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Vidas em Fragmentos sobre a Ética pós moderna

“Ser moral” não significa “ser bom”, e sim exercício da liberdade de autoria. Não há soluções prontas para os dilemas. A necessidade de escolher vem sem uma receita predeterminada, infalível. A vida moral é um percurso de incertezas. Ela é construída de tijolos da dúvida e cimentada por surtos de autodepreciação. O projeto moderno postulou um mundo livre da ambivalência moral. O livro de que falaremos hoje chama-se “Vida em fragmentos − sobre a ética pós-moderna”, de Zygmunt Bauman, e fala sobre a moral na modernidade e sobre a ética na pós-modernidade. O autor é um velho conhecido nosso. Esse é o quarto livro desse autor que temos a honra de resenhar.

Vamos a ele?

Zygmunt Bauman esclarece no seu livro as diferenças entre a “Era da Ética”, típica da modernidade, e a “Era da Moral”, peculiar da pós-modernidade. A era da ética do projeto moderno era refazer o mundo à medida das necessidades e capacidades humanas, e segundo um plano de concepção racional de uma nova vida. A lei deveria ser o instrumento principal. A ética na Idade Moderna inaugurou novos modos de se criar ordem e segurança diante do passado. A ânsia de se libertar dos grilhões impostos pelo Deus do Cristianismo a partir da Razão foi a garantia de um futuro promissor.

O projeto moderno foi marcado pela criação e intensificação do modo de produção capitalista, pela separação do poder do Estado e da Igreja e pelos eventos emblemáticos, como a Revolução Francesa e a Reforma Protestante. Além desses eventos, é possível citar o domínio e a popularização da energia elétrica, a consolidação dos estados modernos, o surgimento e a expansão de modelos como liberalismo e socialismo.

Esse projeto moderno afirmava a possibilidade de uma humanidade livre não só de pecadores, mas também do próprio pecado; não só de pessoas que faziam más escolhas, mas também da própria possibilidade dessas más escolhas. Em outras palavras, a ética seria apenas mais uma opinião pessoal, produzindo assim uma personalidade “desembaraçada”, “desencaixada”, para quem é permitido (e que é forçada a) se autodefinir e se autoafirmar. Ao “self moral”, a modernidade ofereceu uma liberdade complementada por formas patenteadas de escapar dela.

“Pode-se dizer que, afinal, o projeto moderno postula um mundo desembaraçado da ambivalência moral. E uma vez que a ambivalência é a característica natural da condição moral, postula o afastamento entre as escolhas humanas e sua dimensão moral. Foi isso que a substituição da escolha moral autônoma pela lei ética produziu na prática.” (Pg 13)

Na época pré-moderna, a ordem religiosa direcionava as ações dos indivíduos. No sistema religioso, a grande questão não era a ideia de pecado, mas as ideias de arrependimento e de redenção. Nenhuma religião considerava a vida isenta de pecado, uma vida sem mal. No seu conjunto, as religiões aceitavam com realismo a inevitabilidade do pecado (quer dizer, os tormentos da consciência, inexoráveis no quadro da incerteza sem remédio da situação moral) e dedicavam de preferência os seus esforços no propósito de acalmar a dor, estipulando o arrependimento associado a uma ideia de redenção, ou seja, mal pode voltar a ser bem.

A Ética na modernidade segundo Bauman não consegue tornar efetivo o seu projeto racional de tudo prever e tudo prescrever. A expertise da ética em sua função foi transformar o pecado (da Idade Medieval) na culpa esculpida pela razão lógica e procurar expiá-la. Assim, a promessa de vida livre do pecado (doravante renomeada de culpa) traduziu-se apenas em um projeto racional.

A condição ética da Modernidade tudo explica, tudo prevê, tudo controla. Esse é o modo como a homogeneização das condutas se torna universal, descontextualizando-se tempo, espaço e cultura. Esse “império” se destina a salvar todos de seus medos e angústias, mas também criam outros novos, os quais se tornam seus reféns. A fundamentação racional acerca da Ética é terreno ambivalente porque a sua base é caótica, não pode ser explicada ou contida: bem-vindos ao (pantanoso) mundo da moral.

