Aparecida
Vários motivos me fazem resenhar o livro “Aparecida”, de Rodrigo Alvarez, uma biografia sobre Nossa Senhora da Aparecida. O primeiro motivo é que a história dessa santa é simplesmente maravilhosa, envolve momentos dramáticos, situações inusitadas de que falaremos a seguir. Sem sombra de dúvida alguma, trata-se de um livraço, uma história cheia de pontos de virada. E que te prende da primeira à última página.
Os santos são fonte de interesse e curiosidade particularmente pela sua forma de vida. Geralmente são vistos como figuras extraordinárias, que tiveram a oportunidade de experimentar em toda sua plenitude a transcendência. A devoção a Nossa Senhora Aparecida só ultrapassou os limites da então Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá, região da descoberta da imagem, quando começaram a se espalhar as histórias de milagres.
E foi assim que desde 1928 romeiros vêm agradecer aos pés da Santa as graças recebidas, como a cura de filhos doentes, conquistas, milagres. Enquanto percorrem os caminhos em direção à Aparecida, os romeiros pensam na vida, “meditam” sobre os erros cometidos, as atitudes para se tornarem pessoas melhores. Pagam promessas e pecados acumulados.
No caso de Nossa Senhora Aparecida, podemos dizer, nas palavras de Rodrigo Alvarez, que “do barro da terra, o escultor fez a mulher (Nossa Senhora Aparecida), e ela os milagres. Mas antes de ela ser a padroeira do Brasil, houve vários momentos de crise e de corrupção. Mesmo assim seus fiéis nunca a deixaram.
Desde o aparecimento da imagem, que relataremos mais abaixo, e a sucessão de eventos que começou no fundo do rio Paraíba. Uma imagem que antecede a Independência do Brasil e que apareceu antes da República, antes do futebol, antes do samba, antes de o Brasil ser Brasil. Não foi à toa que Nossa Senhora da Aparecida tornou-se a padroeira do Brasil.
O segundo motivo de escrever esta resenha é de ordem pessoal. Sou devoto de Nossa Senhora da Aparecida. E o motivo dessa devoção se deu em 1999, quando meu pai estava indo para a mesa de cirurgia, após ter colocado uma ponte de safena. Ele faria uma segunda operação muito sensível e de emergência. O hospital ligou falando dessa operação, cujos riscos eram imensos.
Peguei um táxi e comecei a desabafar com o taxista. Vivia uma situação delicada na minha vida, estava desempregado, minha mãe estava com um câncer terminal e naquele momento meu pai iria para uma mesa de cirurgia. Lembro-me de que o taxista ficou tocado pelo meu relato. Quando chegamos ao hospital, ele sacou uma oração de Nossa Senhora da Aparecida e disse para mim: “Leia. Ela é milagrosa!”. Eu li. Após a operação, fiquei quase três meses enfiado naquele hospital em Benfica. A operação havia sido um sucesso. E a partir daquele momento ela tornou-se a minha intercessora fundamental a Deus. E sou grato a ela até hoje.
O terceiro motivo é que estamos na semana de Nossa Senhora da Aparecida, dia 12 de outubro, que é nada mais nada menos que a padroeira do Brasil. Não poderia haver uma data melhor para falar sobre ela e a sua importância em nossa história.
Vamos de Nossa Senhora da Aparecida? Dom Pedro Miguel de Almeida Portugal deixa mulher e vem para o Brasil para assumir o cargo de governador da capitania de São Paulo e das Minas de Ouro. Um homem determinado, ao mesmo tempo um homem violento, frio nos julgamentos. Comandava julgamentos rápidos. Havia em sua natureza algo sanguinário. Sua presença tinha como objetivo (nas palavras do escritor Rodrigo Alvarez), “desinfetar” as Minas de padres, que faziam ali, nas palavras dele, “um escândalo da cristandade”. Descumpre pactos assumidos com adversários e sai matando todos que se colocam à sua frente.
Quando vem de Portugal, Dom Pedro Miguel de Almeida atravessa a Capitania de São Paulo e das Minas de Ouro e segue em direção a Vila Rica (atual Ouro Preto) para exercer o seu papel de governador. Só que, quando ia em direção à capital, passa pela Vila de Guaratinguetá e por Aparecida (que na época não era Aparecida ainda). Só para nos localizar historicamente, estamos no ano de 1717.
Ao chegar à Vila de Santo Antônio de Guaratinguetá, a Câmara do lugarejo determinou aos pescadores Domingos Martins Garcia, João Alves e Felipe Pedroso, homens simples, que providenciassem peixes para o banquete em homenagem ao governador. Jogaram suas redes no Rio Paraíba, mas não alcançavam sucesso, outubro não era uma boa época para se pescar no Paraíba. O cansaço já tomava conta de todos, e os peixes simplesmente não davam sinal de vida.
