“A falecida” é uma mistura de tragédia, comédia, farsa, tudo misturado. Ela nos faz rir, sem dúvida alguma, mas é desagradável, uma mensagem triste, um pessimismo visceral onde a morte, o ressentimento, a inveja, a humilhação e o humor conversam.
Em suas memórias, Nelson Rodrigues fala sobre o tempo em que morou na Aldeia Campista, bairro da zona norte, situado entre a Tijuca, Maracanã, Andaraí e Vila Isabel. As ruas que interligam esses bairros são as ruas Gonzaga Bastos, Pereira Nunes, Dona Maria, Araújo Lima, rua Amaral e Almirante João Cândido Brasil. Cito, pois já morei ali perto na rua Uruguai. Nelson Rodrigues sentia uma certa compaixão pelas adúlteras. E, desde então, sempre procurou apurar as causas de uma infidelidade feminina, sem saber se era uma curiosidade mórbida, ou por uma compaixão. Além das adúlteras, observava outros personagens do bairro da sua infância. E foi dessa experiência que nasceu “A falecida”.
Essa peça foi um marco no teatro brasileiro ao abordar uma temática extremamente carioca, onde os suburbanos e os moradores da zona norte, frustrados e fracassados, eram os protagonistas. Foi onde o Brasil pôde se reconhecer. E não foi à toa que o sucesso comercial foi enorme.
Nelson Rodrigues considerava a classe média, especialmente a suburbana e a da zona Norte, mais interessante e mais humana. Ele era fascinado por essa classe ou por uma classe muita baixa. Sua relação com os ricos não era muito estreita, apesar de não dispensar a riqueza de um bicheiro.
“A solução do Brasil é o jogo do bicho! E, minha palavra de honra, eu, se fosse presidente da República, punha o Anacleto (bicheiro) como ministro da Fazenda”. (pg 33)
Mas a classe média era o seu prato preferido, por ser capaz de matar e de matar-se.
“A falecida” narra em três atos a história de uma mulher chamada Zulmira (e seu marido Tuninho), ambos oriundos do subúrbio do Rio de Janeiro. Ela sofre de uma terrível frustração pessoal e acaba adquirindo uma tuberculose. Seu marido Tuninho está desempregado e vive dos restos de uma indenização, jogando sinuca e conversando sobre futebol.
O casal encontra-se numa situação bem complicada financeiramente, a ponto de Zulmira ir visitar uma cartomante: Madame Crisálida. A cartomante faz uma afirmação que produzirá um verdadeiro dilúvio em sua vida. Ela diz a Zulmira que tenha cuidado com uma loira. Zulmira entra em parafuso.
Nos dois primeiros atos, Zulmira e Tuninho encontram-se muito mal financeiramente. Zulmira recorre à morte, e para isso imagina-se sendo enterrada luxuosamente como uma espécie de redenção imaginária frente à pobreza e à irrelevância de sua vida. Paralelamente a isso, Zulmira renuncia ao seu marido, muda a sua rotina, negando-se a beijá-lo, sob a ideia fixa de que esses gestos são abomináveis para a recém-convertida à igreja Teofilista (uma invenção de Nelson Rodrigues), que acredita que as orações possam realizar a cura que os medicamentos e os atos médicos não podem.
“Tuninho – Vamos meter uma praia?
Zulmira – Não.
Tuninho – Vamos! Agora que eu estou desempregado, podíamos aproveitar, ir até todo dia à praia!...
Zulmira – Deus me livre!
Tuninho – Por que, ué?
Zulmira – Sabe aonde é que eu fui hoje?
TUNINHO – Não...
Zulmira – À igreja teofilista!
Tuninho – Que mágica é essa?
(Zulmira agarra-se ao marido fanatizada.)
Zulmira – Eu me converti, Tuninho! Vou me batizar outra vez!
Tuninho – Por que, carambolas? Domingo passado tu foste à missa. E já viraste casaca?
Zulmira – Uma vez, há muito tempo, eu vi um enterro teofilista. Na hora de fechar o caixão, cantaram hinos, nunca mais me esqueci.
(Tuninho explode.)
Tuninho – Olha!
Zulmira (mística) – Fala!
Tuninho – Eu não tenho nada com isso. Você é maior, vacinada, pode ter a religião que quiser e pronto. Mas vamos à praia, ora bolas! O que é que tem a praia com as calças?
Zulmira – Tu me achas com cara de ir à praia? Agora, que eu me converti?
[...] Zulmira – A mulher sem maiô está nua. Compreendeu? Nua no meio da rua, nua no meio dos homens” (pg 25, pg 26, pg 27)
No terceiro ato, iremos entender os motivos pelos quais a loira aparece no baralho de dona Crisálida. Quem era essa loira? Seu nome é Glorinha. Zulmira manda Tuninho procurar o milionário Pimentel para que este pague o seu enterro de 35 mil contos (o sepultamento normal, na época, não chegava a um conto!). Zulmira não dá maiores explicações nem diz como conhece o empresário milionário. Pede apenas que o marido se apresente como seu primo. Tuninho vai até a mansão de Pimentel e acaba descobrindo que ele e Zulmira foram amantes. Os dois mantiveram furtivamente relações sexuais tórridas.