Os sacerdotes da ciência substituíram os sacerdotes de Deus; a sociedade orientada para o progresso estava destinada a conseguir o que a sociedade pré-ordenada não conseguiu. A crítica moderna extraiu sua energia e sua legitimação em uma crença inabalável no positivismo de Augusto Comte, que pautava sua filosofia no culto à ciência – o mundo e o materialismo em detrimento da metafísica e do mundo espiritual.

A secularização dos poderes religiosos, amplamente praticados na era pré-moderna pela Igreja, agora estavam a serviço do Estado. "O Estado entrou numa guerra contra todas as formas de vida que pudessem ser vistas como bolsões potencias de resistência contra o seu domínio".

Resumindo, podemos dizer que o glorificado desencanto com os sacerdotes de Deus parece mais com a passagem do bastão numa corrida de revezamento de mágicos. Vem em embalagem promocional que contém um novo e operacional kit de encantamento moderno.

E o que contém esse kit de encantamento? As fórmulas mágicas que contêm alguns ingredientes filosóficos: história e a razão. A razão da história, ou a história como trabalho da razão, ou ainda a história como processo de autopurificação da razão, de uma razão que se volta para si mesma por meio da história. Era a modernidade, nesse período considerando a si mesma universal.

“A civilidade era questão do aprendizado majoritariamente negativo, nada positivo: um aprendizado daquilo que se deve esconder, daquilo que não se deve falar, daquilo que se deve ter vergonha. Cada ato de espontaneidade, cada gesto ou careta não programados e descontrolados traía e expunha a fragilidade do verniz civilizado e a energia sensual das paixões que fervem sob a superfície. Assim, toda a espontaneidade era destrutiva para ordem civil e, pelo bem dessa ordem, tinha que ser ‘expulsa da existência pela vergonha’, proclamada degradante e embaraçosa e preparada para ser assim experimentada” (pg 81)

O homem da vida do cotidiano não tem capacidade intelectual para orientar suas próprias ações. Enfim, não conhece o bom para disseminar o bem. Por esse motivo, conclama-se aos peritos: “Salvem-nos da angústia e ambivalência de nossas decisões pessoais. Apontem-nos o que é “bom” a partir da tábula rasa de nossas obrigações”. Podemos dizer que a impotência ética dos leigos e a autoridade ética dos peritos explicam-se e justificam-se mutuamente.

 

Ao citar Kant, Bauman diz que:

“não se deve permitir que as emoções (isto é, todas as emoções, exceto a paixão pela lei moral – a lei proibida de ser minada por motivos pessoais, subjetivos, motivos “eu e tu”) interfiram com o trabalho da razão, uma vez que elas tornam os julgamento nebuloso e o debilitam, ele está cometendo uma tautologia: “emoções” significam o que “debilita” o “julgamento” – e não muito além disso. Se as regras e as normas que a razão notabiliza-se por legislar retivessem a integração humana numa garra completa e inapta, dificilmente haveria ocasião para ideia da paixão ser ao menos concebida. Mas supervisão da razão se paralisa bem perto da plenitude; a conduta humana, bem perto da monotonia; os intercursos humanos, bem perto da previsibilidade.”(pg 80)

O Iluminismo correspondeu a uma série de pensamentos que foram incorporados à burguesia na Europa a partir das lutas revolucionárias deflagradas no final do século XVIII, cujos temas gravitaram em torno da liberdade, progresso e humanidade. O objetivo era corrigir as desigualdades da sociedade humana e garantir os direitos considerados fundamentais do indivíduo, como a liberdade e o direito à propriedade privada.

As teses iluministas fracassaram com a Revolução Francesa (em 1789), o que abriu o caminho para o nascimento da ideologia marxista em todo o mundo, cujos princípios visavam dar fim à exploração do homem pelo homem e, como plataforma fundamental, reduzir as desigualdades econômicas entre as classes sociais e, no futuro, sua completa abolição. No entanto, o impressionante projeto de liberdade universal demandou uma estreita vigilância e regras rígidas.

A modernidade reconheceu a si mesma como civilização, deu a si mesma esse nome e produziu, a partir do destino que descobriu, uma nova forma de relação social para ser abraçada por todos. Definiu-se como civilização na tentativa de domesticar os elementos e criar um mundo artificial, que visa proteger os seus próprios fundamentos.