Em determinado momento, João Alves, ao puxar a rede, percebeu algo estranho: encontrou um objeto escuro. Era o corpo de uma imagem de Nossa senhora da Conceição. Ao lançar a rede de novo, pôde perceber que algo apareceu, e esse algo era nada mais nada menos que a cabeça da mesma imagem. Naquela sequência dos fatos, os pescadores ficaram surpresos por se tratar de uma imagem sagrada. E muito mais surpresos ficaram quando, logo após a descoberta da imagem, a pesca tornou-se abundante. Seria algo do céu? Eles entenderam que sim.
Silvana Rocha Alves, esposa de Domingos, irmã de Felipe Pedroso e mãe de João Alves (personagens esses que estavam na pescaria) conseguiu colar a imagem com cera e a colocou em um altar, em sua casa.
Após alguns anos, Felipe Pedroso doou a seu filho Athanasio Pedroso, que construiu um altar de madeira em sua casa. Como a devoção foi aumentando, em 1734, foi construída, no Morro dos Coqueiros, uma capela para abrigar os fiéis que vinham rezar aos pés da santa. O espaço tornou-se pequeno e iniciou-se a construção da Basílica Velha, inaugurada em 1888.
Nossa Senhora da Conceição Aparecida começou a ganhar uma enorme relevância pela tradição oral das pessoas simples que acreditaram nela e se sentiram agraciadas por milagres.
Foi o que aconteceu com o escravo Zacarias, que havia fugido de uma fazenda do Paraná e era caçado por todos os cantos, até ser encontrado no Vale do Paraíba. Preso, acorrentado nos pulsos e nos pés, Zacarias passou próximo à capela que havia sido construída para a imagem de Nossa Senhora da Aparecida. Então, o escravo pediu permissão ao seu caçador para rezar diante da imagem. O caçador cedeu incrédulo ao pedido. A fé de Zacarias foi tamanha que milagrosamente as correntes se romperam, deixando-o o livre. Diante daquele milagre, o caçador deixou Zacarias livre. A devoção à “Mãe negra” o libertou.
Em 22 de agosto de 1822, Dom Pedro I passou por Aparecida em direção a São Paulo. Esteve no Santuário de Aparecida e rezou pela situação política do Brasil. Em 7 de setembro de 1822, em São Paulo, Dom Pedro I proclamou a Independência do Brasil.
A Princesa Isabel, herdeira do trono brasileiro, participou do festejo ao lado de seu marido, o Conde d'Eu, na esperança de obter da Senhora Aparecida a graça de um ter um filho herdeiro. Com o objetivo de ser mãe a qualquer custo, a Princesa Isabel sofrera vários abortos e a primeira gravidez que conseguiu levar até os nove meses foi frustrante, porque resultou no nascimento de uma menina morta, após um trabalho de parto difícil e muito doloroso de 50 horas. Foi um momento muito triste. E era caçoada por isso, principalmente pelos inimigos.
Certa vez, para demonstrar sua devoção, a Princesa Isabel doou à venerada imagem um manto riquíssimo, ornado com brilhantes, representando as vinte Províncias do Império mais a Capital. Um ano após perder a filha, a princesa deu à luz o herdeiro do trono. No dia 15 de outubro de 1875, nasceu Dom Pedro de Alcântara, e a partir daí a realeza brasileira ganhou outros dois herdeiros, Dom Luiz Maria e Dom Antônio. Na ocasião de uma de suas visitas, foram libertados alguns escravos, gesto que prefigurou a Lei Áurea, que em 1888 abolia do Brasil a escravidão.
Em 6 de novembro de 1888, a Princesa Isabel visitou pela segunda vez a Basílica e ofertou à Santa, em agradecimento por uma graça alcançada (promessa feita em sua primeira visita, em 8 de dezembro de 1868), uma coroa de ouro de 14 centímetros de altura e 11 de largura, feita com 300 gramas de ouro 24 quilates, cravejada com 40 diamantes e rubis, juntamente com um manto azul, ricamente adornado. Essa é a mesma coroa com que a imagem foi coroada Rainha do Brasil em 8 de setembro de 1904 e que está coroando Nossa Senhora em Aparecida até hoje.
Em 1894, a pedido do Bispo de São Paulo Dom Joaquim Arcoverde de Albuquerque, chegaram os primeiros redentoristas a Aparecida, vindos da Baviera, Alemanha. Construíram a nova comunidade religiosa. Quem eram os missionários redentoristas?
Eram os guardiões da imagem da Padroeira do Brasil e eles tinham uma grande responsabilidade: de zelar um patrimônio devocional brasileiro. E, a partir disso, proclamar, de modo velado, a Palavra de Deus a todas as pessoas. Os missionários redentoristas tinham a consciência de que, por trás dessa pequena Imagem, se esconde uma fé, a história de um povo, com suas alegrias e tristezas, o qual vem encontrar a Mãe, que o leva até o Filho Jesus. E a Nossa Senhora lembrava a Virgem Negra do Santuário de Altötting, onde por muitos anos os redentoristas bávaros tinham trabalhado.