E, por ironia do destino, quando o casal de amantes estava passeando de braços dados, foi surpreendido pela presença da prima loira, Glorinha. O resultado é que a prima passa a evitá-la, por saber que Zulmira é uma adúltera. Pimentel, ao contar a história, não sabia que Tuninho era o marido de Zulmira e concordou em pagar uma pequena quantia. Mas Tuninho vira o jogo e exige a quantia pedida por Zulmira para o suntuoso funeral de sua mulher, pois ameaça contar para o jornal Radical.
Toma-lhe o dinheiro e, depois de ameaçar contar tudo a um jornal inimigo de Pimentel, consegue lhe arrancar mais ainda, supostamente para a missa de sétimo dia. Tuninho dá um enterro "de cachorro" à Zulmira e aposta o dinheiro todo num jogo do Vasco no Maracanã.
Tuninho compra um caixão baratíssimo para Zulmira. E enterra a mulher e fica com o dinheiro. Ele vai ao Maracanã assistir ao jogo do seu Vasco da Gama contra o Fluminense gritando alucinadamente:
“Casaca! Casaca! A turma é boa! É mesmo da fuzarca! Vassssco!” (pág. 81)
Uma curiosidade a respeito de Glorinha: essa personagem foge à intencionalidade clássica do teatro. Ela não está relacionada como personagem da peça, mas é a responsável pela formação do conflito desenvolvido na trama. Flávio Aguiar, que comenta a peça na edição da editora Saraiva que comprei, diz:
“Essa presença/ ausência de Glorinha, a ameaça que nunca se materializa, mas que paira continuamente, é que dá dimensão trágica à peça, abrindo-a para o mistério e o inefável que sempre acompanhou a tragédia” (pg 84)
Glorinha é uma personagem criada a partir do que os outros dizem a respeito dela. Glorinha existe nas falas das personagens, é uma simples menção que é responsável por toda a história, sendo o principal motivo do conflito estabelecido e pela articulação de toda a história. Mas ao mesmo tempo ela não é uma personagem, pois ela não age em momento algum, existindo apenas no plano das ideias das personagens que falam sobre ela.
“A falecida” começa com a ida de Zulmira a uma cartomante, que lhe revela uma mulher loira. Ela pergunta se existe alguma loira em suas vidas. Tuninho se lembrou de Glorinha, a prima de Zulmira. A partir daí fica claro quem é a loira que dona Crisálida havia mencionado. Começa a entrar em looping totalmente cismada. Para Zulmira, Glorinha era uma cínica:
“Zulmira- Foi um altíssimo negócio essa cartomante. Agora eu sei de tudo. Essas dores nas costas... Olha: hoje passei o dia inteirinho com o nariz entupido
Tuninho- Gripe!
Zulmira- Gripe aonde? (lenta e cava) Macumba!
Tuninho- Sossega!
Zulmira – Sim, senhor! Alguma macumba que essa cara me fez! Aposto!
Tuninho- Mas a mulher é protestante!
Zulmira- “Protestante” máscara! Vou te dizer mais o seguinte: Glorinha tem parte com o demônio!
Tuninho embalado pela voz da mulher, já adormeceu e ronca, sonoramente. Zulmira, porém, não toma conhecimento do sono profundo do marido)
Zulmira- Tu acreditas que ela seja tão séria como diz, Hein?
(Tuninho dormindo responde com os roncos)
Zulmira – Pois sim! Não é mais séria do que ninguém. Tão cínica que diz apenas o seguinte – vê se pode – que mulher que beija de boca aberta é uma sem-vergonha. Pode ser o marido pode ser o diabo que o parta” (pg 23; pg 24)
Zulmira, na medida que vai falar cobras e lagartos sobre sua prima, tem uma relação de competição com a prima, chegando até mesmo a ficar feliz quando sabe que a seriedade da prima provém de um seio arrancado pelo câncer.
A prima é a antagonista de Zulmira, mas, numa virada que vai se dando aos poucos, ela começa a se identificar com as ideias da prima e passa a concordar com essas ideias, e começa a agir com extrema rigidez no quesito moral, convertendo-se inclusive ao teofilismo.
O médico de Zulmira, que se chama Bormorema, diz que Zulmira não tem tuberculose. Nenhum médico consultado pela protagonista lhe deu um sintoma claro. No entanto, certa vez, quando Tuninho estava sentado no vaso da privada em posição de “O Pensador” de Rodin, sua mulher morre.
Zulmira desejava morrer para que todos pudessem ver – em especial, Glorinha – como sua morte não seria um evento à toa, pois seria enterrada com dignidade, com todas as glorificações e pompas que uma pessoa de respeito merecia.
Mas fico por aqui e indico essa obra-prima do teatro nacional, “A falecida”, de Nelson Rodrigues. Um livro que merece um lugar de HONRA na sua estante.