A razão iluminista foi substituída pela razão do capitalismo de mercado, que, ao exercer seu controle sobre as forças da natureza, estendeu sua dominação também sobre os seres humanos. O capitalismo de mercado tornou-se a referência privilegiada dessa modalidade de controle sobre a natureza e sobre os seres humanos.

A “universalização” acabou transformando-se em máscaras de intolerância em relação à alteridade e como licença para o sufocamento da alteridade do outro. O preço pago pelo processo de humanização é mais desumanidade. O resultado de tudo isso acabou no aparecimento de Auschwitz e do Gulag, passando por limpeza étnica, passando por ataques a estrangeiros, tudo graças à crença moderna de um Estado altamente regular estável e previsível para as nossas ações; um mundo em que a probabilidade dos acontecimentos não estivesse submetida ao acaso, mas arrumada em uma hierarquia sólida, por decreto por esse mesmo Estado. Essa proposição tão sonhada de uma sociedade totalmente ordenada acabou reproduzindo o seu contrário nas últimas décadas do século passado. Podemos dizer, sem medo de errar, que essa experiência não passou com louvor no teste do tempo da história.

O Estado atual perde sua característica pouco a pouco, a máquina de modernização da globalização retira os privilégios do espaço e move para a velocidade, para o movimento. O papel dos Estados deixou de ser aquele de impor regras e passou a ser o de implorar para que o capital pousasse por alguns anos em seus territórios.

Se a ordenação do Estado moderno e sua criação foram os gritos de guerra da modernidade, podemos ver que as promessas estáveis, sólidas foram se tornando líquidas. A liquefação da modernidade transforma-se naquilo que conhecemos como pós-modernidade, onde se opera a desregulamentação desse mesmo Estado.

Esse cenário aparentemente promissor, aos poucos, foi revelando outras facetas não tão prestigiosas da “autocracia humana”. A modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-se por organizações maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecido em ambientes mais tradicionais.

A “universalidade” deveria ser o reinado da razão, um projeto hercúleo, ou seja, a autonomia dos seres racionais. A “globalidade”, ao contrário, significa que em todo o mundo, em todos os lugares, você pode comer Mc Donald, ou assistir à mesma programação da televisão. Uma espécie de capitulação do tipo “se você não pode vencê-los, junte-se a eles”. A cronologia substitui a história, o “desenvolvimento” toma o lugar do progresso, a contingência assume o lugar do lógico.

A pós-modernidade (ou modernidade líquida) tem um elo com a Terceira Revolução Industrial cuja origem remonta à segunda metade do século XX com o surgimento de complexos industriais e empresas multinacionais, o desenvolvimento da indústria eletrônica, da indústria química, da automação, da informação, da engenharia genética e a substituição da alta tecnologia por uma mão de obra cada vez mais especializada.

Se o problema da identidade pós-moderna consistia essencialmente em se construir algo sólido e estável, na pós-modernidade consiste essencialmente de se evitar a fixidez. E manter abertas as opções. Se na modernidade o lema era “criação”, o lema na pós-modernidade é a reciclagem. O meio utilizado para mensagens na modernidade era o papel fotográfico. Segundo Bauman, o meio pós-moderno é definitivamente o vídeo.

O problema da identidade nasceu com a radicalização da globalização, que colocou a questão “de quem sou eu?” no seu centro. A mesma pergunta parece ter perdido essa centralidade na sociedade contemporânea, onde o processo de individualização assumiu um aspecto radical e a pergunta “quem sou eu?” não está mais no cerne da consciência individual. A tendência é ser o que se deseja ser. A identidade, uma vez que o coração da personalidade, baseada em valores e papéis sociais, agora é um projeto/fantasia individual, muda de acordo com as necessidades e desejos do indivíduo.

A oposição “ordem versus violência” é apenas uma das inúmeras oposições coincidentes (como aquelas entre razão e paixão, racionalidade e afetividade), sobrepostas à oposição moderna central entre controlado e não controlado, regular e irregular, previsível e imprevisível. Entre o espaço controlado e o não controlado, o que equivale a dizer a diferença entre civilização e barbárie.