Em 1900, chegavam a Aparecida as primeiras romarias oficiais vindas de São Paulo e do Rio de Janeiro. Tais romarias se tornariam uma tradição, sendo promovidas anualmente até a década de 1930: uma em 8 de setembro, por ocasião da festa da Natividade de Maria, e a outra em 12 de dezembro na comemoração do dia da Imaculada Conceição.
O estado do Vaticano foi criado em 1929 quando o papa Pio XI e o ditador Benito Mussolini assinaram o Tratado de Latrão, que previa o Vaticano como um estado independente e o recebimento de uma indenização pela perda de seu território durante a unificação alemã. E em contrapartida, a Igreja católica teve que abrir mão das terras conquistadas na Idade Média e também teve que reconhecer Roma como capital da Itália.
O catolicismo se tornou religião nacional na Itália; o ensino da fé católica passou a ser obrigatório nas escolas; e ficou estabelecido que o governo italiano pagaria uma gorda indenização (US$ 1 bilhão em valores) para que a Igreja desistisse de qualquer reclamação relativa à perda dos Estados Papais, extintos durante a unificação italiana no século XIX. O Duce, por sua vez, procurava no respaldo da Igreja algo que tornasse os italianos não meros adeptos do fascismo, mas devotos dele como eram do catolicismo — uma vela para a Igreja e outra para o regime.
Quando o Tratado de Latrão se consolidou, o Papa Pio XI, em 16 de julho de 1930, assinou um Decreto constituindo Nossa Senhora da Conceição Aparecida Padroeira do Brasil, legitimando um fato consagrado pelo povo. Era o Brasil que consagrava a sua Senhora e Mãe.
Na noite de 30 de maio, a imagem, tirada do seu nicho, foi conduzida de trem de Aparecida até a Estação Central, no Rio de Janeiro. O trem, composto de um carro-chefe, um carro-salão e um carro-capela, fora preparado para levar sua especial passageira: retiraram-se as armas da República para a colocação de emblemas católicos e uma gravura de Nossa Senhora Aparecida, que se iluminava com os faróis dianteiros da máquina.
No caminho do cortejo, novamente, postaram-se milhares de pessoas à espera da passagem da imagem. No Rio de Janeiro, repetiu-se, no trajeto percorrido pela imagem, o que já se vira em Aparecida e nas cidades por onde passara: casas e igrejas enfeitadas e iluminadas, devotos aplaudindo. O espetáculo da procissão atraía o público ao mesmo tempo que, em momentos bem marcados, evidenciava como parte fundamental a estrutura hierárquica que organizava.
Ao se consagrar imagem de Nossa senhora da Conceição como símbolo nacional Aparecida, a Igreja pretendeu representar e integrar diferentes identidades sociais, culturais e étnicas, ao mesmo tempo que forjava uma bandeira capaz de propagar sua grandeza organizacional sobre todo o território brasileiro, impondo-se ao poder secular fosse ele provisório ou permanente. Na cerimônia de Nossa Senhora da Aparecida no Rio, Getúlio Vargas também beijou os pés da Padroeira.
Rodrigo Alvarez vai fazendo conexões entre a história do Brasil, com a chegada de Getúlio até a chegada dos militares, com a Nossa Senhora Aparecida. Talvez o momento mais grave e intenso tenha ocorrido em maio de 1978, quando um sujeito evangélico chamado Rogério Marcos invadiu a Basílica Velha em Aparecida. Enquanto a missa das 20h era celebrada, os fiéis não poderiam imaginar que estavam prestes a vivenciar uma “tragédia religiosa”. O homem roubou a Santa por considerá-la um acinte uma adoração, uma idolatria.
Uma das acusações mais contumazes dos protestantes aos católicos é que estes são idólatras, adoradores de imagens e, por isso, dignos da desgraça eterna. Os irmãos litigiados defenestram contra os católicos uma série de versículos bíblicos.
Como vocês podem ver, na imagem acima estão os cacos (visíveis) e os farelos do chão (invisíveis para nós) da Basílica, que naquele momento eram considerados uma poeira sagrada, e foram sendo incorporados, graças a uma cola argentina chamada Poxipol e ao famoso Durepox, no intuito de restaurar minimamente a imagem. Graças ao trabalho de restauração de Maria Helena Chartini, a santa conseguiu recuperar parte de sua identidade imagética para os fiéis.
O livro Aparecida revela personagens curiosos, como o padre Izidro, que sequestrou a padroeira às escondidas do altar pois não havia gostado do trabalho feito pela restauradora Maria Helena Chartini. Personalidades marcantes da ditadura que financiou uma peregrinação; a visita dos três papas, João Paulo II, Bento XVI e o Papa Francisco, que fizeram questão de beijar a imagem da padroeira do Brasil.
Fico por aqui e indico Aparecida do jornalista Rodrigo Alvarez como um livro que merece um lugar de destaque na sua estante.