Os bárbaros não significa apenas uma diferente forma de vida, mas uma forma deixada para trás, condenada à extinção. São aqueles que habitam o mundo civilizado, esperando o momento da vingança pelos golpes infligidos pelo processo civilizador. Sempre houve um homem selvagem caído na armadilha de cada homem civilizado. Intuiu-se e se insinuou “bárbaro” adormecido dentro de cada homem moderno são e saudável pronto a acordar e surgir furioso no primeiro momento de desatenção.

Cada corpo moderno era uma prisão, cada homem moderno era um carcereiro a vigiar o perigoso psicopata lá dentro. E o dever dos carcereiros era manter as grades fechadas e alarmes funcionando. A fronteira entre a civilidade e a violência, as guerras ortodoxas e antiquadas entre “nós” e “eles”, são travadas sob a bandeira da santa cruzada da civilização contra a barbárie, da paz contra a violência.

Zygmunt Bauman propõe que uma forma específica de violência pós-modernidade advém da privatização, da desregulamentação e da descentralização do Estado. O sentimento de insegurança de não pertencimento ocorre quando a socialização perde a sua solidez, dando margem para o aparecimento do tribalismo contemporâneo.

 

No tribalismo, dá-se a reunião de grupos de identificação em torno de totens contemporâneos, como, por exemplo, o futebol, a religião e as festas em geral. O processo de tribalismo pós-moderno insere-se na dualidade inserção/exclusão, pois os membros devem ou adaptar-se ao ambiente ou serão expulsos do convívio social. Por isso, os processos tribais envolvem dinamicidade, reagrupamentos constantes. Surgem novas tribos a cada dia e desaparecem tantas outras.

O conceito de neotribalismo carrega consigo a característica de fluidez e dispersão. O grupismo (neotribalismo) das sociedades ditas complexas é a constatação de uma rede rica de discussões conceituais. São muitos os exemplos que permeiam o ambiente emocional onde o tribal se desenvolve. Os exemplos não espantam mais ninguém e hoje já fazem parte da paisagem urbana.

Os punks, os skinheads, os ravers e outras tribos representam o espetáculo que vem sendo construído nas megalópoles contemporâneas. Nas tribos, o indivíduo está imerso no chamado ambiente emocional, ou seja, é através dessa ambientação que vão surgir os partilhamentos de sentimentos e sensações.

Os habitantes do líquido mundo moderno buscam construir e manter as referências comunais das identidades em movimento – lutando para juntar-se aos grupos igualmente móveis e velozes e tentar manter-se vivos por um momento, mas não por muito tempo. “Grito, logo existo” é a versão neotribal do cogito de Descates.

Hoje, no mundo que alguns observadores chamam de pós-moderno, ou modernidade líquida, os sonhos de uma ordem racionalmente sem defeitos e esteticamente perfeita não se encontram na ordem do dia. O impressionante sonho moderno se desintegrou em pequenos pesadelos privados, e a promessa de felicidade humana no mundo totalmente racionalizado desintegrou-se na busca solitária mais obediente, da felicidade por meio das pequenas racionalizações da vida individual.

A cada dia o mundo é submetido a mudanças cada vez mais contínuas, e a busca pela filiação segura e a qualquer instituição parece um absurdo. A comunidade enquanto tradição não modificável já foi desmantelada. Em outras palavras, quando a socialização perde a sua solidez. A comunidade na modernidade líquida é como um disfarce para a busca da identidade, é a ilusão da possibilidade de escolha. Quem escolhe uma comunidade para se adequar a uma identidade específica não se dá conta de que está fazendo uma escolha (no sentido da escolha do consumo), mas pensa que a comunidade é um caminho determinado de antemão.

Fico por aqui, apenas acrescentando que o livro “Vida em Fragmentos − sobre a ética na pós-moderna” é um livro essencial para entendermos a complexidade deste mundo em que vivemos. Um livro que merece um lugar de honra na sua estante.


Data: 24 outubro 2019 | Tags: Sociologia


< Aparecida O Apanhador no Campo de Centeio >
Vidas em Fragmentos sobre a Ética pós moderna
autor: Zygmunt Bauman
editora: Zahar
tradutor: Alexandre Werneck

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